AGASALHO & MAIS
William Lagos
AGASALHO I – 21 JUL
2006
Três beijos
transitórios, sem motivo,
na convenção social,
que hoje aceita
tão natural a prática;
imperfeita
antigamente, tomada
como esquivo
convite disfarçado à
sedução.
Como mudaram os costumes
por aqui!...
Por ter dado um só
beijo, quantos vi
apunhalados em pleno
coração...
Mas o perfume evoco...
Surpreendente
Que em minhas narinas
se houvesse sobreposto
A todos os quereres...
Por mais sábios
meus pensamentos me
informem diferente,
eu só percebo que
ainda sinto o gosto
de suas faces,
na comissura de meus lábios...
AGASALHO II – 05 FEV
2015
Quanta tolice pode
haver no romantismo!
Pois nem sequer é o
perfume natural;
foi sobreposto um
aroma artificial,
no secular feminino preciosismo...
E como o faro moderno
a tal modismo
se acostumou e não
distingue o individual
feromônio da mulher
com que esbarra no final,
já nem existem em tais
odores realismo
que realmente distinga
tal mulher,
tão casualmente a
distribuir seus beijos
e que, de fato, nada
sentiu por mim,
mariposa dos salões,
que nem sequer
a própria face me
mostre em tais ensejos,
por maquiagem
recoberta assim!...
AGASALHO III
Esse perfume na mente
eu construí.
alicerçado na quimera
dos possíveis,
sem ao menos embasar-se
nos plausíveis:
nem mais o rosto
recordo que então vi!
Foi tão só um fantasma
que assumi,
Igual a tantos outros
perceptíveis
devaneios em meu sonho
mal visíveis,
beijos no ar que tomei
e devolvi...
Ficou o salão atulhado
dos insetos
formados de batom e de
saliva,
que sobre tantas faces
escorreram...
Teria alguém mais
desejos tão secretos
que construísse em sua
memória viva
esses fantasmas que,
de fato, nem nasceram?
AGASALHO IV
Contudo, pelo canto de
meus olhos,
eu divisei essas
falsas andorinhas,
a adejar sem pouso,
pobrezinhas,
só nos meus lábios a
encontrar escolhos
em que pudessem se
abrigar, abrolhos
para essas mil
invisíveis avezinhas,
que só eu percebi de
mim vizinhas,
vistas alheias
recobertas com antolhos...
E as acolhi, bem
disfarçadamente;
almas penadas dos
beijos solitárias,
antes que, no soalho,
em ato falho,
caíssem, pisoteadas
calmamente...
Enchi meus bolsos com
suas lamúrias várias
para em meu peito
dar-lhes agasalho...
ANTIQUADO I – 21 JUL
2006
Nos dias atuais, que
tanta variedade
Expõem em quantas
opções sexuais,
Até acho estranho não
querer jamais
Nem zoofilia, nem
homossexualidade.
É como se tais coisas,
totalmente
Fossem alheias:
sadomasoquismo,
Necrofilia, pedofilia,
voyeurismo...
Tudo me deixa tão só
indiferente.
Anseio muito mais por
sentimento,
Que tanto exprimo, nas
palavras velhas,
Dessas baladas tão
somente sensoriais...
E fico a melindrar,
olhos no vento:
Se os homens eu não
quero, nem ovelhas,
Por que mulheres não
me buscam mais?
ANTIQUADO II – 6 FEV
15
Naturalmente que não
as procuro,
Nem vou a festas,
passeatas, carnavais,
Minhas preferências se
derramam mais
Pelas memórias a
dançar no escuro,
Pelos versos
construídos de amor puro,
Pelo zunir dos antigos
canaviais,
Pela malícia perdida
no ademais,
Pelos fantasmas a que
não esconjuro,
Conserve embora clara
preferência
Pelo sexo oposto,
ainda embora
Desconfie de
intrujices femininas...
Ainda que busque sua
gentil audiência
E mesmo as noites de
genital aurora,
Em que me perca em
suas malhas fesceninas.
ANTIQUADO III
A nudez para mim é
mais estética,
Nos padrões que me
incutiu o helenismo,
Nos modelos iniciais
do realismo:
Amar o corpo é parte
de minha ética
E descrevê-lo faz
parte da poética,
Mais por respeito que
por hedonismo;
Também o corpo masculino,
sem machismo,
Mas envolvido em
altivez ascética.
Porém me deixo iludir
pela escultura,
Quando repete a
divinal nudez
De algum modelo há
muito tempo morta;
E que paixão poderá
haver mais pura
Que pelo mármore de
perfeita grês
Cujo arcabouço só em
cinzas se comporta?
ANTIQUADO IV
Por isso eu amo “A
Velha Cortesã”,
Em que Rodin enxergou
tanta beleza
Ou as estátuas
esculpidas com crueza
Pelos romanos após sua
glória vã;
E vejo numas velhas a
luz chã,
Ostentada por algumas
com leveza
Ou a mágoa sublime da
tristeza
De quem enfeita a
cabeça em pura lã.
Pois quem foi bela,
sempre guarda nostalgia,
Mesmo que morta a veja
em ataúde,
Rosto imutável em tal
cerosidade;
Lá está a beleza em
final melancolia,
Porque o frescor das
jovens não me ilude,
Por mais que belas em
sua feminilidade...
RECORDAÇÃO XVI -- 21 JUL 2006
Eu nunca tive pendor
homossexual.
Mesmo que tenham me
tentado, inda menino;
Mas, por minha sorte,
o corpo feminino
Eu conheci bem cedo,
no banal
Porém frequente
aconchego com a menina
Que morava também em
nossa casa,
Na cama em que dormia;
aí se embasa
Meu heterossexualismo:
ela me ensina,
Pois é mais velha e o
corpo masculino
Já conhecia de
antes... coisa triste...
Nunca foi mais que
experimentação.
E como foi estranho
que um menino
Perdesse a virgindade
[se isso existe],
Antes mesmo de tentar
masturbação!...
AS JOVENS DE ROMA II –
CALPÚRNIA – 21 JUL 2006
Meu pátio ressecou:
perdeu suas flores
Nesse inverno talar,
qual primavera,
Mas sem o recender,
sem os olores
De estames e pistilos,
sem a antera
Em deiscência, a
chamegar quimera,
Sem ramos verdejantes
de tremores;
Até o braço da musa é
uma cratera
De que não sai mais
luz, nem mais amores...
E como se acha estéril
meu jardim...?
Há ramos verdes,
farfalhando ao vento,
Promessas vagas, sem
favos de mel;
Mas quando me
aproximo, o vejo assim,
Sem ter
botões... E me esvaio no portento
De tantas flores
que rebroto no papel...
EX AEQUO [por equidade] I – 12 dez 02
Esta mulher que amei, polvilho e sal de aurora,
a cada vez que a vejo, me invade a nostalgia:
primeiro por saber que a outro pertencia,
depois por perceber que livre se acha agora...
E que me procurou, ao tempo que fugia,
para bem longe e quando mais perto se chegava,
para bem perto ao tempo que o corpo me entregava,
para bem longe ao tempo em que a alma me luzia...
Pensar que a vi de novo, sentada do meu lado...
Pensar que, se atrevera, sua mão teria beijado,
e fiquei, todavia, contendo minha emoção...
Pensar que tudo foi somente um vão de aurora,
por dentre a escuridão, que me enche tanta hora,
porque não fui capaz de encher-lhe o coração...
EX AEQUO II –7 FEV 15
São dessas coisas... A roda da Sansara
girou mais uma vez, em novel
encarnação;
quando se libertou, estava eu em
escravidão,
amando agora a outra, embora antes a
amara...
Em outro tempo, eu sei, talvez a
conquistara
e neste tempo, porém, demonstrou-me
sedução,
como forma de mostrar que despertar
paixão
ainda era capaz, que a formosura não
passara...
Ai, esses jogos de amor a que elas se
dedicam!
e nos quais facilmente os ingênuos
enlaçam,
talvez até lhes dando corporal
satisfação...
Mas por qualquer pretexto seu vão
orgulho picam
e como um sonho mau a outro alvo
perpassam,
sentindo até prazer em quebrar um
coração!...
EX AEQUO III
Porém vi nos seus olhos, de relance,
a esperança:
foi quase se buscasse em mim
definição,
mudança de seus sulcos, novel
exultação,
o príncipe encantado dos tempos de
criança...
Se então me dispusesse a procurar
bonança,
talvez nela encontrasse, afinal,
exaltação...
Mas a que me levaria esta nova
aceitação,
quando de fato estava algemado noutra
trança...?
Assim, só conversamos sobre vestes de
arlequim,
sobre teatro, música, o choro dos
jograis,
qualquer memória vã que já não mais
seduz;
depois me despedi, sem um beijo
carmesim,
sem que a nuca percorressem arrepios
siderais
e de seus olhos, de leve, vi
apagar-se a luz...
EX AEQUO IV
Mas devo confessar, para agir com equidade,
que nesse tempo antigo, mesmo não adquirida
por esse aro dourado, a corrente requerida,
o paixão que então gerou foi pura realidade.
Não vou mentir agora, em pretensiosidade,
que só brincou comigo por achar-se malquerida,
porém o que me deu foi parte de sua vida:
fui eu o malfeitor, roubando sua bondade...
As imagens se misturam e nem sequer o gosto
a gente se apercebe dos beijos desse antanho:
até que ponto o olor brotou de cada seio?
Desarrolho lembranças tais quais tampa de mosto,
sem recordar de fato o mais profundo lanho
que me deixou na alma um tão profundo enleio...
DEPÓSITOS
I – 12 dez 02
Faço
poemas demais. Nem sequer tempo
para
os passar a limpo inteiramente eu tenho.
São
estorvo e são peso ou mesmo contratempo
sobre
a mesa em reclamo de permanente empenho.
A
digitar meus versos, linha a linha, se os contemplo
já
surge a ideia nova e em novo risco eu venho.
meu
pensamento esvai-se em refluxo e retempo
e
a pilha cresce. E em desígnio já convenho
quão
improvável seja, no tempo do possível
sequer
deixar em dia essa imensa produção...
E
enquanto o tempo ruge, eu sinto tal cansaço!
Muito
melhor seria, tempo havendo de aprazível,
para
acalmar o tempo do inquieto coração,
o
tempo achar de pôr minha fronte em teu regaço...
DEPÓSITOS
II – 8 FEV 15
Contudo,
neste tempo que hoje me transcorre,
não
tenho algum regaço, pois nele sou fantasma;
mais
do que nunca a solidão me pasma,
por
mais que o rascunhar ou digitar me acorre.
Coincidiu
que hoje, no dia que já morre,
não
telefona a esposa, não sei por que miasma;
não
chegou a empregada, talvez sofreu de asma,
nem
qual parte da cidade minha filha hoje percorre.
Nos
dias em que aguardava ter solidão completa
estava
satisfeito, pois sempre a mim bastei
e
não esperava mesmo que alguém se interessasse...
Mas
hoje uma voltou e seu passear me afeta
e
para a outra em vão telefonar tentei,
ao
descobrir, enfim, que a mim mesmo não bastasse!
DEPÓSITOS
III
Depressa
eu olho em volta e, muito facilmente,
percebo
quantos outros existência bem pior
percorrem
dia a dia, no amplo corredor
do
suave desespero que sobre os tais se assente;
por
grande seja o mal que me chagar frequente,
há
muito compreendi que existe mal maior
no
inferno que habitamos, com todo o seu calor,
na
vida de descrença e medo transparente...
Pois
não temo o futuro e o passado mastiguei;
o
tempo do presente percorro com minha boca,
o
antanho a percutir com malho de ironia;
assim
eu vivo o filme que eu mesmo planejei,
somente
para mim e sem plateia rouca
que
aplauda o meu porvir em plena nostalgia.
DEPÓSITOS
IV
Mas
quanto ao que escrevi, assaz desencontrado
que
espalho por aí, pingando minha semente,
de
cuja aceitação, por certo, sou descrente,
submeto-os
à fogueira do pecado consumado.
Em
vez de lenha, é poeira que tenho acumulado
e
por todo o meu esforço, eu vejo, certamente,
que
tempo não terei para vê-los frente à frente,
senão
como em fumaça de ardor incinerado.
Não
os posso recolher, por mais que a tanto tente:
há
dezenas de milhares já soltos por aí;
uns
poucos deles com raízes em outra mente.
E
embora sua impressão na verdade não me alente,
enxergo
outros milhares amontoados por aqui,
que
me acusam do antanho e murcham no presente.
URTIGAS I – 12 dez 02
Ela chegou de viagem,
furiosa de insegura,
em queixas lamuriando,
por agressiva ser,
de imediato indagando,
sem desejar saber
se lasciva rival me
abraçara com ternura...
Se trabalhara muito, se
a despesa fora dura
em nada a interessava,
não indagou sequer
se me sentia
bem... tão somente se mulher
me avaliara, na
incerteza que perdura...
De fato, só queria sobre
mim lançar o fardo
dessa viagem por não
ser-lhe agradável,
que mais exagerava, para
assim justificável
sentir-se por
lançar-me espinho e cardo,
querendo apenas saber se
era escutada,
sem por mim aceitar
sequer ser abraçada...
URTIGAS II – 9 FEV 15
De novo aguardo seu
retorno de viagem,
mais longa desta vez e
sem saber, de fato,
qual a mulher que vem,
com seu olhar de gato,
com lâmias a luzir no
fundo da visagem...
São muitas num só corpo,
que beijo com coragem;
se uma gentil encontro,
então me sito grato;
mas pode outra chegar,
em vasto espalhafato,
a paz a consumir em
vulcânica voragem...
Qual será esta que
vem? Estará cheia de fúria,
no tom iridescente de
temporal mania
ou apenas a cansada,
passada a adrenalina,
que se lance sobre mim,
no percutir da incúria,
permeio à depressão, em
amável nostalgia,
indulgência a pedir por
caprichos de menina?
URTIGAS III
Terrível coisa é se
sentir um grande amor
por alguém que
certamente o corresponde,
porém guarda esse amor
nem sabe onde
e assim acha difícil
retribuir o nosso ardor.
Terrível coisa é sentir
que se ama com vigor
a alguém que por amor
caprichos lhe responde,
que a ânsia de controle
bastante mal esconde
e insiste no domínio por
dom controlador.
Anteriormente até me dei
a tal operadora,
mas nunca me agradou
agir em masoquismo;
a ela me entreguei do
amor na aceitação;
mas o tempo passou sua
foice cortadora
e hoje me ressinto de
seus atos de sadismo
e a olho indiferente,
sem mais bajulação.
URTIGAS IV
Urtigas picam por sua
própria natureza
e me ensinaram que a
forma de arrancar
era encher os pulmões e
nunca respirar
enquanto se tomava nas
mãos a fera presa.
Mas embora as instruções
seguisse com presteza,
à urticária feroz não
pude me furtar,
mas é contra a raiz que
a mão devia chegar
e puxá-la depressa em
branda fortaleza.
Nenhum mal se consegue
podar só pela rama;
é preciso extrair seu
menor filamento...
Mas que fazer então,
quando esse mal se ama?
Não pelo mal que é, mas
pelo pensamento
do bem que já nos foi,
que a mente ainda reclama
e deseja conservar,
contra o próprio julgamento...
A VIANDANTE I – 13 dez 02
E foi assim que veio: encheu-me de cansaço,
tirando-me a alegria, sem pena, de a rever;
a mim trouxe labor; é meu o quefazer
frequente do esperar inútil de um abraço...
E espero, mesmo assim... Na mente inda retraço
farnel de anos antigos, que busco reviver,
em que real meu sonho surgira, sem poder
imaginar sequer a que ponto meu espaço,
que ocupa tanto agora, sua vida invadiria
e tanta coisa amarga e falsa lançaria
sobre meu peito vão, em tudo complacente...
Sem dúvida eu chegara a dela ter saudade,
que não mostrou possuir; mostrou ser inclemente:
tirou-me a paz, enfim, sem me dar felicidade.
A VIANDANTE II – 10 FEV 15
Agora que iniciei esta réplica ao passado,
seria forçoso sentir de novo o que senti,
mas quem consegue ouvir de novo o alali
das antigas caçadas, das trompas rouco fado?
Há uma pele de raposa, deposta com cuidado
á cabeceira do leito; em Sófia a adquiri;
a pata que lhe falta cortaram-na, senti
após sua morte, sendo entregue como agrado
a quem a abateu com o tiro mais certeiro;
é costume em metal até mesmo engastá-la
e expô-la nas paredes, em singular vaidade,
de forma igual que algum povo mais guerreiro
guardava uma caveira, a fim de pendurá-la
como prova final de sua habilidade...
A VIANDANTE III
E não vejo motivo para me submeter
à tônica de um verso de dez anos ou mais;
vivo somente hoje, perdido no ademais,
que só me chegará após meu escolher,
dentre os fios que se apresentam, decerto por saber
ou então por mero acaso, são baraços naturais,
o cipó que melhor mostra suas ganas digitais
dentre essa infinidade, que depois devo sofrer;
e se essa viandante, nisso que chamo agora,
está longe de mim, como posso conhecer
se de fato ela existe ou se é só meu conceber
que a cria indiferente ou em amorosa hora?
Qual o ser afinal desse fantasma ausente,
que talvez nem retorne jamais para o presente?
A VIANDANTE IV
Há muito suspeitei, em meu solipsismo
que as coisas só existem quando eu as posso ver.
Tomé é meu padroeiro, em seu breve recorrer,
mas não é de seu Jesus o meu duvidosismo;
o que às vezes sinto é que o mundo inteiro eu crismo,
conforme o que preciso para versos conceber.
Nunca sentiste em ti tal tentação crescer
de o mundo dominar, quer planície, quer abismo?
Pois sorrio deste modo à felpa de nevoeiro
que tenta se insinuar e me dizer que o mundo
só existe nestes versos que faço em meu descante;
nos sonhos eu consigo um controlar fagueiro
e as decisões que tomo, em meditar profundo,
mas nunca controlei essa ausente viandante!...
NOVELA I – 13 dez 02
Encontrei uma ideia no
caminho:
levantei-a do chão, devagarinho
e
examinei-a, cuidadosamente.
Era uma ideia nova, parecia:
não estava ainda gasta, reluzia,
quando a girava na palma de minha mão.
Não era ideia minha, com
certeza:
era uma ideia pobre e sem beleza,
mas poderia ser tratada com carinho...
Depois de trabalhada, era
possível:
que tal ideia eu tornasse mais sensível
e mais se coadunasse a meu prazer.
Levei-a para casa, dei-lhe
um banho:
curei-lhe a sarna, retirei-lhe o ranho,
depois lhe dei um prato de comida...
Arranjei-lhe um lugar em que
dormisse:
num canto de minha mente; e refletisse
meus próprios pensamentos sobre a vida.
Quando acordou, nutri-a
com meu sangue:
mostrei-lhe
como andar na mesma gangue
das
opiniões que sempre defendi...
Ela escutou minha voz e
fez-se bela:
vestiu-se e maquiou-se; e da janela,
contemplava o mundo que passava.
Foi perdendo seus defeitos,
engordou:
e por um certo tempo, até me amou
e me vigiava, pelo canto de seus olhos.
E tanto fez, que até me
seduziu:
com meu próprio pensamento, me traiu
e nunca quis transformar-se num soneto.
Não era minha,
afinal... Era da rua:
despiu-se de minhas roupas, fugiu nua
e foi-se embora, sem me dizer adeus...
NOVELA II – 11 FEV 15
É perigoso se olhar para a
calçada,
pode haver outra ideia abandonada
e de novo sentir-me seduzido...
Pois recolhê-la posso, igual
que a um gatinho;
talvez tenha o olhar meigo de um cãozinho,
desses que vejo em figuras de mangá...
Mas ambos crescem, se lhes
der comida
e exigem boa parcela de tua vida;
com eles gastas mais do que contigo.
Crescendo o
gato, se contenta em ser bonito
e a casa inteira controla em seu agito,
como se fosses apenas empregada...
Crescendo o cão,
este será fiel
e vai latir, sentinela do quartel,
querendo repelir qualquer estranho...
Mas se for uma
ideia, o que fará?
Será indiferente ou te amará?
Ou quiçá te mostrará ressentimento?
Não bastará que
lhe dês uma tigela,
cheia de leite ou de ração singela...
Será uma ideia gato ou ideia cão?
Aos animais
poderás dar um abrigo,
uma cestinha ou um carrinho que, contigo,
seja levado aonde quer que vás...
Mas estarão o
tempo todo fora
e se quiseres, também podes ir embora,
para voltar depois de teu trabalho...
Mas a ideia
terás de pôr na mente,
quer seja benfazeja ou malquerente:
seu leite e sua ração serão tua vida.
Portanto pensa,
se encontrares na calçada
qualquer ideia estranha abandonada,
pois poderá dominar-te inteiramente!
NOVELA III
Mas ideias podem
ser muito importantes.
mudar o mundo em rasgos delirantes,
transformar o pensar da humanidade.
Por que alguém a
teria então perdido?
Porque não foi capaz, foi esquecido
ou demonstrou-se a ela indiferente?
Será que alguém
essa ideia jogou fora?
Deixou-a cair sem pena e foi embora,
para cuidar de seus próprios afazeres?
Será que a ideia
no seu bolso estava,
na carteira, porém, não a guardava
e a deixou cair, sem farfalhar?...
Porque
ideias não são feitas de metal;
fossem moedas, seria menor mal:
cairiam na calçada, a tilintar!...
Será que alguém
não a pegou antes de mim?
Viu-a enlameada e descartou-a assim,
os dedos a limpar no seu fundilho?...
Será que a ideia
era pouco lisonjeira:
escapou por entre os dedos, zombeteira;
era de noite e não a pôde achar?
Será que a ideia
era escorregadia
ou de sua mão o calor condensaria
e deslizou, com sua linfa de metal?
Será que a ideia
queria liberdade
e se jogou, em um ato de impiedade,
para escapar de quem a conduzia?
E só um cérebro
cogente a acolheria,
que com cuidado a desenvolveria,
com suas múltiplas implicações?
E foi a mim que
ela atraiu, enfim,
sussurrando o seu toque de clarim,
para que a visse e nela não pisasse?
NOVELA IV
Mas acabou por sofrer
desilusão:
conservei-a fechada ao coração,
sem permitir que se lançasse ao mundo.
Queria mais que minha
mediocridade,
desejava dominar a humanidade,
reproduzir-se em centenar de mentes...
Ideia egoísta, que de mim
não teve pena;
era papoula e não branca açucena:
talvez quisesse transformar-se em ópio.
Sem encontrar em mim outro
narcótico,
encolhida por detrás do nevo ótico,
a contemplar tão só o computador...
E por mais que paisagens lhe
mostrasse
e as imagens de museus lhe apresentasse,
não passaria de uma observadora...
E ela queria, de fato, ser
rainha!
Tanta ilusão, ainda era mocinha,
talvez pensasse transformar-se em miss...
Mas que fazer? A ideia era baixinha,
sem preencher os tais padrões que vinha
a passarela de tantas exigir...
Ou quiçá se inscrevesse num
partido,
ser deputada teria conseguido,
com novas lemas que poderia apresentar.
Mas como disse, ela fugiu-me
nua,
sua pele a refletir a luz da lua,
de minha porta escorreu pelo sopé...
Não mais a busco. De fato, me cansei;
boa parte de minha mente então lhe dei,
quando se foi, deixou-me seu vazio...
Mas ainda ando de noite
pelas ruas,
com minhas vistas varrendo como puas
as tijoletas, para ideias encontrar...
NO ENCALÇO DA NOVELA I – 12 fev 15
Posso dizer, com toda a seriedade,
que a ausência dessa ideia me afetou;
eu a amei; contudo, não me amou,
mesmo prazer me dando em saciedade,
pois coabitamos em minha mentalidade,
foi esposa, foi amante, me mimou
a tal ideia que em mim se introjetou:
até pensei que fosse minha de
verdade...
Como a gente se engana com uma ideia!
Ela sorri, se introduz, devagarinho
e finge até querer buscar a
escravidão,
mas quando se retira, arranca veia,
corta as artérias com feroz espinho,
leva consigo até o teu coração!...
NO ENCALÇO DA NOVELA II
E por que de tal ideia deveria
afinal apropriar-me? Eu tenho
tantas!
Tu mesma, se me leste, já te espantas
que assim, tão facilmente, eu poderia
compor sem dolo centenas de
sonetos...
Uns melancólicos, outros de alegria,
cheios de graça uns, quase magia,
jorrando em catadupas de quartetos...
Mas é que a tal ideia, pobrezinha,
abandonada de todos, tão mesquinha,
acendeu-me lamparina ao coração...
E eu quis que bruxuleasse para mim.
De certo modo, fui egoísta, assim,
ao transformar em fluorescente esse
lampião...
NO ENCALÇO DA NOVELA III
Essa ideia, por mais que parecesse
deixar-se trabalhar, foi sempre
esquiva.
Era rebelde; ao invés de humilde,
altiva,
como se um grande favor me concedesse
ao submeter-se a mim; se obedecesse
na maneira de agir, na cognitiva
busca de mim... Em tudo foi
furtiva,
sem que sequer por instante se
rendesse.
E, desse modo, a preparei e ao mundo
lançou-se enfim a reluzente gema,
cuja ganga eu retirara, em dom
secreto
e até clivara, em lapidar profundo...
E então repito dessa ideia: foi
poema,
mas nunca sujeitou-se a ser soneto.
LOGICIEL i – 13
FEV 15
AO LONGO DESSES
ANOS, MUITAS VEZES
PROCUREI COMPREENDER
O QUE PENSAVA
A MINHA AMADA,
A ESTRANHEZA DO QUE ACHAVA,
COMO MUDAVA NO
PERPASSAR DOS MESES...
MAS
COMPREENDÊ-LA DE FATO, QUAIS AS TESES
QUE ORIENTAVAM
AS PALAVRAS QUE ESCUTAVA
EU NUNCA
PUDE. FOSSE TU, EU NEM TENTAVA:
NA TENTATIVA
TALVEZ TUA MENTE LESES.
LI ALFARRÁBIOS
PARA VER SE DESVENDAVA
ESSES MEANDROS
DE ESPLENDOR SECRETO:
FÓRMULA MÁGICA
ENCONTRARIA DE ESPLENDOR.
MAS POR MAIS
QUE MEU SENTIR DESPEDAÇAVA,
NADA, AFINAL,
RESULTOU-ME DE CONCRETO:
SÓ CONSEGUI FOI
DEMONSTRAR-LHE MEU AMOR.
LOGICIEL II
O RACIOCÍNIO DO
HOMEM, RETILÍNEO,
LOGO SE PERDE
NA CURVA MULTIDÃO
DO RACIOCÍNIO
FEMININO; E ENTÃO
SE FAZ ONÍRICO
EM MERGULHO CURVILÍNEO.
É COMO SE OS
DETALHES DO DESÍGNIO
FOSSEM
COMPOSTOS POR PERFIS EM SUCESSÃO,
QUAL SE OS
CONTORNOS, EM CADA OSCILAÇÃO
FOSSEM UM POUCO
DIFERENTES; RACIOCÍNIO
MUITO MAIS
QUÂNTICO QUE NÍTIDO, NO QUAL
CADA DETALHE,
AO SER RETIFICADO,
SE TORNA DE
IMEDIATO DISTORCIDO,
POR SER A UM SÓ
TEMPO FALSO E REAL,
DEPENDENTE DE
UMA ESCOLHA E AFIRMAÇÃO
QUE NÃO SERIA
DE RETILÍNEA EXECUÇÃO.
LOGICIEL iii
POR ISSO, NÃO
CONVÉM PROFUNDAMENTE
AUSCULTAR A
CABEÇA DA MULHER;
AMOR NÃO BASTA
PARA TAL MISTER,
HÁ DEMASIADOS
LABIRINTOS NESSA MENTE.
UM HOMEM CHEGA
AO VESTÍBULO APARENTE
E PERCEBE QUE
FAZ PARTE DE QUALQUER
ONÍRICO
COMPLEXO; E SE QUISER
IR MAIS
ADIANTE, A PRISÃO É PERMANENTE.
PORQUE NO
CÉREBRO DA MULHER AMADA
HABITAM ÀS
CENTENAS SUAS RIVAIS;
AMA-SE UMA,
ODEIA-SE OUTRAS MAIS
E AO SEGUIRMOS
MAIS ADIANTE PELA ESTRADA,
DESEMBOCAMOS EM
PRAÇA MILAGROSA
EM QUE HÁ UMA
FORCA DE GUIRLANDAS ROSA.
ESTELAR I – 14 FEV 15
Na sala escura só a tela brilha,
Janela para o sonho de meus versos,
Janela para mundos tão diversos
Que a vida inteira em vaga luz encilha,
Pois abrir-me poderia muita trilha
Diversa plenamente dos conversos
Devaneios em palavras vãs dispersos
Em tanta plaga de outra mente filha.
Do mesmo modo que a correspondência
Também para outras mentes dirigir
Me prenderia, mas nesta noite fria
Eu só penso nestes dias de tua ausência
E não desejo sequer me transmitir
Para ninguém e nem sentir mágoa vazia.
ESTELAR II
Na mente escura só o sonho brilha,
No despertar de sua desfaçatez;
Enquanto dura, tem formosa tez:
Posso entender cada detalhe de sua trilha.
Mas quando a luz da manhã já se perfilha
E quer o sonho definir em nova grês,
Toda lógica se evola em brando pez,
Vai-se a lembrança no
quebrar da bilha.
Só imagino se nos correspondentes
Que no sonhar encontro tão frequentes
Poderia de fato ter confiança...
Quais os ambientes dessa nova tela
Cujos comando me acionam como estela,
Configurados, talvez, desde criança.
ESTELAR III
Será que a tela sou eu que configuro
Ou lança os seus tentáculos sobre mim
E minha vida configura assim
Enquanto julgo que a contemplo de olhar puro
Mas apenas me hipnotizo no esconjuro,
Dançando nos cordéis, qual arlequim,
A perfilar-me a qualquer toque de clarim,
Enquanto a tela me pinta em chiaroscuro?
Assim eu penso que sou constelação,
Um estelar de pixels, quadriculado,
Como as vestes do arlequim, em analogia,
Figura apenas de tal configuração,
Meu estelar de cometas controlado
Enquanto a tela tremula e então me cria...
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