terça-feira, 10 de fevereiro de 2015





AGASALHO & MAIS
William Lagos

AGASALHO I – 21 JUL 2006

Três beijos transitórios, sem motivo,
na convenção social, que hoje aceita
tão natural a prática; imperfeita
antigamente, tomada como esquivo

convite disfarçado à sedução.
Como mudaram os costumes por aqui!...
Por ter dado um só beijo, quantos vi
apunhalados em pleno coração...

Mas o perfume evoco... Surpreendente
Que em minhas narinas se houvesse sobreposto
A todos os quereres... Por mais sábios

meus pensamentos me informem diferente,
eu só percebo que ainda sinto o gosto
de suas faces, na comissura de meus lábios...
  
AGASALHO II – 05 FEV 2015

Quanta tolice pode haver no romantismo!
Pois nem sequer é o perfume natural;
foi sobreposto um aroma artificial,
no secular feminino preciosismo...

E como o faro moderno a tal modismo
se acostumou e não distingue o individual
feromônio da mulher com que esbarra no final,
já nem existem em tais odores realismo

que realmente distinga tal mulher,
tão casualmente a distribuir seus beijos
e que, de fato, nada sentiu por mim,

mariposa dos salões, que nem sequer
a própria face me mostre em tais ensejos,
por maquiagem recoberta assim!...

AGASALHO III

Esse perfume na mente eu construí.
alicerçado na quimera dos possíveis,
sem ao menos embasar-se nos plausíveis:
nem mais o rosto recordo que então vi!

Foi tão só um fantasma que assumi,
Igual a tantos outros perceptíveis
devaneios em meu sonho mal visíveis,
beijos no ar que tomei e devolvi...

Ficou o salão atulhado dos insetos
formados de batom e de saliva,
que sobre tantas faces escorreram...

Teria alguém mais desejos tão secretos
que construísse em sua memória viva
esses fantasmas que, de fato, nem nasceram?

AGASALHO IV

Contudo, pelo canto de meus olhos,
eu divisei essas falsas andorinhas,
a adejar sem pouso, pobrezinhas,
só nos meus lábios a encontrar escolhos

em que pudessem se abrigar, abrolhos
para essas mil invisíveis avezinhas,
que só eu percebi de mim vizinhas,
vistas alheias recobertas com antolhos...

E as acolhi, bem disfarçadamente;
almas penadas dos beijos solitárias,
antes que, no soalho, em ato falho,

caíssem, pisoteadas calmamente...
Enchi meus bolsos com suas lamúrias várias
para em meu peito dar-lhes agasalho...

ANTIQUADO I – 21 JUL 2006

Nos dias atuais, que tanta variedade
Expõem em quantas opções sexuais,
Até acho estranho não querer jamais
Nem zoofilia, nem homossexualidade.

É como se tais coisas, totalmente
Fossem alheias: sadomasoquismo,
Necrofilia, pedofilia, voyeurismo...
Tudo me deixa tão só indiferente.

Anseio muito mais por sentimento,
Que tanto exprimo, nas palavras velhas,
Dessas baladas tão somente sensoriais...

E fico a melindrar, olhos no vento:
Se os homens eu não quero, nem ovelhas,
Por que mulheres não me buscam mais?

ANTIQUADO II – 6 FEV 15

Naturalmente que não as procuro,
Nem vou a festas, passeatas, carnavais,
Minhas preferências se derramam mais
Pelas memórias a dançar no escuro,

Pelos versos construídos de amor puro,
Pelo zunir dos antigos canaviais,
Pela malícia perdida no ademais,
Pelos fantasmas a que não esconjuro,

Conserve embora clara preferência
Pelo sexo oposto, ainda embora
Desconfie de intrujices femininas...

Ainda que busque sua gentil audiência
E mesmo as noites de genital aurora,
Em que me perca em suas malhas fesceninas.

ANTIQUADO III

A nudez para mim é mais estética,
Nos padrões que me incutiu o helenismo,
Nos modelos iniciais do realismo:
Amar o corpo é parte de minha ética

E descrevê-lo faz parte da poética,
Mais por respeito que por hedonismo;
Também o corpo masculino, sem machismo,
Mas envolvido em altivez ascética.

Porém me deixo iludir pela escultura,
Quando repete a divinal nudez
De algum modelo há muito tempo morta;

E que paixão poderá haver mais pura
Que pelo mármore de perfeita grês
Cujo arcabouço só em cinzas se comporta?

ANTIQUADO IV

Por isso eu amo “A Velha Cortesã”,
Em que Rodin enxergou tanta beleza
Ou as estátuas esculpidas com crueza
Pelos romanos após sua glória vã;

E vejo numas velhas a luz chã,
Ostentada por algumas com leveza
Ou a mágoa sublime da tristeza
De quem enfeita a cabeça em pura lã.

Pois quem foi bela, sempre guarda nostalgia,
Mesmo que morta a veja em ataúde,
Rosto imutável em tal cerosidade;

Lá está a beleza em final melancolia,
Porque o frescor das jovens não me ilude,
Por mais que belas em sua feminilidade...

RECORDAÇÃO XVI  -- 21 JUL 2006

Eu nunca tive pendor homossexual.
Mesmo que tenham me tentado, inda menino;
Mas, por minha sorte, o corpo feminino
Eu conheci bem cedo, no banal

Porém frequente aconchego com a menina
Que morava também em nossa casa,
Na cama em que dormia; aí se embasa
Meu heterossexualismo: ela me ensina,

Pois é mais velha e o corpo masculino
Já conhecia de antes...   coisa triste...
Nunca foi mais que experimentação.

E como foi estranho que um menino
Perdesse a virgindade [se isso existe],
Antes mesmo de tentar masturbação!...

AS JOVENS DE ROMA II – CALPÚRNIA – 21 JUL 2006

Meu pátio ressecou: perdeu suas flores
Nesse inverno talar, qual primavera,
Mas sem o recender, sem os olores
De estames e pistilos, sem a antera

Em deiscência, a chamegar quimera,
Sem ramos verdejantes de tremores;
Até o braço da musa é uma cratera
De que não sai mais luz, nem mais amores...

E como se acha estéril meu jardim...?
Há ramos verdes, farfalhando ao vento,
Promessas vagas, sem favos de mel;

Mas quando me aproximo, o vejo assim,
Sem ter botões...  E me esvaio no portento
De tantas flores que rebroto no papel...

EX AEQUO [por equidade] I – 12 dez 02

Esta mulher que amei, polvilho e sal de aurora,
a cada vez que a vejo, me invade a nostalgia:
primeiro por saber que a outro pertencia,
depois por perceber que livre se acha agora...

E que me procurou, ao tempo que fugia,
para bem longe e quando mais perto se chegava,
para bem perto ao tempo que o corpo me entregava,
para bem longe ao tempo em que a alma me luzia...

Pensar que a vi de novo, sentada do meu lado...
Pensar que, se atrevera, sua mão teria beijado,
e fiquei, todavia, contendo minha emoção...

Pensar que tudo foi somente um vão de aurora,
por dentre a escuridão, que me enche tanta hora,
porque não fui capaz de encher-lhe o coração...

EX AEQUO II –7 FEV 15

São dessas coisas...  A roda da Sansara
girou mais uma vez, em novel encarnação;
quando se libertou, estava eu em escravidão,
amando agora a outra, embora antes a amara...

Em outro tempo, eu sei, talvez a conquistara
e neste tempo, porém, demonstrou-me sedução,
como forma de mostrar que despertar paixão
ainda era capaz, que a formosura não passara...

Ai, esses jogos de amor a que elas se dedicam!
e nos quais facilmente os ingênuos enlaçam,
talvez até lhes dando corporal satisfação...

Mas por qualquer pretexto seu vão orgulho picam
e como um sonho mau a outro alvo perpassam,
sentindo até prazer em quebrar um coração!...

EX AEQUO III

Porém vi nos seus olhos, de relance, a esperança:
foi quase se buscasse em mim definição,
mudança de seus sulcos, novel exultação,
o príncipe encantado dos tempos de criança...

Se então me dispusesse a procurar bonança,
talvez nela encontrasse, afinal, exaltação...
Mas a que me levaria esta nova aceitação,
quando de fato estava algemado noutra trança...?

Assim, só conversamos sobre vestes de arlequim,
sobre teatro, música, o choro dos jograis,
qualquer memória vã que já não mais seduz;

depois me despedi, sem um beijo carmesim,
sem que a nuca percorressem arrepios siderais
e de seus olhos, de leve, vi apagar-se a luz...

EX AEQUO IV

Mas devo confessar, para agir com equidade,
que nesse tempo antigo, mesmo não adquirida
por esse aro dourado, a corrente requerida,
o paixão que então gerou foi pura realidade.

Não vou mentir agora, em pretensiosidade,
que só brincou comigo por achar-se malquerida,
porém o que me deu foi parte de sua vida:
fui eu o malfeitor, roubando sua bondade...

As imagens se misturam e nem sequer o gosto
a gente se apercebe dos beijos desse antanho:
até que ponto o olor brotou de cada seio?

Desarrolho lembranças tais quais tampa de mosto,
sem recordar de fato o mais profundo lanho
que me deixou na alma um tão profundo enleio...

DEPÓSITOS I – 12 dez 02

Faço poemas demais.  Nem sequer tempo
para os passar a limpo inteiramente eu tenho.
São estorvo e são peso ou mesmo contratempo
sobre a mesa em reclamo de permanente  empenho.

A digitar meus versos, linha a linha, se os contemplo
já surge a ideia nova e em novo risco eu venho.
meu pensamento esvai-se em refluxo e retempo
e a pilha cresce.  E em desígnio já convenho

quão improvável seja, no tempo do possível
sequer deixar em dia essa imensa produção...
E enquanto o tempo ruge, eu sinto tal cansaço!

Muito melhor seria, tempo havendo de aprazível,
para acalmar o tempo do inquieto coração,
o tempo achar de pôr minha fronte em teu regaço...

DEPÓSITOS II – 8 FEV 15

Contudo, neste tempo que hoje me transcorre,
não tenho algum regaço, pois nele sou fantasma;
mais do que nunca a solidão me pasma,
por mais que o rascunhar ou digitar me acorre.

Coincidiu que hoje, no dia que já morre,
não telefona a esposa, não sei por que miasma;
não chegou a empregada, talvez sofreu de asma,
nem qual parte da cidade minha filha hoje percorre.

Nos dias em que aguardava ter solidão completa
estava satisfeito, pois sempre a mim bastei
e não esperava mesmo que alguém se interessasse...

Mas hoje uma voltou e seu passear me afeta
e para a outra em vão telefonar tentei,
ao descobrir, enfim, que a mim mesmo não bastasse!

DEPÓSITOS III

Depressa eu olho em volta e, muito facilmente,
percebo quantos outros existência bem pior
percorrem dia a dia, no amplo corredor
do suave desespero que sobre os tais se assente;

por grande seja o mal que me chagar frequente,
há muito compreendi que existe mal maior
no inferno que habitamos, com todo o seu calor,
na vida de descrença e medo transparente...

Pois não temo o futuro e o passado mastiguei;
o tempo do presente percorro com minha boca,
o antanho a percutir com malho de ironia;

assim eu vivo o filme que eu mesmo planejei,
somente para mim e sem plateia rouca
que aplauda o meu porvir em plena nostalgia.

DEPÓSITOS IV

Mas quanto ao que escrevi, assaz desencontrado
que espalho por aí, pingando minha semente,
de cuja aceitação, por certo, sou descrente,
submeto-os à fogueira do pecado consumado.

Em vez de lenha, é poeira que tenho acumulado
e por todo o meu esforço, eu vejo, certamente,
que tempo não terei para vê-los frente à frente,
senão como em fumaça de ardor incinerado.

Não os posso recolher, por mais que a tanto tente:
há dezenas de milhares já soltos por aí;
uns poucos deles com raízes em outra mente.

E embora sua impressão na verdade não me alente,
enxergo outros milhares amontoados por aqui,
que me acusam do antanho e murcham no presente.

URTIGAS I – 12 dez 02

Ela chegou de viagem, furiosa de insegura,
em queixas lamuriando, por agressiva ser,
de imediato indagando, sem desejar saber
se lasciva rival me abraçara com ternura...

Se trabalhara muito, se a despesa fora dura
em nada a interessava, não indagou sequer
se me sentia bem...  tão somente se mulher
me avaliara, na incerteza que perdura...

De fato, só queria sobre mim lançar o fardo
dessa viagem por não ser-lhe agradável,
que mais exagerava, para assim justificável

sentir-se por lançar-me espinho e cardo,
querendo apenas saber se era escutada,
sem por mim aceitar sequer ser abraçada...

URTIGAS II – 9 FEV 15

De novo aguardo seu retorno de viagem,
mais longa desta vez e sem saber, de fato,
qual a mulher que vem, com seu olhar de gato,
com lâmias a luzir no fundo da visagem...

São muitas num só corpo, que beijo com coragem;
se uma gentil encontro, então me sito grato;
mas pode outra chegar, em vasto espalhafato,
a paz a consumir em vulcânica voragem...

Qual será esta que vem?  Estará cheia de fúria,
no tom iridescente de temporal mania
ou apenas a cansada, passada a adrenalina,

que se lance sobre mim, no percutir da incúria,
permeio à depressão, em amável nostalgia,
indulgência a pedir por caprichos de menina?

URTIGAS III

Terrível coisa é se sentir um grande amor
por alguém que certamente o corresponde,
porém guarda esse amor nem sabe onde
e assim acha difícil retribuir o nosso ardor.

Terrível coisa é sentir que se ama com vigor
a alguém que por amor caprichos lhe responde,
que a ânsia de controle bastante mal esconde
e insiste no domínio por dom controlador.

Anteriormente até me dei a tal operadora,
mas nunca me agradou agir em masoquismo;
a ela me entreguei do amor na aceitação;

mas o tempo passou sua foice cortadora
e hoje me ressinto de seus atos de sadismo
e a olho indiferente, sem mais bajulação.

URTIGAS IV

Urtigas picam por sua própria natureza
e me ensinaram que a forma de arrancar
era encher os pulmões e nunca respirar
enquanto se tomava nas mãos a fera presa.

Mas embora as instruções seguisse com presteza,
à urticária feroz não pude me furtar,
mas é contra a raiz que a mão devia chegar
e puxá-la depressa em branda fortaleza.

Nenhum mal se consegue podar só pela rama;
é preciso extrair seu menor filamento...
Mas que fazer então, quando esse mal se ama?

Não pelo mal que é, mas pelo pensamento
do bem que já nos foi, que a mente ainda reclama
e deseja conservar, contra o próprio julgamento...

A VIANDANTE I – 13 dez 02

E foi assim que veio: encheu-me de cansaço,
tirando-me a alegria, sem pena, de a rever;
a mim trouxe labor; é meu o quefazer
frequente do esperar inútil de um abraço...

E espero, mesmo assim... Na mente inda retraço
farnel de anos antigos, que busco reviver,
em que real meu sonho surgira, sem poder
imaginar sequer a que ponto meu espaço,

que ocupa tanto agora, sua vida invadiria
e tanta coisa amarga e falsa lançaria
sobre meu peito vão, em tudo complacente...

Sem dúvida eu chegara a dela ter saudade,
que não mostrou possuir; mostrou ser inclemente:
tirou-me a paz, enfim, sem me dar felicidade.

A VIANDANTE II – 10 FEV 15

Agora que iniciei esta réplica ao passado,
seria forçoso sentir de novo o que senti,
mas quem consegue ouvir de novo o alali
das antigas caçadas, das trompas rouco fado?

Há uma pele de raposa, deposta com cuidado
á cabeceira do leito; em Sófia a adquiri;
a pata que lhe falta cortaram-na, senti
após sua morte, sendo entregue como agrado

a quem a abateu com o tiro mais certeiro;
é costume em metal até mesmo engastá-la
e expô-la nas paredes, em singular vaidade,

de forma igual que algum povo mais guerreiro
guardava uma caveira, a fim de pendurá-la
como prova final de sua habilidade...

A VIANDANTE III

E não vejo motivo para me submeter
à tônica de um verso de dez anos ou mais;
vivo somente hoje, perdido no ademais,
que só me chegará após meu escolher,

dentre os fios que se apresentam, decerto por saber
ou então por mero acaso, são baraços naturais,
o cipó que melhor mostra suas ganas digitais
dentre essa infinidade, que depois devo sofrer;

e se essa viandante, nisso que chamo agora,
está longe de mim, como posso conhecer
se de fato ela existe ou se é só meu conceber

que a cria indiferente ou em amorosa hora?
Qual o ser afinal desse fantasma ausente,
que talvez nem retorne jamais para o presente?

A VIANDANTE IV

Há muito suspeitei, em meu solipsismo
que as coisas só existem quando eu as posso ver.
Tomé é meu padroeiro, em seu breve recorrer,
mas não é de seu Jesus o meu duvidosismo;

o que às vezes sinto é que o mundo inteiro eu crismo,
conforme o que preciso para versos conceber.
Nunca sentiste em ti tal tentação crescer
de o mundo dominar, quer planície, quer abismo?

Pois sorrio deste modo à felpa de nevoeiro
que tenta se insinuar e me dizer que o mundo
só existe nestes versos que faço em meu descante;

nos sonhos eu consigo um controlar fagueiro
e as decisões que tomo, em meditar profundo,
mas nunca controlei essa ausente viandante!...

NOVELA I – 13 dez 02

Encontrei uma ideia no caminho:
        levantei-a do chão, devagarinho
        e examinei-a, cuidadosamente.

Era uma ideia nova, parecia:
        não estava ainda gasta, reluzia,
        quando a girava na palma de minha mão.

Não era ideia minha, com certeza:
        era uma ideia pobre e sem beleza,
        mas poderia ser tratada com carinho...

Depois de trabalhada, era possível:
        que tal ideia eu tornasse mais sensível
        e mais se coadunasse a meu prazer.

Levei-a para casa, dei-lhe um banho:
        curei-lhe a sarna, retirei-lhe o ranho,
        depois lhe dei um prato de comida...

Arranjei-lhe um lugar em que dormisse:
        num canto de minha mente; e refletisse
        meus próprios pensamentos sobre a vida.

Quando acordou, nutri-a com meu sangue:
       mostrei-lhe como andar na mesma gangue
       das opiniões que sempre defendi...

Ela escutou minha voz e fez-se bela:
        vestiu-se e maquiou-se; e da janela,
        contemplava o mundo que passava.

Foi perdendo seus defeitos, engordou:
        e por um certo tempo, até me amou
        e me vigiava, pelo canto de seus olhos.

E tanto fez, que até me seduziu:
        com meu próprio pensamento, me traiu
        e nunca quis transformar-se num soneto.

Não era minha, afinal...  Era da rua:
        despiu-se de minhas roupas, fugiu nua
        e foi-se embora, sem me dizer adeus...

NOVELA II – 11 FEV 15

É perigoso se olhar para a calçada,
pode haver outra ideia abandonada
e de novo sentir-me seduzido...

Pois recolhê-la posso, igual que a um gatinho;
talvez tenha o olhar meigo de um cãozinho,
desses que vejo em figuras de mangá...

Mas ambos crescem, se lhes der comida
e exigem boa parcela de tua vida;
com eles gastas mais do que contigo.

Crescendo o gato, se contenta em ser bonito
e a casa inteira controla em seu agito,
como se fosses apenas empregada...

Crescendo o cão, este será fiel
e vai latir, sentinela do quartel,
querendo repelir qualquer estranho...

Mas se for uma ideia, o que fará?
Será indiferente ou te amará?
Ou quiçá te mostrará ressentimento?

Não bastará que lhe dês uma tigela,
cheia de leite ou de ração singela...
Será uma ideia gato ou ideia cão?

Aos animais poderás dar um abrigo,
uma cestinha ou um carrinho que, contigo,
seja levado aonde quer que vás...

Mas estarão o tempo todo fora
e se quiseres, também podes ir embora,
para voltar depois de teu trabalho...

Mas a ideia terás de pôr na mente,
quer seja benfazeja ou malquerente:
seu leite e sua ração serão tua vida.

Portanto pensa, se encontrares na calçada
qualquer ideia estranha abandonada,
pois poderá dominar-te inteiramente!

NOVELA III

Mas ideias podem ser muito importantes.
mudar o mundo em rasgos delirantes,
transformar o pensar da humanidade.

Por que alguém a teria então perdido?
Porque não foi capaz, foi esquecido
ou demonstrou-se a ela indiferente?

Será que alguém essa ideia jogou fora?
Deixou-a cair sem pena e foi embora,
para cuidar de seus próprios afazeres?

Será que a ideia no seu bolso estava,
na carteira, porém, não a guardava
e a deixou cair, sem farfalhar?...

Porque ideias  não são feitas de metal;
fossem moedas, seria menor mal:
cairiam na calçada, a tilintar!...

Será que alguém não a pegou antes de mim?
Viu-a enlameada e descartou-a assim,
os dedos a limpar no seu fundilho?...

Será que a ideia era pouco lisonjeira:
escapou por entre os dedos, zombeteira;
era de noite e não a pôde achar?

Será que a ideia era escorregadia
ou de sua mão o calor condensaria
e deslizou, com sua linfa de metal?

Será que a ideia queria liberdade
e se jogou, em um ato de impiedade,
para escapar de quem a conduzia?

E só um cérebro cogente a acolheria,
que com cuidado a desenvolveria,
com suas múltiplas implicações?

E foi a mim que ela atraiu, enfim,
sussurrando o seu toque de clarim,
para que a visse e nela não pisasse?

NOVELA IV

Mas acabou por sofrer desilusão:
conservei-a fechada ao coração,
sem permitir que se lançasse ao mundo.

Queria mais que minha mediocridade,
desejava dominar a humanidade,
reproduzir-se em centenar de mentes...

Ideia egoísta, que de mim não teve pena;
era papoula e não branca açucena:
talvez quisesse transformar-se em ópio.

Sem encontrar em mim outro narcótico,
encolhida por detrás do nevo ótico,
a contemplar tão só o computador...

E por mais que paisagens lhe mostrasse
e as imagens de museus lhe apresentasse,
não passaria de uma observadora...

E ela queria, de fato, ser rainha!
Tanta ilusão, ainda era mocinha,
talvez pensasse transformar-se em miss...

Mas que fazer?  A ideia era baixinha,
sem preencher os tais padrões que vinha
a passarela de tantas exigir...

Ou quiçá se inscrevesse num partido,
ser deputada teria conseguido,
com novas lemas que poderia apresentar.

Mas como disse, ela fugiu-me nua,
sua pele a refletir a luz da lua,
de minha porta escorreu pelo sopé...

Não mais a busco.  De fato, me cansei;
boa parte de minha mente então lhe dei,
quando se foi, deixou-me seu vazio...

Mas ainda ando de noite pelas ruas,
com minhas vistas varrendo como puas
as tijoletas, para ideias encontrar...

NO ENCALÇO DA NOVELA I – 12 fev 15

Posso dizer, com toda a seriedade,
que a ausência dessa ideia me afetou;
eu a amei; contudo, não me amou,
mesmo prazer me dando em saciedade,

pois coabitamos em minha mentalidade,
foi esposa, foi amante, me mimou
a tal ideia que em mim se introjetou:
até pensei que fosse minha de verdade...

Como a gente se engana com uma ideia!
Ela sorri, se introduz, devagarinho
e finge até querer buscar a escravidão,

mas quando se retira, arranca veia,
corta as artérias com feroz espinho,
leva consigo até o teu coração!...

NO ENCALÇO DA NOVELA II

E por que de tal ideia deveria
afinal apropriar-me?  Eu tenho tantas!
Tu mesma, se me leste, já te espantas
que assim, tão facilmente, eu poderia

compor sem dolo centenas de sonetos...
Uns melancólicos, outros de alegria,
cheios de graça uns, quase magia,
jorrando em catadupas de quartetos...

Mas é que a tal ideia, pobrezinha,
abandonada de todos, tão mesquinha,
acendeu-me lamparina ao coração...

E eu quis que bruxuleasse para mim.
De certo modo, fui egoísta, assim,
ao transformar em fluorescente esse lampião...

NO ENCALÇO DA NOVELA III

Essa ideia, por mais que parecesse
deixar-se trabalhar, foi sempre esquiva.
Era rebelde; ao invés de humilde, altiva,
como se um grande favor me concedesse

ao submeter-se a mim; se obedecesse
na maneira de agir, na cognitiva
busca de mim...  Em tudo foi furtiva,
sem que sequer por instante se rendesse.

E, desse modo, a preparei e ao mundo
lançou-se enfim a reluzente gema,
cuja ganga eu retirara, em dom secreto

e até clivara, em lapidar profundo...
E então repito dessa ideia: foi poema,
mas nunca sujeitou-se a ser soneto.

LOGICIEL i – 13 FEV 15

AO LONGO DESSES ANOS, MUITAS VEZES
PROCUREI COMPREENDER O QUE PENSAVA
A MINHA AMADA, A ESTRANHEZA DO QUE ACHAVA,
COMO MUDAVA NO PERPASSAR DOS MESES...

MAS COMPREENDÊ-LA DE FATO, QUAIS AS TESES
QUE ORIENTAVAM AS PALAVRAS QUE ESCUTAVA
EU NUNCA PUDE.  FOSSE TU, EU NEM TENTAVA:
NA TENTATIVA TALVEZ TUA MENTE LESES.

LI ALFARRÁBIOS PARA VER SE DESVENDAVA
ESSES MEANDROS DE ESPLENDOR SECRETO:
FÓRMULA MÁGICA ENCONTRARIA DE ESPLENDOR.

MAS POR MAIS QUE MEU SENTIR DESPEDAÇAVA,
NADA, AFINAL, RESULTOU-ME DE CONCRETO:
SÓ CONSEGUI FOI DEMONSTRAR-LHE MEU AMOR.

LOGICIEL II

O RACIOCÍNIO DO HOMEM, RETILÍNEO,
LOGO SE PERDE NA CURVA MULTIDÃO
DO RACIOCÍNIO FEMININO; E ENTÃO
SE FAZ ONÍRICO EM MERGULHO CURVILÍNEO.

É COMO SE OS DETALHES DO DESÍGNIO
FOSSEM COMPOSTOS POR PERFIS EM SUCESSÃO,
QUAL SE OS CONTORNOS, EM CADA OSCILAÇÃO
FOSSEM UM POUCO DIFERENTES; RACIOCÍNIO

MUITO MAIS QUÂNTICO QUE NÍTIDO, NO QUAL
CADA DETALHE, AO SER RETIFICADO,
SE TORNA DE IMEDIATO DISTORCIDO,

POR SER A UM SÓ TEMPO FALSO E REAL,
DEPENDENTE DE UMA ESCOLHA E AFIRMAÇÃO
QUE NÃO SERIA DE RETILÍNEA EXECUÇÃO.

LOGICIEL iii

POR ISSO, NÃO CONVÉM PROFUNDAMENTE
AUSCULTAR A CABEÇA DA MULHER;
AMOR NÃO BASTA PARA TAL MISTER,
HÁ DEMASIADOS LABIRINTOS NESSA MENTE.

UM HOMEM CHEGA AO VESTÍBULO APARENTE
E PERCEBE QUE FAZ PARTE DE QUALQUER
ONÍRICO COMPLEXO; E SE QUISER
IR MAIS ADIANTE, A PRISÃO É PERMANENTE.

PORQUE NO CÉREBRO DA MULHER AMADA
HABITAM ÀS CENTENAS SUAS RIVAIS;
AMA-SE UMA, ODEIA-SE OUTRAS MAIS

E AO SEGUIRMOS MAIS ADIANTE PELA ESTRADA,
DESEMBOCAMOS EM PRAÇA MILAGROSA
EM QUE HÁ UMA FORCA DE GUIRLANDAS ROSA.

ESTELAR I – 14 FEV 15

Na sala escura só a tela brilha,
Janela para o sonho de meus versos,
Janela para mundos tão diversos
Que a vida inteira em vaga luz encilha,

Pois abrir-me poderia muita trilha
Diversa plenamente dos conversos
Devaneios em palavras vãs dispersos
Em tanta plaga de outra mente filha.

Do mesmo modo que a correspondência
Também para outras mentes dirigir
Me prenderia, mas nesta noite fria

Eu só penso nestes dias de tua ausência
E não desejo sequer me transmitir
Para ninguém e nem sentir mágoa vazia.

ESTELAR II

Na mente escura só o sonho brilha,
No despertar de sua desfaçatez;
Enquanto dura, tem formosa tez:
Posso entender cada detalhe de sua trilha.

Mas quando a luz da manhã já se perfilha
E quer o sonho definir em nova grês,
Toda lógica se evola em brando pez,
Vai-se a lembrança  no quebrar da bilha.

Só imagino se nos correspondentes
Que no sonhar encontro tão frequentes
Poderia de fato ter confiança...

Quais os ambientes dessa nova tela
Cujos comando me acionam como estela,
Configurados, talvez, desde criança.

ESTELAR III

Será que a tela sou eu que configuro
Ou lança os seus tentáculos sobre mim
E minha vida configura assim
Enquanto julgo que a contemplo de olhar puro

Mas apenas me hipnotizo no esconjuro,
Dançando nos cordéis, qual arlequim,
A perfilar-me a qualquer toque de clarim,
Enquanto a tela me pinta em chiaroscuro?

Assim eu penso que sou constelação,
Um estelar de pixels, quadriculado,
Como as vestes do arlequim, em analogia,

Figura apenas de tal configuração,
Meu estelar de cometas controlado
Enquanto a tela tremula e então me cria...




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