LIVRE-ARBÍTRIO & MAIS
William Lagos
LIVRE-ARBÍTRIO I (2004)
[para
Laura Denis Alves]
O livre-alvedrio é o maior dos
assassinos:
Quando tu escolhes, matas, aos
milhares,
As possibilidades; e assim, ao
realizares
As tuas escolhas, forjas
teus destinos.
Desse modo, cabe a ti -- e a
ti somente –
A responsabilidade por tua
vida;
Foram escolhas, a que deste
guarida,
Que te determinaram,
consequente,
O que sucederia em teu futuro.
Mas se deixaste de escolher,
que pena!...
Os outros sempre escolherão
por ti.
E teu destino transcorrerá no
escuro:
Porque é a escolha alheia que
condena
E determina essa tua vida
aqui...
LIVRE-ARBÍTRIO II (8 NOV 14)
E o que ocorre com as
probabilidades
Que foram para sempre
descartadas,
Depostas sobre a margem,
recusadas,
Sem jamais se transpor em
realidades?
Percebes bem que tais
fatalidades
São culpas tuas, que foram
justiçadas
Por uma escolha real ou
abandonadas
Pelo descaso de tuas
futilidades?
Até que ponto serás o
responsável
Por tantas mortes que
desconsideraste,
Ao escolheres diversamente o
teu destino?
Ou antes, como afagar a
interminável
Nuvem de escolhas em que nem
sequer pensaste,
Mas que deixaste passar em
desatino?
LIVRE-ARBÍTRIO III
São lançadas ao chão, quando
presilhas
Inseridas são em ti por outra gente,
Como pressões de metal,
indiferente,
Enquanto caem mil retalhos
nessas pilhas...
Talvez em velcro fossem
casuais milhas
De tecidos descartados, sem
potente
Afirmação definitiva, o mais
premente
Que pudessem retomar soltas
estilhas.
Há muito tempo que não vejo
mais pressões,
Salvo aquelas de insistência
do social,
Feixes relâmpago as
substituíram...
E já sumiram os colchetes e os
botões
Vão se extinguindo do tecido
artificial
Com que te impõem as escolhas
que surgiram.
LIVRE-ARBÍTRIO IV
E que te ocorrerá, se
perceberes
Esse fluxo de chances
desprezadas
Nos remansos de teu rio, meio
atoladas
Na lama e limo em que as ver
puderes?
Será que cabem a ti os mil
deveres
De redimir tais escolhas
enlameadas,
Que nem ao menos por ti foram
descartadas,
Mas esquecidas, em tristezas e
prazeres?
E se te sentes desgostosa ao
encontrares
Bolor e mofo nas tuas
sapateiras
Que se alimentam, afinal, de
tua umidade,
Qual não seria o desgosto, ao
avistares
Os retalhos das quimeras
seresteiras
Que jamais transformaste em
realidade?
VACUIDADE I (2006)
[para
Fernanda Emediato]
A vida solitária se assemelha
a uma sala de projeção
trancada,
onde nunca ninguém assiste
nada
dessas imagens que o ecran
espelha.
E enquanto a tela branca
se encendelha,
senta um fantasma nessa
arquibancada,
seus olhos baços, mortalha
iluminada
pelos reflexos esparsos da
centelha...
Que brilha e que se esboça em
solidão
e quem mais sabe o que se
passa nela?
Tal como se, suspenso um
coração,
só tornasse a bater quando a
janela
que se fecha para a vida fosse
aberta
e revelasse que a sala está
deserta...
VACUIDADE II – 9 NOV 14
Quem é o fantasma: a tela ou o
espectador
que tudo enxerga pelos vidros
da visão,
sob os postigos das pálpebras
que estão
como arames de gaiola em
furta-cor?
Quem contempla o passado com
saudor
ou é o presente que encara em
saudação
ou tem saudade do futuro em
expectação
de mais saúde que aguarda com
ardor?
O que se encontra entre a tela
e seu olhar
senão revoada de fótons a
bailar
ou mil fantasmas ansiando ser visíveis?
Dos compact-discs digitais no engaiolar,
para o mundo exterior
intransponíveis,
enquanto a tela não os venha a
projetar?
VACUIDADE III
Por que, afinal, o que é a
solidão
senão o vácuo que nos envolve
sempre?
Qual nadador, quanto mais no
mar se adentre,
vemos as ondas ao redor, em
borbotões.
Contudo, a água é tangível
pela mão,
enquanto o vácuo que se flutue
dentre,
mais se assemelha, anaeróbico,
a um ventre
ilimitado, sem indicar-nos
direção.
Antigamente, a vida era
gravada
em longos rolos de fita, num
abraço
desses passados suaves e
outros feros,
enquanto hoje é reduzida e
compactada
em caracteres digitais sem
outros traços
que a multidão de unidades e
de zeros...
VACUIDADE IV
Já muitas vezes se sugere, em
dias que correm,
digitalizar toda uma vida,
sonho e história,
em alguns discos ou cubos tal
memória,
enquanto algures os cérebros
escorrem.
Talvez nesse processo até se
tornem
os neurônios irregulares em
sua glória.
Ao digitar-se, vertidos em
peremptória
existência fantasmal dos que
não morrem.
Mas quando se projeta o
holograma,
para alegria dos
sobreviventes,
pode a memória alcançar nova
visão?
Ou esse espectro de luz que se
conclama
só traz almas em prisões
cognoscentes,
nos grilhões da mais completa
solidão?
VACUIDADE V
Já sobre o palco é bem outra a
situação:
são mil olhos que espionam das
cadeiras,
carne e vozes a contemplar,
interesseiras,
talvez sobre elas querendo
lançar mão.
De cada olhar se elança a
projeção,
como holofotes em pálidas
ladeiras,
que sobem a ribalta, alvissareiras,
a luz sugando da
representação.
São bem diversos dos demais
fantasmas,
mas como lasers todo o espaço dobram
e sobre os intérpretes se
desdobram,
todos idênticos, em vicariais
miasmas,
cada tespiana um objeto de
desejo (*)
e em cada flor a mácula do
beijo...
(*) Atriz, seguidora de Téspis, a musa do teatro.
VACUIDADE VI
Existe um vácuo sólido de fome
que se desdobra sobre cada
artista;
uma ânsia simplesmente por
conquista
ou uma inveja que por demais
consome.
Vazio concreto a que nem libreto
dome,
a projetar solidão sobre tal
pista;
em inocência tal ambição se
invista:
tridimensional é a carne que
se come.
Mas a artista, em sua etérea
dança,
por uns momentos se torna
coletiva
e descarta de si tal solitude,
sob o brilho das kliegs se balança
e a fome alheia mais ainda a
incentiva
e de não mais ser solitária
então se ilude...
ESPERMA 1 – 10 nov 14
Quando o beijo da musa me
enlouquece
e me provoca a saga em turbilhão,
esse estridor nos nervos corre a
mão
e os dedos move em tal constante
prece,
até que o pulso, enfim, se me
enlanguesce,
todos os versos já transcritos na
paixão,
pleno rascunho de tal ejaculação
que sobre o mundo, férvida, me
desce!
Esse é o esperma dos deuses,
inegável,
que nove musas recolheram para
mim
e novamente me convertem num
Apollo,
fisicamente imperfeito, mas
amável,
nessa ereção do sangue num
clarim,
quando Calíope se reclina no meu
colo!
ESPERMA 2
E como é doce o beijo em tal
momento,
quando me suga os lábios; e
os testículos
me esgota, qual orgia em
conventículos,
testemunhando a magia de um
portento...
E como eu fico estuante de
energia!...
Nunca soube isso que chamam
depressão
pós-coital. O que sinto é
fragor no coração,
que então convoca à nova
fantasia!...
E me ponho a escrever mil outros
versos...
É como se aliviasse uma pressão,
que liberasse a mente à
realidade...
A carne exulta em tais filhos
dispersos
e me renovo mais nessa explosão,
quanto mais me desgasto em
saciedade...
ESPERMA 3
Não pode o homem ter certeza de
sua prole,
por isso a mãe é que mais se faz
repleta;
alheio esperma vagina e ventre
afeta,
mas é seu óvulo que o escolhido
engole...
Para o homem, outro esperma há
que o enrole:
é a alma de Dioniso que o
completa,
na embriaguez seminal de cada
seta
que as bacantes lhe trazem que
ele acolhe.
Os óvulos do sonho são plantados
e no cérebro se faz a concepção:
linfa vermelha se opõe à
menstruação
em quantos são por eles
abençoados,
no esplendor pós-coital de cada
verso,
no puro orgasmo de tal fulgor
converso!
TRANSMIGRAÇÃO I (2006)
Uns trinta anos atrás, me apaixonei
por um tronco de árvore, derrubada
durante a ventania. Assim, tombada,
a cerca de cem metros contemplei.
Um galho erguido para o alto, eu sei,
contra o tronco desnudo e reclinado...
Mas eu sentia que ainda era habitado
pela hamadríade. E o tronco preservei,
até que consentisse, após dois meses,
que em lenha o transformassem, por calor.
Há poucos dias, vi outra árvore e já
roxas estavam as flores e os talvezes...
Seria possível que meu velho amor
morasse agora em um jacarandá...?
TRANSMIGRAÇÃO II – 4 OUT 14
Naqueles anos eu empregava picareta,
de abrir uma piscina na intenção,
paleando a terra com toda a devoção;
de escoamento abri também uma valeta;
de mim zombavam por escavação direta:
com qualquer escavadeira nesse chão
bem mais depressa se abriria o buracão!...
Porém eu tinha intenção bem mais secreta...
O que eu queria era desenvolver
o conjunto muscular, pernas e braços,
e do tronco retirar toda a gordura,
julgando assim melhor me parecer
e conquistar número maior de abraços,
pelo desgaste da antiga investidura...
TRANSMIGRAÇÃO III
Eventualmente, tive esses resultados,
mas a piscina nunca completei...
Duas paredes de pedra até aprontei,
dois pedreiros a meu lado contratados...
Depois viajei, deixando abandonados
cova e valetas em que tanto trabalhei;
anos depois, porém, quando voltei,
já eram outros os alvos acertados...
E comecei a podar vasto jardim,
hastes cortando dos pés amarelados,
enquanto mudas traziam para mim;
foi só então que a conhecer eu vim
essa minha ninfa dos galhos derrubados,
que só de longe me abanava, enfim...
TRANSMIGRAÇÃO IV
Pois cada vez que a foice abandonava
e por entre os pés de xirca ia chegando,
do seu abano me ia desesperando:
pura madeira de perto contemplava...
E até de noite, quando ali chegava,
na vã esperança de que sob luar mais brando
a hamadríade estivesse me esperando,
madeira seca somente eu encontrava...
De qualquer modo, conservo meu amor
por cada árvore que encontre no caminho;
igual que ave quisera fazer ninho
e lá encontrar essa ninfa com calor
a me acolher, como se fosse passarinho,
qual novo galho enroscado no anterior...
CEGUEIRA
I (2006)
das
árvores as copas tem Segredos
até dos
ventos, que ciosas Guardam...
os
velhos deuses penam em Degredos
e seus
corcéis para um exílio Albardam.
não há
lugar para deuses neste Mundo
em que,
feroz, dominou o Monoteísmo
de uma
igreja altiva em seu Profundo
orgulho
de guardiã de um só Teísmo...
mas as
ninfas borbulham pelas Fontes,
mesmo que
os homens não mais as Reconheçam...
e as
hamadríades sussurram pelos Galhos.
e eu
reconheço espíritos nas Pontes,
nas
nuvens e no lodo a que Pertençam,
por mais
que meus sentidos sejam Falhos.
CEGUEIRA
II – 11 NOV 14
aí estão
elas e a primavera Legam,
as
brisas do verão sobre teu Rosto,
o
líquido estridor de cada Mosto,
as
carícias das pétalas que Apegam;
porém de
vê-las realmente as vistas Negam:
vês tão
somente a obra do Desgosto,
talvez
no sonho mais lento em seu Encosto,
teus
beijos sobre as pálpebras te Cegam.
na
verdade, nem é bom que sejam Vistas
por teu
olhar, pois quantos Contemplaram
e as
lançaram em fogueiras ou Prisões?
mas
ainda adejam suas asas e suas Cristas
e mesmo
ocultas, ao devanear se Apresentaram,
no
cristalino refluir das Emoções...
CEGUEIRA
III
na
verdade, há uma certa Presciência
em uma
fé que adora tantos Santos
e que a
madonas faz subir os Cantos
de cada
terço murmurado em Insistência.
é o
henoteísmo que aqui surge, com Potência:
um
grande deus com milhares sob os Mantos,
mais
próximos dos risos e dos Prantos
de quem
recorre, presa de Impaciência.
se não
te atende a Suprema Divindade,
nem
Jesus Cristo se mostra um servo Teu,
velas
acendes a teus ídolos de Barro,
pretendendo
subornar a sua Piedade
com tuas
promessas inúteis de Sandeu,
perante
a fé incrédulo e Bizarro!...
CEGUEIRA
IV
eu,
porém, nunca fui de acender Velas
a tais
estátuas de mármore ou de Gesso;
se algo
preciso, direto a Deus eu Peço,
que até
hoje protegeu-me das Procelas;
mas
nunca espero sobre Ele pôr as Selas;
é mais
respeito e gratidão que Meço;
melhor
que eu, sabe bem quanto Mereço,
sorrindo
apenas para minhas Bagatelas...
de forma
idêntica, minhas ninfas Reconheço,
os
gênios, os espíritos e as Fadas,
sem
esperar que sequer vê-los Concedam,
pois nem
ao menos enxergá-los Peço,
tão
somente o perceber de tantos Nadas
que
indistintos, nalma ainda se Quedam.
COLMEIA
I – 12 NOV 14
No
labirinto dos favos, as abelhas
Zumbem
a música de seu eterno mel,
Ou
fazem cera com ressaibo a fel,
Em
vidas breves, sem ficarem velhas;
Sobrevivem
no soro essas centelhas
Em
que a rainha produz novo quartel
Das
hostes operárias, qual corcel
Dedicada
ao renovar de suas parelhas.
Nas
vidas curtas, parecem extinguir-se,
Porém
sua comunidade subsiste;
Por
ela morrem, ao perder ferrão,
No
coletivo existir a persistir-se,
Cada
uma delas com algum pólen assiste...
Para
que céu abelhas mortas vão?
COLMEIA
II
Do
mesmo modo, cada um de nós,
Mesmo
sem disso ter real consciência,
Reúne
o pólen da vida em persistência
Ou
vai nos favos produzir o mel empós.
Chega
o momento de morrermos sós,
Com
alegria ou permeio a penitência,
De
qualquer modo a participar da densa
Enxaimeria
dessa humana voz.
E
as mães da raça seguem produzindo
Os
novos operários diligentes
Para
novas gerações da humanidade;
Mas
há outra mão também nos conduzindo,
Sem
que os fadários sejam negligentes,
Mas
progressivo mel da realidade.
COLMEIA
III
assim
sempre vivi. O meu passado
está
morto... Em arquivos alienado,
alguns
de bem, muitos de atribulado
enfrentar
de momentos, em outros indiferente
rememorar
de fatos corriqueiros:
rotinas
a esquecer... Hospitaleiros
foram
mais os instantes derradeiros
em
que cumpri meus deveres. Finalmente,
certos
momentos de criação brilhante
de
música ou de versos... Da estuante
regência
de um coral... Da talentosa
performance
num palco... Ou do frequente
fruir
do orgasmo, em morte renascente,
como
o esplendor solar que queima a rosa...
COLMEIA
IV
Assim
és tu em cada ato menor:
Algo
de ti contribui para esse enxame;
Quiçá
uma obra de arte se proclame,
Quem
sabe até edificação maior.
Talvez
apenas a vida, em seu pior
Sofrimento
a que a maladicha te dane, (*)
Talvez
um jeito de ser que a mágoa bane:
Dás
à colmeia teu pouco ou teu melhor.
(*) Má sorte, em espanhol e gauches.
E
tudo escorre para o mesmo fim:
Ovos
eclodem para o teu labor,
Mas
não para te dar felicidade.
Zumbem
tuas asas como toque de clarim
Sobre
o palco da vida, com ardor,
Até
que surja o momento da verdade.
REGRAS DA VIDA XX
Não viver no futuro é bem
difícil.
O passado se perdeu, é
irretraçável
tanto o bem cometido e o
imponderável
lamento pelo mal que não se
fez...
Mas o presente é insustentável
míssil.
Não se toca sequer por um
momento:
o início do beijo, num
portento,
já pertence ao passado e se
desfez...
Em que viver, senão pelo
futuro?
É só o que temos, mesmo sem
saber
o que nos traz, nem qual a
consequência
do que agora fazemos, no
inseguro
contemplar dessas contas... a
correr,
por entre nossos dedos, sem
paciência...
ADVERSIDADE I – 13
nov 14
Estranho é esse
mistério, que concita
o homem à mulher...
Ferocidade
além dos feromones
e desdita
do mais perfeito
cercear da liberdade.
Não é a busca
sequer da saciedade
essa atração que,
plena, regurgita...
Nem tampouco se quer
felicidade:
é a sedução
apenas... Essa aflita
busca da mescla em
sólida fusão...
Não é o estranho
impulso sensitivo
que nos faz
arriscar a própria vida...
Nem biológico
anseio redivivo,
no instante simples
da reprodução....
É a mágoa
acesa da ilusão perdida.
ADVERSIDADE II
Porque essa entrega, bem contado, é adversa;
bem mais queria ter o varão dispersa
a sua semente em mil receptáculos,
ver noutro vento sua imagem reconversa
igual migalha de si noutrem conversa,
marca de bispos e pastores em seus báculos,
talvez uma esperança até perversa
de a morte reduzir a poeira inversa...
E ao extinguir-se, ver a vida multiforme
que saiu de si mesmo, permanente,
enquanto as órbitas conservam sua visão,
enquanto a própria velhice o faz disforme,
na descendência se contempla, complacente,
daqueles que após ele ficarão...
ADVERSIDADE III
Deste modo, faz melífluo sacrifício
quando se entrega totalmente por amor
e considera com ínclito pendor
essa parceira com que o último resquício
de sua virilidade reparte, qual um vício,
por um perfume redolente de calor,
a quem se entrega, solene em seu vigor,
na esperança de um constante benefício.
Até que chega dela a menopausa,
os filhos já gestados e nutridos
e descartada se percebe em biologia,
quando provoca falsamente a andropausa
e os espermatozoides ainda produzidos
são lançados assim à desvalia...
ADVERSIDADE IV
De qualquer modo, é um destino melancólico
desses milhares que nascem diariamente,
para o melhor ou, talvez, mais diligente,
ser de todos só o aceito em dom eufórico,
por esse óvulo gigantesco e esférico
que um só escolhe, caprichosamente
ou por motivos de compreensão ingente
ou pela força de seu ritmo sistólico...
Mas milhões outros ficam no caminho
ou cercam a gigante, desesperadamente,
sem nela achar sequer um interstício;
e assim amor não é mais do que mesquinho
assassino de milhões, indiferente,
nessa hecatombe de constante malefício.
ADVERSIDADE V
Será que nossa vida é semelhante:
que entre milhões só um seja escolhido
para a lembrança, para a honra tido
ou aleatório é tal destino expectante?
Pois todos morrem, chegado o seu instante:
alguns repartem todo o bem adquirido,
outros a obra à qual tenham nutrido,
outros deixando de si só o bastante
para a seu túmulo dar preenchimento...
Será que a maioria só resseca
e para o mundo exterior é repelida
ou então existe, de fato, acolhimento
em algum mundo ao infeliz que peca,
igual a quem teve
meritória vida?
ADVERSIDADE VI
Eu não recordo de
ter lido em qualquer parte
que alma aos espermatozoides
atribuíssem,
porém não creio que
só meus olhos vissem
o seu possível
continuar após descarte...
Porque negar que os
bilhões postos a parte
em qualquer modo ou
lugar não ressurgissem?
Que em outro corpo
mortos irmãos viessem
por nova sorte atentar
assim, destarte...?
E se esse fosse o
verdadeiro inferno?
Reviver diariamente
igual destino,
até que um só
alcançasse fecundar
e se tornasse em
infante de olhar terno,
deitado em berço,
com peito supino,
que algures fosse
grandes feitos realizar?
CLEMATITE I – 14 NOV 14
NA CASA DA MEMÓRIA EXISTEM QUARTOS
AMPLOS, ESTRANHOS, MUITOS ESQUECIDOS,
E É NESTES QUE SE ENCONTRAM ACOLHIDOS
OS VERDADEIROS SONHOS E OS MAIS FARTOS.
É O OLVIDO QUE PRODUZ MELHORES PARTOS
DESSES RETRATOS PUROS, ENCOLHIDOS
EM TAIS COMPARTIMENTOS, ENVOLVIDOS
NA SEDE AVELUDADA DOS REPARTOS.
AS COISAS QUE SE LEMBRA COM FREQUÊNCIA
NÃO TÊM IGUAL VALOR: LEMBRAS LEMBRANÇAS,
MEMÓRIAS ESTAS DE MAIS RECORDAÇÕES
E NO FINAL, FOI BEM DIVERSA ESSA OCORRÊNCIA...
MELHOR LEMBRARMOS AS ANTIGAS ESQUIVANÇAS
QUE ANESTESIAMOS EM FORTES EMOÇÕES.
CLEMATITE II
DE CLEMATITES MUITAS ESPÉCIES HÁ:
MAIS DE TREZENTAS, BOTÂNICOS AFIRMAM;
É NA FAMÍLIA DOS RAINÚNCULOS QUE SE FIRMAM
E NOS FLORAIS DE BACH ATÉ UMA ESTÁ...
SERVE A QUEM SUA MENTE FIRME NÃO TERÁ,
PORÉM DIVAGA; AOS QUE DA MEMÓRIA ENFERMAM
OU AS LIGAÇÕES DE FATOS NELES MERMAM,
GENTE QUE POUCO CONTRIBUIR AO MUNDO DÁ.
CHAMAM A UMA “ALEGRIA DO VIAJANTE”,
PORQUE SE ENCONTRA À BEIRA DOS CAMINHOS
A OUTRA CHAMAM DE “TOUCEIRA VIRGINAL”
E OUTRA “BARBA DE VELHO”, INTERESSANTE
COMO VARIAM OS CAPRICHOS COMEZINHOS
DOS QUE NOMEARAM ESTA VINHA NATURAL!
CLEMATITE Iii
POR ISSO, COM UM CHA DE CLEMATITE
TALVEZ CONSIGAS DESPERTAR AS TUAS QUIMERAS,
VER-TE VAGUANDO POR ANTIGAS ERAS
OU TRANSFORMADO EM BISCUIT DE GALALITE...
A SUA INFUSÃO COMBATE A SINUSITE,
DOS PESADELOS CONQUISTA AS RUDES FERAS,
PERFUME TRAZEM DAS VELAS PARA AS CERAS:
TOMA A TISANA, QUE A BOM SONHO TE INCITE...
ASSIM SOBEM AS LEMBRANÇAS DAS CAVERNAS,
SEM AS REDES DOS MONSTROS DO INCONSCIENTE
E BRILHA EM TI A CRIATIVIDADE...
EM SUAS NUANCES VIOLETAS SÃO ETERNAS
AS MUITAS VIDAS POR QUE PASSASTE RENTE,
SEM QUE AS TIVESSES AMADO DE VERDADE...
WILATIATI I (15 NOV 14)
DE QUE TE SERVE
MOSTRAR AMOR
PARA QUEM NUNCA MERECEU TAL JÓIA?
DE QUE NOS SERVE
SEMPRE AMPARAR
A QUEM SABEMOS NUNCA NOS APÓIA?
JÓIA QUEBRADA
OSSO PARTIDO
AMOR NÃO VALE MAIS QUE UMA TIPÓIA
E NOS SUFOCA
CANÇÃO PARTIDA
QUAL JAVALI NAS MALHAS DA JIBÓIA.
RESTA SOMENTE
PERFUME ANTIGO
SOBRE AS NARINAS DA ESPERANÇA MORTA.
WILATIATI II
NOS DIAS DE HOJE
A GENTE ESQUECE
O QUE FOI TÃO CELEBRADO ANTIGAMENTE.
O ATUAL PODER
BUSCA APAGAR
AS ANTIGAS REALIZAÇÕES DE NOSSA GENTE.
NESTE NOVEMBRO
NESTA QUINZENA
A REPÚBLICA SE OLVIDA TÃO FREQUENTE!
EM OPOSIÇÃO
À ANUAL CELEBRAÇÃO
EM QUE O EXÉRCITO SE FAZ SEMPRE PRESENTE
NA IMPOSIÇÃO
LENTA E SOLERTE
DESSES IDEAIS QUE NUNCA FORAM NOSSOS.
WILATIATI III
VEJA-SE BEM:
NÃO SOU REPUBLICANO
TENHO SAUDADE DOS ANTIGOS REIS.
NUMA JUSTIÇA
BOA E PATRIÓTICA
QUE GOVERNAVA O MUNDO COM SUAS LEIS
ENQUANTO HOJE
MIL CODICILOS
AS BRECHAS ABREM NAS LUZES EM QUE CRÊS
A FERA SOLTA
DEVORA TUDO
E A TEU REDOR A INQUIETAÇÃO SÓ VÊS
MAS DE QUE SERVE
MOSTRAR AMOR
A UM PAÍS A QUE OS DEMAIS CONSOMEM?
WILATIATI IV
NÃO OBSTANTE,
EU SOU PATRIOTA
E RESPEITO COM AMOR NOSSO PASSADO
TÃO ESQUECIDO
MAL ENSINADO
E DE PROPÓSITO ATÉ VILIPENDIADO
POR ESSA GENTE
QUE QUER LUCRAR
E SE APRESENTA QUAL UM DEUS ALADO
O NOSSO POVO
A DIVIDIR
EM FALSO TOM DE DESVIO DELIBERADO
MAS AINDA MOSTRO
ÁGUA NO OLHAR
SEMPRE QUE ESCUTO O HINO NACIONAL.
CANTO IMUNDO I – 16 NOV L4
Quando os zumbis procuram, sorrateiros,
erguer-se mais acima dos portões,
alguns pedaços já deixados nos caixões,
eu chego a sentir pena dos coveiros...
É pela noite que saem os seresteiros,
os que ainda podem sentir predileções
e se querem apresentar às multidões
para abraçar seus velhos companheiros...
Mas de manhã são vistos já amontoados
ou junto às puas de ferro ainda empalados,
perdido o impulso que lhes dava a Lua!
E para retorná-los às gavetas,
levados apenas por intuições secretas,
cada coveiro em tal tarefa sua!...
CANTO IMUNDO II
“Saiamos a zumbir pela avenida!”
Dizem os mortos-vivos, uns aos outros.
E saem mesmo, como mancos potros,
nos televisores buscando falsa vida!...
Hoje é costume tal procissão fedida
mostrar dentro das casas, feios rostos,
alguns ansiados por cachaça e mostos,
outros fazendo os vivos de comida!...
E qualquer um que sustente encantamento
se quer juntar aos mortos digitais
ou em festas de zumbis nos carnavais!
Que coisa pobre tal entretenimento!
Pena que os cheiros não transmitem jamais
esses filmes de zumbis em movimento!...
CANTO IMUNDO III
Tudo resulta de má interpretação:
de fato, no Haiti, alguns houngans
dominar sabem, com fórmulas malsãs,
em fingimento, qualquer morte na ocasião.
Cai em letargo quem bebe essa poção,
sua pele úmida e fria igual que rãs,
mesmo enterrados em quaisquer manhãs,
são despertados para longa escravidão.
Pouco respiram e sua alimentação
é mais dos líquidos que perpetuam o feitiço,
pois não morreram, só perderam todo o viço;
mas permanecem nessa triste situação
até que o corpo se desmanche aos poucos:
dores não sentem, quais leproso ou loucos...
CANTO IMUNDO IV
Mas querer que defuntos verdadeiros
consigam de suas covas escapar
é resultado de perverso imaginar,
pois já perderam os movimentos derradeiros.
Porém os irresponsáveis curandeiros
que por cineastas se querem passar,
matam atores para depois os reanimar,
sem que de fato morram os primeiros...
Mas que dizer, se houver gente suficiente,
movida pelo terror dos pesadelos,
que em mortos-vivos possa acreditar?
Não é impossível até que algum demente
saia nas ruas, eriçando os pelos,
os cantos mais imundos a entoar!...
PRAZER I – 17 NOV 14
A mescla de teu beijo é sol e flor
que me alumia enquanto o peito ofega,
que me perfuma enquanto o olhar me cega,
qual ramalhete a adornar o meu amor.
A mescla de teu beijo é sol e cor
que me embriaga qual vinho de adega,
que de arco-íris a dádiva me lega,
perdido inteiro em lábios de calor.
O beijo inteiro é o borbulhar do ensejo
que leva a novos ósculos ansiar,
boca na boca enquanto a língua espia,
sem saber se se incharia de desejo
ou no marfim iria dos dentes se encerrar,
enquanto o sangue aos lábios refluía...
PRAZER II
A mescla de teu beijo é hoje e antanho
que mais que nunca faz palpitar a vida,
que olvida o mundo em tal fúria incontida:
para o porvir a grade do emaranho...
A mescla de teu beijo é solo e amanho,
fecundação da alma malferida,
a pá e enxada sua carne revolvida,
sabor e gosto do mais doce banho...
O beijo inteiro qual pastel de nata
que se derrete na dança das papilas:
que seja minha sempre essa artimanha!
E que essa sensação nunca se abata
enquanto cintilar luz nas pupilas,
nessa vitória e derrota que se ganha!...
PRAZER III
A mescla de teu beijo é orvalho e fogo
que me consome da cabeça aos pés,
enquanto me refresca, em núbeis fés,
cada suspiro que me sobe a rogo!
A mescla de teu beijo é dança e jogo
em que os montes se abrem nos sopés,
em que os dedos palpitam contra as sés,
nesse zéfiro e marulho em que me afogo!
Que seja o beijo que a alma assim invade,
nessa estranha exultação de sortilégio,
envolvidos todos dois na mesma teia,
uma perpétua, áurea prisão de livre grade,
que nos consagre no mais puro sacrilégio,
como dois círios em que a mente se incendeia!
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