JOÃO VENTUROSO – 24 jan
15
(Folclore português,
recolhido por Viriato Padilha)
(Versão poética e
adaptação de William Lagos)
JOÃO VENTUROSO I
Mais uma vez, havia um
rapaz chamado João;
talvez fosse João
Manoel ou João Joaquim,
ou João Antonio mesmo
se chamasse...
Foi contratado por rico
senhor
e o serviu muito fiel,
por cama e pão:
por sete anos fora
emprestado assim;
no fim do prazo,
esperavam que o pagasse,
além da roupa e do
calçado de favor...
Assim, passados ditos
sete anos,
timidamente, foi falar
com seu patrão:
“Senhor meu amo, acabei
minha indentura
e devo agora retornar
para meus pais...”
Disse-lhe o outro: “Já
estava nos meus planos;
seu pai vai me mandar o
seu irmão;
serviu-me bem e lhe
darei ventura:
com um belo pagamento à
casa vais...”
E foi assim com ele até
o porão,
onde guardava escondido
o seu dinheiro;
abriu o cofre para lhe
dar barra de ouro,
grossa e larga, medindo
mais de um palmo.
“É o pagamento de tua
abnegação;
pede a teu pai o que
fazer primeiro,
se vais moer em pó este
tesouro
ou dividi-lo, na mais
perfeita calma...”
”Naturalmente, podes ir
a um fundidor
e transformá-lo em
moedas reluzentes,
mas terás de lhe dar a
percentagem;
assim, espera a decisão
paterna...
O teu irmão verá que
bom senhor
sou eu; todos assim
irão ficar contentes;
poderás até comprar boa
equipagem,
montar uma oficina ou
uma taberna!...”
JOÃO VENTUROSO II
Assim João agradeceu
profusamente,
mas estranhou o peso de
sua barra,
que era de ouro do
melhor quilate
e a amarrou bem
escondida no seu lenço,,
na ponta de uma vara
assim pendente;
mas carregá-la não era
qualquer farra!
Volta e meia em suas
costas ela bate,
ficando o peso, com o
tempo, mais intenso...
Trazia também uma
trouxinha de comida,
dependurada em sua
outra mão;
ficou incômoda depressa
a caminhada,
suava em bicas e nas
pedras tropeçava!
Sempre estivera
protegido na sua vida,
pois trabalhava sem
maior preocupação
e seu patrão não tinha
a mão pesada,
de pensar ou calcular
nem precisava...
E não se diga que fosse
preguiçoso,
mas na cidade ficava
tudo perto
e nunca carregara um
fardo assim,
começando a se achar
mal ajeitado:
Com esse peso, meu passo é vagaroso
e tenho medo de andar neste deserto;
minha recompensa, no final, foi ruim,
melhor se um burro tivesse me arranjado...
Por aí se vê que o
nosso amigo João,
a bem verdade, já tinha
o seu burrico:
bastava que se olhasse
na lagoa!...
Mas daí a pouco, surgiu
um cavaleiro,
que troteava, na maior
satisfação,
com rédeas e jaezes de
homem rico
e falou João: “Como
seria coisa boa
que eu pudesse cavalgar
um parelheiro!”
JOÃO VENTUROSO III
“Que bela coisa é poder
andar a cavalo!
a gente se senta igual
que na cadeira,
não dá topadas,
poupam-se os calçados
e se viaja muito mais
depressa!...”
O cavaleiro decidiu-se
a interrogá-lo
“Por que então, andas a
pé pela ribeira?”
“Após sete anos de
serviços bem prestados,
só ganhei ouro, que me
pesa à beça!...”
O cavaleiro duvidou que
fosse ouro.
Ingenuamente, sua
trouxa João abriu
e o outro sentiu o peso
de imediato;
levou-o à boca e
deu-lhe uma mordida!
Aquela barra era um vasto tesouro!
“Dou-lhe o cavalo que
até aqui me conduziu
e você me entrega a
barra nesse trato:
assim consegue o que
mais quer na vida!”
O pobre João só pensava
no cansaço:
“Mas vai ficar com esse
peso tremendo?”
“Ora, minha casa é bem
perto daqui...”
E assim fez logo a
troca o bom rapaz.
Para montar, sentiu
grande embaraço
e o cavaleiro bom
instrutor foi sendo:
pô-lo na sela e o
conduziu daqui e dali...
João logo achou saber
como se faz...
“Você aprendeu a andar
bem devagar,
mas veja bem: se quiser
andar depressa,
estale a língua e diga:
Hop! Hop!
e o cavalo bem ligeiro
o levará...”
Seguiu o jovem no seu
manso trotear,
o cavaleiro sopesou a
rica peça...
Saiu correndo, quase
num galope:
de forma alguma troca inversa ele fará!
JOÃO VENTUROSO IV
Com esse ouro, compraria outro cavalo
E para roupa e até casa sobraria!...
Correu depressa e se
perdeu na mata,
deixando João a trotar
placidamente.
Mas no momento em que
se viu frente a um valo,
para saltar: Hop! Hop! -- já dizia!
E não sabendo cavalgar
até essa data,
perdeu o estribo e caiu
pesadamente!...
Por sorte, vinha
chegando um camponês,
que pela rédea segurou
o cavalo,
pois era manso e nem
estava espantado
e já pastava à beira do
caminho...
“Foi mau negócio montar
nesse freguês!”
Disse João ao que veio
levantá-lo.
“Por quase nada já
ficou assustado,
sorte tive de não
quebrar nenhum ossinho!”
Então viu que a uma
vaca transportava
o camponês, a caminho
do mercado.
João comentou: “Deve
ser uma coisa boa
a uma vaca poder tocar
tranquilamente...
A gente faz manteiga do
leite que tirava,
até mesmo um requeijão
bem apurado...
Muito melhor que esse
cavalo à toa,
que me atirou no chão,
grosseiramente...”
“Pois bem,” disse o
esperto camponês,
“Estou disposto a lhe
dar esse prazer:
a minha vaca pelo
cavalo lhe darei,
eu já estou acostumado
a cavalgar...”
E desse modo, nova
troca assim se faz...
Mas era um cavalo de
raça, bom de ter!
O camponês sentiu-se
como um rei:
da velha vaca conseguira se livrar!...
JOÃO VENTUROSO V
João Venturoso partiu
muito contente,
esquecido do cansaço de
andar a pé,
seguindo alegre, com a
vaca na cordinha,
parando às vezes, para
deixá-la pastar...
No futuro, teria comida suficiente!
Chegou a uma venda, em
que gastou até
seus últimos vinténs em
cervejinha
e em pastelão para bem
se alimentar...
Mas o pastelão estava
bem salgado
e atravessava um
faxinal deserto,
no qual não via passar
nem ribeirão
e a sede começou a lhe
apertar!...
Assim que achou um
arbusto mais copado,
atou a vaca e
ajoelhou-se perto,
quis pegar leite na
concha de sua mão,
sem ter caneca ou um
balde de ordenhar!
João Venturoso se
criara na cidade
e realmente, não sabia
tirar leite!
Grosseiramente, foi o
ubre machucando,
levando um coice ao
invés do que queria!
Caiu de costas,
estonteado de verdade,
a praguejar contra a
vaca que o despeita:
“Já vou o segundo tombo
hoje levando!
Essa vaca, sem dar
leite, não servia!”
Por sorte ou azar,
apareceu-lhe um açougueiro,
por um cabresto
conduzindo um bom leitão!
Com bondade, ele o
ajudou a levantar...
O pobre João, tolamente
a se queixar:
“Troquei meu ouro com
um cavaleiro,
troquei o cavalo pela
vaca, sem razão!
Esse bicho nenhum leite
quer me dar,
por mais que as tetas
eu tente lhe apojar!...”
JOÃO VENTUROSO VI
O açougueiro avaliou
logo a situação:
Não era muito esperto esse freguês!
“Olhe, essa vaca não
vai dar mais leite,
já está velha demais e
sem terneiro!
Mas se quiser, troco
pelo meu leitão...
Venho este bicho
engordando há mais de mês,
dará toucinho e
chouriço que é um deleite!
Depressa a vaca dará o
mugido derradeiro!”
João pensou: Como eu sou venturoso!
Tenho problemas, mas logo chega a solução!
E prontamente a
terceira troca aceitou,
muito contente com os
negócios que fazia...
Foi o açougueiro que
fez negócio proveitoso,
além do couro, havia
carne em profusão,
que sem demora, com os
cliente negociou,
enquanto João, pobre
enganado, agradecia!...
Logo depois, à beira de
um riacho,
foi beber água e ao
leitão deixou beber,
soltando a corda... O
porco, satisfeito,
que de burro nenhum
suíno não tem nada,
começou logo a correr
pela água abaixo
e João a tropeçar e a
maldizer!...
Mas em seguida,
apareceu um sujeito,
que segurou a cordinha
abandonada!...
Grunhiu o leitão, mas
já fora agarrado
e logo João chegou ali,
correndo!...
Ao sujeito, muito
alegre, agradeceu,
que um ganso trazia
firme sob um braço.
Os dois sentaram juntos
no gramado
e João toda a sua
história foi dizendo:
“Eu tinha ouro e um
cavaleiro apareceu,
Pelo cavalo troquei, no
mesmo espaço!...”
JOÃO VENTUROSO VII
“Foi uma sorte!... O
ouro era pesado
e então saí, muito
alegre, no cavalo...
Mas daí a pouco a besta
se empinou
e caí no chão, porém
não me quebrei!...
Sou venturoso! O animal foi apanhado
por um campônio e
preferi trocá-lo
por uma vaca... Ele foi
bom e aceitou
e ao passo manso logo
me acostumei...”
“Mas quando me ajoelhei
para ordenhar,
nenhum leite me deu a
desgraçada!
O que me deu foi um
coice e machucou!
Mas por sorte, um
açougueiro apareceu
e se ofereceu por este
leitão trocar!...
Sou venturoso! Após cada maçada,
sempre surgiu alguém que
me ajudou
e com este leitão gordo
cá estou eu...”
“Só que este bicho é
teimoso e emburrado,
por toda parte do
caminho quer fuçar!”
Disse o homem: “Ora,
faço-lhe um favor:
trago este ganso gordo
sob o braço!
Ele é manso e lhe dará
bom ensopado...
Se quiser, pelo leitão
posso trocar...”
João aceitou a proposta
com ardor
e no espertalhão deu
até um grande abraço!
Seguiram adiante os
dois, bem satisfeitos;
Valia o leitão uns dez
gansos ou mais!
Mas em seguida, pôs-se
a ave a se agitar:
João não sabia como agarrar
direito!...
Pegava as patas,
agarrava os peitos,
o jeito certo sem
acertar jamais!...
Já estava o bicho sua
roupa a rasgar...
Mas vai-me dar um travesseiro para o leito!
JOÃO VENTUROSO VIII
Já estou chegando perto de minha casa!
O meu pai me ajuda a degolar
e minha mãe fará um belo ensopado;
só assim aprende a não espernear tanto!
Mas debatia-se o bicho,
sem dar vaza,
e finalmente, João se
assentou a descansar,
pelo pescoço, já meio
sufocado,
o pássaro ele agarrou,
sem mais espanto!...
Minha casa ainda fica a mais de milha
e vou ter de segurar este estupor!
Mesmo que dê uma boa refeição,
dos sete anos não sobrará mais nada...
Descia um amolador a
mesma trilha
e comentou: “É um
pássaro gordo, meu senhor,
mas não o sufoque antes
da ocasião,
senão sua carne ficará
estragada!...”
O amolador sentou-se a
conversar,
fazendo girar em sua
pedra uma faquinha:
“É boa a profissão: dá
bom dinheiro...”
“Pois até queria que o
senhor me ensinasse!”
“Ora, de graça eu não
vou trabalhar...
Veja bem, está
sufocando a avezinha,
o melhor mesmo é
degolar primeiro:
quem sabe um bom
sarrabulho se aprontasse!”
“Ah, estou achando esse
pássaro pesado
e só agora é que parou
de espernear!”
“Peso por peso, minha
pedra é bem mais leve
e me sustenta já há
muitos anos!...
Posso aliviá-lo desse
peso, sem cuidado!”
“Ah, mas esse ganso eu
acabo de trocar
por um leitão bem
gordo. A sorte chegou breve,
pois me dava uns
trabalhos desumanos!...”
JOÃO VENTUROSO IX
“E como foi que
conseguiu o leitão?”
“Fui venturoso! Troquei por uma vaca
que não me dava leite e
me escoiceou!
Foi muito bom para mim
o açougueiro...”
O amolador o observou
com atenção,
girando a pedra, sempre
a afiar a faca.
“E a vaca? De quem o senhor comprou?”
“Troquei por cavalo que
empinou ligeiro!”
“Ah!... E o cavalo,
como o conseguiu?”
“Ora, eu tinha uma
barra de bom ouro,
que ganhei por sete
anos de trabalho...
Mas era pesada! Aí troquei pelo cavalo!”
Do amolador o olhar
tremeluziu...
“Pois sabe... Esta
minha pedra é um tesouro!
Bem mais leve que seu
ganso, não me falho!
Se quiser aprender,
posso ensiná-lo...”
“Mas já falou que de
graça não me ensina...”
“Me passe o ganso, que
lhe faço esse favor...”
João Venturoso logo
concordou...
Tirou outra pedra da
mochila o amolador,
meio rachada, a parte
do esmeril já fina,
que prendeu no pedal
com algum vigor
e a faquinha para João
logo emprestou:
“Gire com cuidado, é
pedra de valor...”
Mas nosso João tão
idiota não era assim:
“Por uma pedra não vou
o ganso trocar!”
“Não, vai me dar em
troca da lição!”
“Mas só me disse que devo
pedalar!...”
E o amolador,
aborrecido, enfim,
foi uma nova mentira
apresentar:
“Esse ganso foi
roubado, meu irmão!
Vão-lhe prender, se
nessa aldeia entrar!...”
JOÃO VENTUROSO X
“Mas é verdade isso,
amolador?”
“Claro que é, mas eu lá
sou conhecido,
não vão pensar de mim
ser um ladrão:
eu digo que o achei
solto na estrada...
Vamos lá, eu lhe presto
esse favor
e não será pela polícia
perseguido!
E logo convenceu-se o
nosso João,
trocando o ganso pela
pedra já rachada!
Depressa, o amolador
tirou o pedal
e ao ver que o rapaz já
protestava,
tirou outra pedrinha da
mochila:
“Olhe, lhe dou também a
pederneira!
É só bater com um
ferrinho, mal e mal,
E mil fagulhas ela logo
projetava;
assim faz fogo com
qualquer esquila
de madeira ou musgo
seco da ladeira!”
E vendo João ficar um
tanto apalermado
(só um pouco mais, de
fato, que já era!)
deixou-o com as pedras
o amolador,
levando o ganso, a
pedra boa e o seu pedal!
João pensou e se julgou
afortunado:
E se me prendem na cadeia ou na galera?
Foi muito bom comigo esse senhor:
boa profissão arranjei neste final!...
Seguiu em frente, com
uma pedra na mão
E a outra às costas,
que era mais pesada...
Ficou com medo de
entrar na aldeia
e desse modo, fez
grande rodeio...
Com o peso, logo deu um
tropeção!...
Não tinha a trouxa em
que a barra era levada...
Me arranha as costas essa pedra feia,
porém será de meu sustento o meio...
JOÃO VENTUROSO XI
Porém chegou logo à
beira de um rio
e uma sede tremenda o
apertou;
foi debruçar-se para
poder beber
e a pedra de suas
costas derrapou!
E quando foi segurá-la,
no seu brio,
a pedra menor de sua
mão ele soltou!
No rio caíram até
desaparecer...
Mas sem por isso João
desarvorar.
Vendo-as sumir, deu um
grito de alegria!
Agradecendo a Deus por
aliviá-lo
do peso incômodo que
antes transportava:
Sou o mais venturoso sob o Sol!...
E assim, cruzando o vau
ele seguia,
sem qualquer peso para
sobrecarregá-lo
e logo a casa dos pais
ele alcançava,
radiante o rosto, qual
luz de farol!...
Quando chegou, já todo
esfarrapado,
com os sapatos puídos e
em miséria,
sem trazer em seu bolso
um só tostão,
após sete anos, mal o
reconheceram!
“Mas meu filho, o que
foi? Foi assaltado?
Quem lhe roubou os sete
anos de féria?”
“Não, meu pai, aprendi
uma profissão,
Vou ser amolador, que
me ensinaram!...”
“Mas como, sem ter
pedra de amolar?”
“Eu tinha uma, mas
deixei cair no rio,
por um ganso aborrecido
eu a troquei,
que já havia trocado
por leitão,
antes o leitão por vaca
eu fui cambiar,
que por cavalo troquei,
com muito brio,
pois do peso do meu
ouro me livrei!...
Ninguém é mais
venturoso na região!...
EPÍLOGO
Os seus pais, então, se
entreolharam,
deram suspiros e, com
carinho, o abraçaram!
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