sexta-feira, 30 de janeiro de 2015






PASSAGEIROS (DRIVERSBY)
Duodecaneto de William Lagos, 28 jul 2010

PASSAGEIROS I

Eu vejo o mundo em múltipla vidraça,
pelas vidraças me contempla o mundo;
contemplo o mundo com olhar profundo,
o mundo passa em majestade e graça...

Ante meus olhos, todo mundo passa,
em seu trânsito tão feroz quanto iracundo;
com minha imagem, meu olhar confundo,
o reflexo do rosto ao rosto enlaça...

Me avista o mundo no ônibus da vida,
a vida passa e corre onde quiser,
não tem os trilhos fixos do bonde...

Percorre o ônibus as ruas, em sua lida;
sentado à espera do que der e vier,
eu vejo o mundo correr Deus sabe aonde...

PASSAGEIROS II

Há outro mundo por que a memória passa:
era um mundo cujos trilhos estalavam,
a cada vez que as rodas alcançavam
um intervalo que à dilatação se espaça.

Aquele espaço breve, que ultrapassa
essa trilha de dormentes, que formavam
o leito ininterrupto e apoiavam
a dupla linha de uma só carcaça.

Amei os trens, em minha juventude:
o cheiro da fumaça me atraía,
das pedras de carvão, negro diamante...

Carbono igual que a nossa vida ilude,
enquanto as curvas o comboio percorria
e degolava a terra, em manso instante.

PASSAGEIROS III

Eu cheiro o mundo enquanto o mundo passa:
cada parada tem o seu sabor;
a cada ponto em que freia com ardor,
esse ônibus novo mundo me repassa.

Abrem-se as portas para tal devassa
e os novos passageiros tem valor
de um arco-íris de cheiros, como cor,
que minhas narinas plenamente enlaça.

Mas se abro simplesmente minha janela,
os cheiros também querem viajar
e não esperam o momento das paradas,

quando a metrópole inteira se revela,
em lancherias, no suor, no trafegar
da multidão de almas apressadas...

PASSAGEIROS IV

Como é estranho que a estrada seja igual
enquanto mudei tanto internamente;
parece até ser o tempo indiferente
a quanto causa em mim, por ser mortal!

Sei muito bem que a paisagem natural
também se modifica, lentamente,
mas em mim a mutação é mais frequente,
passando o tempo como um figadal

inimigo de minha vida, que me leva,
tranquilamente, mas sempre de vencida,
enquanto as árvores, as casas, a avenida

parecem sempre iguais, sem que se atreva
o mesmo tempo a transformar o seu espaço,
de que a memória conserva em seu regaço!

PASSAGEIROS V

Por outro lado, quem conquista o espaço
sou eu mesmo, que o tempo não mo impede;
para onde quer que vou, o espaço cede,
enquanto o tempo se firma em embaraço;

é o tempo que prepara o meu baraço,
que mais cedo ou mais tarde o corpo mede
e o estrangula, não importa o que se pede,
e então nos vamos, sem deixar um traço.

Pois nesta vida somos passageiros,
no trem do tempo todos assentados;
lá fora o espaço corre para trás;

quer sejam os freios fortes ou ligeiros,
chega a estação a que fomos destinados
e o trem da vida de imediato se desfaz...

PASSAGEIROS VI

O trem do mundo sobre trilhos corre,
avança firme, suas rodas paralelas;
às vezes brotam fagulhas, como estrelas,
às vezes se condensa o ar e escorre

por entre os vidros que humano sopro forre
e tão somente se limparmos as janelas,
usando a mão ou a manga sobre elas,
podemos ver a paisagem que não morre...

Assim é a vida, em paralelas trilhas:
as janelas embaciadas de cuidados,
uma fagulha, quiçá, de liberdade,

ao longo da prisão de tantas milhas
em que permanecemos, mal sentados,
sonhando apenas em ter felicidade!

PASSAGEIROS VII

Eu vejo o ônibus que passa pela rua,
enquanto eu mesmo caminho, calmamente:
chegado ao ponto, vejo o entra e sai de gente,
em meu andar sobre a calçada nua.

E vou furando as filas, como pua,
para cruzar a quadra inteira mais à frente;
tomo a dianteira, sem esforço ingente;
contra as vitrinas o meu passar flutua...

E então o ônibus completa a lotação
e avança bem depressa, suspirando
a mágoa de seus freios para mim

e me ultrapassa, sem precipitação,
até que noutro ponto vai parando
e nos cruzamos por meia tarde assim...

PASSAGEIROS VIII

Então vejo os passageiros nas janelas
e sei pretendem chegar a algum lugar,
que mais depressa que eu hão de alcançar:
talvez a morte... Talvez paisagens belas.

Porém me deixo guiar só por estrelas
ou pelas luzes nos postes a brilhar;
prefiro em tais calçadas caminhar:
mulheres passam e desejo vê-las...

Se estivesse em um veículo sentado
nada seriam, senão visões fugazes
que talvez só me alcançassem na parada...

No mesmo vaivém tão apressado,
somente agora em diferentes bases,
que não conduzem realmente a nada...

PASSAGEIROS IX

Sento tranquilo em um assento vago,
dou preferência ao início do trajeto;
não preciso segurar a alça do teto
e na quietude de tal lugar me apago;

sentado ante a janela, não esmago
com indiferença, qual se fosse inseto
o passageiro, meu vizinho quieto;
somente ocupo o espaço que foi pago.

Talvez algum se comprima contra mim;
se for mulher e bela, será bom,
quiçá me deixe um gosto de perfume;

sei bem que descerá; mas mesmo assim
sou breve proprietário desse dom
e dela sinto até um laivo de ciúme...

PASSAGEIROS X

Para onde terá ido a passageira
que se assentou a meu lado, sem falar?
Talvez eu nunca mais a venha achar,
mesmo que cuide a parada em que, ligeira,

ela desceu.  Talvez da vez primeira
eu apenas me contente em aspirar
o aroma triste que me quis deixar
em sua visão inicial e derradeira...

E se eu descesse atrás dela, na parada,
só para ver se conseguia descobrir
onde ela mora e depois, até tentar

transformá-la em minha doce namorada?
Mas segue o ônibus e já deixei fugir
essa mulher que para mim não vai voltar...

PASSAGEIROS XI

Então senti por ela um passageiro
amor impuro e totalmente egoísta;
não quis sequer a busca da conquista
de outra ave a colocar em meu viveiro...

Eu quis somente o mistério condoreiro,
essa desculpa em que a poesia insista;
somente quis imaginar o que se avista
durante um sonho que me animou primeiro...

Não quis lhe dar amor, nem o amor dela:
por um fantasma ansiei, sem mais razão
que em novos versos o pudesse descrever;

tão somente em minhalma pus estrela,
sem lhe dar um só momento de emoção,
neste soneto que sei nunca irá ler...

PASSAGEIROS XII

Pensando bem, não fez igual comigo?
Só de me olhar, em seu piscar furtivo
pelo canto das pálpebras... Foi esquivo,
avaliador olhar?  E assim guardou consigo

ao peneirar-me pelo mesmo crivo,
igual egoísmo, amor nosso inimigo,
perfume às soltas, sem buscar abrigo,
mas que darei, enquanto ainda for vivo?

E quantas vezes também soprei miragem
para os olhos de quem nem sequer via,
mas que em instante fugaz me percebeu?

Tua própria vida é feita dessa aragem!
Mil transeuntes que nunca mais se iria
reencontrar, em um sonho que é só teu!...

William Lagos
Tradutor e Poeta
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com





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