segunda-feira, 15 de dezembro de 2014







LIVRE-ARBÍTRIO & MAIS
William Lagos

LIVRE-ARBÍTRIO I (2004)
[para Laura Denis Alves]

O livre-alvedrio é o maior dos assassinos:
Quando tu escolhes, matas, aos milhares,
As possibilidades; e assim, ao realizares
As tuas escolhas, forjas teus destinos.

Desse modo, cabe a ti -- e a ti somente –
A responsabilidade por tua vida;
Foram escolhas, a que deste guarida,
Que te determinaram, consequente,

O que sucederia em teu futuro.
Mas se deixaste de escolher, que pena!...
Os outros sempre escolherão por ti.

E teu destino transcorrerá no escuro:
Porque é a escolha alheia que condena
E determina essa tua vida aqui...

LIVRE-ARBÍTRIO II (8 NOV 14)

E o que ocorre com as probabilidades
Que foram para sempre descartadas,
Depostas sobre a margem, recusadas,
Sem jamais se transpor em realidades?

Percebes bem que tais fatalidades
São culpas tuas, que foram justiçadas
Por uma escolha real ou abandonadas
Pelo descaso de tuas futilidades?

Até que ponto serás o responsável
Por tantas mortes que desconsideraste,
Ao escolheres diversamente o teu destino?

Ou antes, como afagar a interminável
Nuvem de escolhas em que nem sequer pensaste,
Mas que deixaste passar em desatino?

LIVRE-ARBÍTRIO III

São lançadas ao chão, quando presilhas
Inseridas são em ti por outra gente,
Como pressões de metal, indiferente,
Enquanto caem mil retalhos nessas pilhas...

Talvez em velcro fossem casuais milhas
De tecidos descartados, sem potente
Afirmação definitiva, o mais premente
Que pudessem retomar soltas estilhas.

Há muito tempo que não vejo mais pressões,
Salvo aquelas de insistência do social,
Feixes relâmpago as substituíram...

E já sumiram os colchetes e os botões
Vão se extinguindo do tecido artificial
Com que te impõem as escolhas que surgiram.

LIVRE-ARBÍTRIO IV

E que te ocorrerá, se perceberes
Esse fluxo de chances desprezadas
Nos remansos de teu rio, meio atoladas
Na lama e limo em que as ver puderes?

Será que cabem a ti os mil deveres
De redimir tais escolhas enlameadas,
Que nem ao menos por ti foram descartadas,
Mas esquecidas, em tristezas e prazeres?

E se te sentes desgostosa ao encontrares
Bolor e mofo nas tuas sapateiras
Que se alimentam, afinal, de tua umidade,

Qual não seria o desgosto, ao avistares
Os retalhos das quimeras seresteiras
Que jamais transformaste em realidade?

VACUIDADE I (2006)
[para Fernanda Emediato]

A vida solitária se assemelha
a uma sala de projeção trancada,
onde nunca ninguém assiste nada
dessas imagens que o ecran espelha.

E enquanto a tela branca se encendelha,
senta um fantasma nessa arquibancada,
seus olhos baços, mortalha iluminada
pelos reflexos esparsos da centelha...

Que brilha e que se esboça em solidão
e quem mais sabe o que se passa nela?
Tal como se, suspenso um coração,

só tornasse a bater quando a janela
que se fecha para a vida fosse aberta
e revelasse que a sala está deserta...

VACUIDADE II – 9 NOV 14

Quem é o fantasma: a tela ou o espectador
que tudo enxerga pelos vidros da visão,
sob os postigos das pálpebras que estão
como arames de gaiola em furta-cor?

Quem contempla o passado com saudor
ou é o presente que encara em saudação
ou tem saudade do futuro em expectação
de mais saúde que aguarda com ardor?

O que se encontra entre a tela e seu olhar
senão revoada de fótons a bailar
ou mil fantasmas ansiando ser visíveis?

Dos compact-discs digitais no engaiolar,
para o mundo exterior intransponíveis,
enquanto a tela não os venha a projetar?

VACUIDADE III

Por que, afinal, o que é a solidão
senão o vácuo que nos envolve sempre?
Qual nadador, quanto mais no mar se adentre,
vemos as ondas ao redor, em borbotões.

Contudo, a água é tangível pela mão,
enquanto o vácuo que se flutue dentre,
mais se assemelha, anaeróbico, a um ventre
ilimitado, sem indicar-nos direção.

Antigamente, a vida era gravada
em longos rolos de fita, num abraço
desses passados suaves e outros feros,

enquanto hoje é reduzida e compactada
em caracteres digitais sem outros traços
que a multidão de unidades e de zeros...

VACUIDADE IV

Já muitas vezes se sugere, em dias que correm,
digitalizar toda uma vida, sonho e história,
em alguns discos ou cubos tal memória,
enquanto algures os cérebros escorrem.

Talvez nesse processo até se tornem
os neurônios irregulares em sua glória.
Ao digitar-se, vertidos em peremptória
existência fantasmal dos que não morrem.

Mas quando se projeta o holograma,
para alegria dos sobreviventes,
pode a memória alcançar nova visão?

Ou esse espectro de luz que se conclama
só traz almas em prisões cognoscentes,
nos grilhões da mais completa solidão?

VACUIDADE V

Já sobre o palco é bem outra a situação:
são mil olhos que espionam das cadeiras,
carne e vozes a contemplar, interesseiras,
talvez sobre elas querendo lançar mão.

De cada olhar se elança a projeção,
como holofotes em pálidas ladeiras,
que sobem a ribalta, alvissareiras,
a luz sugando da representação.

São bem diversos dos demais fantasmas,
mas como lasers todo o espaço dobram
e sobre os intérpretes se desdobram,

todos idênticos, em vicariais miasmas,
cada tespiana um objeto de desejo (*)
e em cada flor a mácula do beijo...
(*) Atriz, seguidora de Téspis, a musa do teatro.

VACUIDADE VI

Existe um vácuo sólido de fome
que se desdobra sobre cada artista;
uma ânsia simplesmente por conquista
ou uma inveja que por demais consome.

Vazio concreto a que nem libreto dome,
a projetar solidão sobre tal pista;
em inocência tal ambição se invista:
tridimensional é a carne que se come.

Mas a artista, em sua etérea dança,
por uns momentos se torna coletiva
e descarta de si tal solitude,

sob o brilho das kliegs se balança
e a fome alheia mais ainda a incentiva
e de não mais ser solitária então se ilude...

ESPERMA 1 – 10 nov 14

Quando o beijo da musa me enlouquece
e me provoca a saga em turbilhão,
esse estridor nos nervos corre a mão
e os dedos move em tal constante prece,

até que o pulso, enfim, se me enlanguesce,
todos os versos já transcritos na paixão,
pleno rascunho de tal ejaculação
que sobre o mundo, férvida, me desce!

Esse é o esperma dos deuses, inegável,
que nove musas recolheram para mim
e novamente me convertem num Apollo,

fisicamente imperfeito, mas amável,
nessa ereção do sangue num clarim,
quando Calíope se reclina no meu colo!

ESPERMA 2

E como é doce o beijo em tal momento,
quando me suga os lábios; e os testículos
me esgota, qual orgia em conventículos,
testemunhando a magia de um portento...

E como eu fico estuante de energia!...
Nunca soube isso que chamam depressão
pós-coital.  O que sinto é  fragor no coração,
que então convoca à nova fantasia!...

E me ponho a escrever mil outros versos...
É como se aliviasse uma pressão,
que liberasse a mente à realidade...

A carne exulta em tais filhos dispersos
e me renovo mais nessa explosão,
quanto mais me desgasto em saciedade...

ESPERMA 3

Não pode o homem ter certeza de sua prole,
por isso a mãe é que mais se faz repleta;
alheio esperma vagina e ventre afeta,
mas é seu óvulo que o escolhido engole...

Para o homem, outro esperma há que o enrole:
é a alma de Dioniso que o completa,
na embriaguez seminal de cada seta
que as bacantes lhe trazem que ele acolhe.

Os óvulos do sonho são plantados
e no cérebro se faz a concepção:
linfa vermelha se opõe à menstruação

em quantos são por eles abençoados,
no esplendor pós-coital de cada verso,
no puro orgasmo de tal fulgor converso!

TRANSMIGRAÇÃO I (2006)

Uns trinta anos atrás, me apaixonei
por um tronco de árvore, derrubada
durante a ventania.   Assim, tombada,
a cerca de cem metros contemplei.

Um galho erguido para o alto, eu sei,
contra o tronco desnudo e reclinado...
Mas eu sentia que ainda era habitado
pela hamadríade.  E o tronco preservei,

até que consentisse, após dois meses,
que em lenha o transformassem, por calor.
Há poucos dias, vi outra árvore e já

roxas estavam as flores e os talvezes...
Seria possível que meu velho amor
morasse agora em um jacarandá...?

TRANSMIGRAÇÃO II – 4 OUT 14

Naqueles anos eu empregava picareta,
de abrir uma piscina na intenção,
paleando a terra com toda a devoção;
de escoamento abri também uma valeta;

de mim zombavam por escavação direta:
com qualquer escavadeira nesse chão
bem mais depressa se abriria o buracão!...
Porém eu tinha intenção bem mais secreta...

O que eu queria era desenvolver
o conjunto muscular, pernas e braços,
e do tronco retirar toda a gordura,

julgando assim melhor me parecer
e conquistar número maior de abraços,
pelo desgaste da antiga investidura...

TRANSMIGRAÇÃO III

Eventualmente, tive esses resultados,
mas a piscina nunca completei...
Duas paredes de pedra até aprontei,
dois pedreiros a meu lado contratados...

Depois viajei, deixando abandonados
cova e valetas em que tanto trabalhei;
anos depois, porém, quando voltei,
já eram outros os alvos acertados...

E comecei a podar vasto jardim,
hastes cortando dos pés amarelados,
enquanto mudas traziam para mim;

foi só então que a conhecer eu vim
essa minha ninfa dos galhos derrubados,
que só de longe me abanava, enfim...

TRANSMIGRAÇÃO IV

Pois cada vez que a foice abandonava
e por entre os pés de xirca ia chegando,
do seu abano me ia desesperando:
pura madeira de perto contemplava...

E até de noite, quando ali chegava,
na vã esperança de que sob luar mais brando
a hamadríade estivesse me esperando,
madeira seca somente eu encontrava...

De qualquer modo, conservo meu amor
por cada árvore que encontre no caminho;
igual que ave quisera fazer ninho

e lá encontrar essa ninfa com calor
a me acolher, como se fosse passarinho,
qual novo galho enroscado no anterior...

CEGUEIRA I (2006)

das árvores as copas tem Segredos
até dos ventos, que ciosas Guardam...
os velhos deuses penam em Degredos
e seus corcéis para um exílio Albardam.

não há lugar para deuses neste Mundo
em que, feroz, dominou o Monoteísmo
de uma igreja altiva em seu Profundo
orgulho de guardiã de um só Teísmo...

mas as ninfas borbulham pelas Fontes,
mesmo que os homens não mais as Reconheçam...
e as hamadríades sussurram pelos Galhos.

e eu reconheço espíritos nas Pontes,
nas nuvens e no lodo a que Pertençam,
por mais que meus sentidos sejam Falhos.

CEGUEIRA II – 11 NOV 14

aí estão elas e a primavera Legam,
as brisas do verão sobre teu Rosto,
o líquido estridor de cada Mosto,
as carícias das pétalas que Apegam;

porém de vê-las realmente as vistas Negam:
vês tão somente a obra do Desgosto,
talvez no sonho mais lento em seu Encosto,
teus beijos sobre as pálpebras te Cegam.

na verdade, nem é bom que sejam Vistas
por teu olhar, pois quantos Contemplaram
e as lançaram em fogueiras ou Prisões?

mas ainda adejam suas asas e suas Cristas
e mesmo ocultas, ao devanear se Apresentaram,
no cristalino refluir das Emoções...

CEGUEIRA III

na verdade, há uma certa Presciência
em uma fé que adora tantos Santos
e que a madonas faz subir os Cantos
de cada terço murmurado em Insistência.

é o henoteísmo que aqui surge, com Potência:
um grande deus com milhares sob os Mantos,
mais próximos dos risos e dos Prantos
de quem recorre, presa de Impaciência.

se não te atende a Suprema Divindade,
nem Jesus Cristo se mostra um servo Teu,
velas acendes a teus ídolos de Barro,

pretendendo subornar a sua Piedade
com tuas promessas inúteis de Sandeu,
perante a fé incrédulo e Bizarro!...

CEGUEIRA IV

eu, porém, nunca fui de acender Velas
a tais estátuas de mármore ou de Gesso;
se algo preciso, direto a Deus eu Peço,
que até hoje protegeu-me das Procelas;

mas nunca espero sobre Ele pôr as Selas;
é mais respeito e gratidão que Meço;
melhor que eu, sabe bem quanto Mereço,
sorrindo apenas para minhas Bagatelas...

de forma idêntica, minhas ninfas Reconheço,
os gênios, os espíritos e as Fadas,
sem esperar que sequer vê-los Concedam,

pois nem ao menos enxergá-los Peço,
tão somente o perceber de tantos Nadas
que indistintos, nalma ainda se Quedam.

COLMEIA I – 12 NOV 14

No labirinto dos favos, as  abelhas
Zumbem a música de seu eterno mel,
Ou fazem cera com ressaibo a fel,
Em vidas breves, sem ficarem velhas;

Sobrevivem no soro essas centelhas
Em que a rainha produz novo quartel
Das hostes operárias, qual corcel
Dedicada ao renovar de suas parelhas.

Nas vidas curtas, parecem extinguir-se,
Porém sua comunidade subsiste;
Por ela morrem, ao perder ferrão,

No coletivo existir a persistir-se,
Cada uma delas com algum pólen assiste...
Para que céu abelhas mortas vão?

COLMEIA II

Do mesmo modo, cada um de nós,
Mesmo sem  disso ter real consciência,
Reúne o pólen da vida em persistência
Ou vai nos favos produzir o mel empós.

Chega o momento de morrermos sós,
Com alegria ou permeio a penitência,
De qualquer modo a participar da densa
Enxaimeria dessa humana voz.

E as mães da raça seguem produzindo
Os novos operários diligentes
Para novas gerações da humanidade;

Mas há outra mão também nos conduzindo,
Sem que os fadários sejam negligentes,
Mas progressivo mel da realidade.

COLMEIA III

assim sempre vivi.  O meu passado
está morto...  Em arquivos alienado,
alguns de bem, muitos de atribulado
enfrentar de momentos, em outros indiferente

rememorar de fatos corriqueiros:
rotinas a esquecer...  Hospitaleiros
foram mais os instantes derradeiros
em que cumpri meus deveres.  Finalmente,

certos momentos de criação brilhante
de música ou de versos...  Da estuante
regência de um coral... Da talentosa

performance num palco... Ou do frequente
fruir do orgasmo, em morte renascente,
como o esplendor solar que queima a rosa...

COLMEIA IV

Assim és tu em cada ato menor:
Algo de ti contribui para esse enxame;
Quiçá uma obra de arte se proclame,
Quem sabe até edificação maior.

Talvez apenas a vida, em seu pior
Sofrimento a que a maladicha te dane, (*)
Talvez um jeito de ser que a mágoa bane:
Dás à colmeia teu pouco ou teu melhor.
(*) Má sorte, em espanhol e gauches.

E tudo escorre para o mesmo fim:
Ovos eclodem para o teu labor,
Mas não para te dar felicidade.

Zumbem tuas asas como toque de clarim
Sobre o palco da vida, com ardor,
Até que surja o momento da verdade.

REGRAS DA VIDA XX

Não viver no futuro é bem difícil.
O passado se perdeu, é irretraçável
tanto o bem cometido e o imponderável
lamento pelo mal que não se fez...

Mas o presente é insustentável míssil.
Não se toca sequer por um momento:
o início do beijo, num portento,
já pertence ao passado e se desfez...

Em que viver, senão pelo futuro?
É só o que temos, mesmo sem saber
o que nos traz, nem qual a consequência

do que agora fazemos, no inseguro
contemplar dessas contas... a correr,
por entre nossos dedos, sem paciência...

ADVERSIDADE I – 13 nov 14

Estranho é esse mistério, que concita
o homem à mulher... Ferocidade
além dos feromones e desdita
do mais perfeito cercear da liberdade.

Não é a busca sequer da saciedade
essa atração que, plena, regurgita...
Nem tampouco se quer felicidade:
é a sedução apenas...  Essa aflita

busca da mescla em sólida fusão...
Não é o estranho impulso sensitivo
que nos faz arriscar a própria vida...

Nem biológico anseio redivivo,
no instante simples da reprodução....
É a mágoa acesa da ilusão perdida.

ADVERSIDADE II

Porque essa entrega, bem contado, é adversa;
bem mais queria ter o varão dispersa
a sua semente em mil receptáculos,
ver noutro vento sua imagem reconversa

igual migalha de si noutrem conversa,
marca de bispos e pastores em seus báculos,
talvez uma esperança até perversa
de a morte reduzir a poeira inversa...

E ao extinguir-se, ver a vida multiforme
que saiu de si mesmo, permanente,
enquanto as órbitas conservam sua visão,

enquanto a própria velhice o faz disforme,
na descendência se contempla, complacente,
daqueles que após ele ficarão...

ADVERSIDADE III

Deste modo, faz melífluo sacrifício
quando se entrega totalmente por amor
e considera com ínclito pendor
essa parceira com que o último resquício

de sua virilidade reparte, qual um vício,
por um perfume redolente de calor,
a quem se entrega, solene em seu vigor,
na esperança de um constante benefício.

Até que chega dela a menopausa,
os filhos já gestados e nutridos
e descartada se percebe em biologia,

quando provoca falsamente a andropausa
e os espermatozoides ainda produzidos
são lançados assim à desvalia...

ADVERSIDADE IV

De qualquer modo, é um destino melancólico
desses milhares que nascem diariamente,
para o melhor ou, talvez, mais diligente,
ser de todos só o aceito em dom eufórico,

por esse óvulo gigantesco e esférico
que um só escolhe, caprichosamente
ou por motivos de compreensão ingente
ou pela força de seu ritmo sistólico...

Mas milhões outros ficam no caminho
ou cercam a gigante, desesperadamente,
sem nela achar sequer um interstício;

e assim amor não é mais do que mesquinho
assassino de milhões, indiferente,
nessa hecatombe de constante malefício.

ADVERSIDADE V

Será que nossa vida é semelhante:
que entre milhões só um seja escolhido
para a lembrança, para a honra tido
ou aleatório é tal destino expectante?

Pois todos morrem, chegado o seu instante:
alguns repartem todo o bem adquirido,
outros a obra à qual tenham nutrido,
outros deixando de si só o bastante

para a seu túmulo dar preenchimento...
Será que a maioria só resseca
e para o mundo exterior é repelida

ou então existe, de fato, acolhimento
em algum mundo ao infeliz que peca,
igual a quem teve meritória vida?

ADVERSIDADE VI

Eu não recordo de ter lido em qualquer parte
que alma aos espermatozoides atribuíssem,
porém não creio que só meus olhos vissem
o seu possível continuar após descarte...

Porque negar que os bilhões postos a parte
em qualquer modo ou lugar não ressurgissem?
Que em outro corpo mortos irmãos viessem
por nova sorte atentar assim, destarte...?

E se esse fosse o verdadeiro inferno?
Reviver diariamente igual destino,
até que um só alcançasse fecundar

e se tornasse em infante de olhar terno,
deitado em berço, com peito supino,
que algures fosse grandes feitos realizar?

CLEMATITE I – 14 NOV 14

NA CASA DA MEMÓRIA EXISTEM QUARTOS
AMPLOS, ESTRANHOS, MUITOS ESQUECIDOS,
E É NESTES QUE SE ENCONTRAM ACOLHIDOS
OS VERDADEIROS SONHOS E OS MAIS FARTOS.

É O OLVIDO QUE PRODUZ MELHORES PARTOS
DESSES RETRATOS PUROS, ENCOLHIDOS
EM TAIS COMPARTIMENTOS, ENVOLVIDOS
NA SEDE AVELUDADA DOS REPARTOS.

AS COISAS QUE SE LEMBRA COM FREQUÊNCIA
NÃO TÊM IGUAL VALOR: LEMBRAS LEMBRANÇAS,
MEMÓRIAS ESTAS DE MAIS RECORDAÇÕES

E NO FINAL, FOI BEM DIVERSA ESSA OCORRÊNCIA...
MELHOR LEMBRARMOS AS ANTIGAS ESQUIVANÇAS
QUE ANESTESIAMOS EM FORTES EMOÇÕES.

CLEMATITE II

DE CLEMATITES MUITAS ESPÉCIES HÁ:
MAIS DE TREZENTAS, BOTÂNICOS AFIRMAM;
É NA FAMÍLIA DOS RAINÚNCULOS QUE SE FIRMAM
E NOS FLORAIS DE BACH ATÉ UMA ESTÁ...

SERVE A QUEM SUA MENTE FIRME NÃO TERÁ,
PORÉM DIVAGA; AOS QUE DA MEMÓRIA ENFERMAM
OU AS LIGAÇÕES DE FATOS NELES MERMAM,
GENTE QUE POUCO CONTRIBUIR AO MUNDO DÁ.

CHAMAM A UMA “ALEGRIA DO VIAJANTE”,
PORQUE SE ENCONTRA À BEIRA DOS CAMINHOS
A OUTRA CHAMAM DE “TOUCEIRA VIRGINAL”

E OUTRA “BARBA DE VELHO”, INTERESSANTE
COMO VARIAM OS CAPRICHOS COMEZINHOS
DOS QUE NOMEARAM ESTA VINHA NATURAL!

CLEMATITE Iii

POR ISSO, COM UM CHA DE CLEMATITE
TALVEZ CONSIGAS DESPERTAR AS TUAS QUIMERAS,
VER-TE VAGUANDO POR ANTIGAS ERAS
OU TRANSFORMADO EM BISCUIT DE GALALITE...

A SUA INFUSÃO COMBATE A SINUSITE,
DOS PESADELOS CONQUISTA AS RUDES FERAS,
PERFUME TRAZEM DAS VELAS PARA AS CERAS:
TOMA A TISANA, QUE A BOM SONHO TE INCITE...

ASSIM SOBEM AS LEMBRANÇAS DAS CAVERNAS,
SEM AS REDES DOS MONSTROS DO INCONSCIENTE
E BRILHA EM TI A CRIATIVIDADE...

EM SUAS NUANCES VIOLETAS SÃO ETERNAS
AS MUITAS VIDAS POR QUE PASSASTE RENTE,
SEM QUE AS TIVESSES AMADO DE VERDADE...

WILATIATI I (15 NOV  14)

DE QUE TE SERVE
MOSTRAR AMOR
PARA QUEM NUNCA MERECEU TAL JÓIA?
DE QUE NOS SERVE
SEMPRE AMPARAR
A QUEM SABEMOS NUNCA NOS APÓIA?
JÓIA QUEBRADA
OSSO PARTIDO
AMOR NÃO VALE MAIS QUE UMA TIPÓIA
E NOS SUFOCA
CANÇÃO PARTIDA
QUAL JAVALI NAS MALHAS DA JIBÓIA.
RESTA SOMENTE
PERFUME ANTIGO
SOBRE AS NARINAS DA ESPERANÇA MORTA.

WILATIATI II

NOS DIAS DE HOJE
A GENTE ESQUECE
O QUE FOI TÃO CELEBRADO ANTIGAMENTE.
O ATUAL PODER
BUSCA APAGAR
AS ANTIGAS REALIZAÇÕES DE NOSSA GENTE.
NESTE NOVEMBRO
NESTA QUINZENA
A REPÚBLICA SE OLVIDA TÃO FREQUENTE!
EM OPOSIÇÃO
À ANUAL CELEBRAÇÃO
EM QUE O EXÉRCITO SE FAZ SEMPRE PRESENTE
NA IMPOSIÇÃO
LENTA E SOLERTE
DESSES IDEAIS QUE NUNCA FORAM NOSSOS.

WILATIATI III

VEJA-SE BEM:
NÃO SOU REPUBLICANO
TENHO SAUDADE DOS ANTIGOS REIS.
NUMA JUSTIÇA
BOA E PATRIÓTICA
QUE GOVERNAVA O MUNDO COM SUAS LEIS
ENQUANTO HOJE
MIL CODICILOS
AS BRECHAS ABREM NAS LUZES EM QUE CRÊS
A FERA SOLTA
DEVORA TUDO
E A TEU REDOR A INQUIETAÇÃO SÓ VÊS
MAS DE QUE SERVE
MOSTRAR AMOR
A UM PAÍS A QUE OS DEMAIS CONSOMEM?

WILATIATI IV

NÃO OBSTANTE,
EU SOU PATRIOTA
E RESPEITO COM AMOR NOSSO PASSADO
TÃO ESQUECIDO
MAL ENSINADO
E DE PROPÓSITO ATÉ VILIPENDIADO
POR ESSA GENTE
QUE QUER LUCRAR
E SE APRESENTA QUAL UM DEUS ALADO
O NOSSO POVO
A DIVIDIR
EM FALSO TOM DE DESVIO DELIBERADO
MAS AINDA MOSTRO
ÁGUA NO OLHAR
SEMPRE QUE ESCUTO O HINO NACIONAL.

CANTO IMUNDO I – 16 NOV L4

Quando os zumbis procuram, sorrateiros,
erguer-se mais acima dos portões,
alguns pedaços já deixados nos caixões,
eu chego a sentir pena dos coveiros...

É pela noite que saem os seresteiros,
os que ainda podem sentir predileções
e se querem apresentar às multidões
para abraçar seus velhos companheiros...

Mas de manhã são vistos já amontoados
ou junto às puas de ferro ainda empalados,
perdido o impulso que lhes dava a Lua!

E para retorná-los às gavetas,
levados apenas por intuições secretas,
cada coveiro em tal tarefa sua!...

CANTO IMUNDO II

“Saiamos a zumbir pela avenida!”
Dizem os mortos-vivos, uns aos outros.
E saem mesmo, como mancos potros,
nos televisores buscando falsa vida!...

Hoje é costume tal procissão fedida
mostrar dentro das casas, feios rostos,
alguns ansiados por cachaça e mostos,
outros fazendo os vivos de comida!...

E qualquer um que sustente encantamento
se quer juntar aos mortos digitais
ou em festas de zumbis nos carnavais!

Que coisa pobre tal entretenimento!
Pena que os cheiros não transmitem jamais
esses filmes de zumbis em movimento!...

CANTO IMUNDO III

Tudo resulta de má interpretação:
de fato, no Haiti, alguns houngans
dominar sabem, com fórmulas malsãs,
em fingimento, qualquer morte na ocasião.

Cai em letargo quem bebe essa poção,
sua pele úmida e fria igual que rãs,
mesmo enterrados em quaisquer manhãs,
são despertados para longa escravidão.

Pouco respiram e sua alimentação
é mais dos líquidos que perpetuam o feitiço,
pois não morreram, só perderam todo o viço;

mas permanecem nessa triste situação
até que o corpo se desmanche aos poucos:
dores não sentem, quais leproso ou loucos...

CANTO IMUNDO IV

Mas querer que defuntos verdadeiros
consigam de suas covas escapar
é resultado de perverso imaginar,
pois já perderam os movimentos derradeiros.

Porém os irresponsáveis curandeiros
que por cineastas se querem passar,
matam atores para depois os reanimar,
sem que de fato morram os primeiros...

Mas que dizer, se houver gente suficiente,
movida pelo terror dos pesadelos,
que em mortos-vivos possa acreditar?

Não é impossível até que algum demente
saia nas ruas, eriçando os pelos,
os cantos mais imundos a entoar!...

PRAZER I – 17 NOV 14

A mescla de teu beijo é sol e flor
que me alumia enquanto o peito ofega,
que me perfuma enquanto o olhar me cega,
qual ramalhete a adornar o meu amor.

A mescla de teu beijo é sol e cor
que me embriaga qual vinho de adega,
que de arco-íris a dádiva me lega,
perdido inteiro em lábios de calor.

O beijo inteiro é o borbulhar do ensejo
que leva a novos ósculos ansiar,
boca na boca enquanto a língua espia,

sem saber se se incharia de desejo
ou no marfim iria dos dentes se encerrar,
enquanto o sangue aos lábios refluía...

PRAZER II

A mescla de teu beijo é hoje e antanho
que mais que nunca faz palpitar a vida,
que olvida o mundo em tal fúria incontida:
para o porvir a grade do emaranho...

A mescla de teu beijo é solo e amanho,
fecundação da alma malferida,
a pá e enxada sua carne revolvida,
sabor e gosto do mais doce banho...

O beijo inteiro qual pastel de nata
que se derrete na dança das papilas:
que seja minha sempre essa artimanha!

E que essa sensação nunca se abata
enquanto cintilar luz nas pupilas,
nessa vitória e derrota que se ganha!...

PRAZER III

A mescla de teu beijo é orvalho e fogo
que me consome da cabeça aos pés,
enquanto me refresca, em núbeis fés,
cada suspiro que me sobe a rogo!

A mescla de teu beijo é dança e jogo
em que os montes se abrem nos sopés,
em que os dedos palpitam contra as sés,
nesse zéfiro e marulho em que me afogo!

Que seja o beijo que a alma assim invade,
nessa estranha exultação de sortilégio,
envolvidos todos dois na mesma teia,

uma perpétua, áurea prisão de livre grade,
que nos consagre no mais puro sacrilégio,
como dois círios em que a mente se incendeia!


William Lagos
Tradutor e Poeta
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com



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