terça-feira, 27 de janeiro de 2015







CINDERELLA REVISITADA E MAIS
William Lagos

       CINDERELA REVISITADA I – 7 DEZ 02

Nem te esperava ver.  E então, vieste:
ouviste a música e assim, talvez, quiseste
        que retornassem os dias do passado.

Pois mal te vi, somente de passagem:
algo secou em mim, numa estiagem,
        qual nunca senti antes, a teu lado.

E ao te ver de novo, algo faltava:
o brilho se escoara e nem cantava
        mais o som de tua voz ao meu ouvido.

Pois diminuíste, teu rosto apenas sinto,
como um rosto qualquer. Nem sequer minto
        que possa recordar algum sentido

Naquilo que já foste para mim...
Te vi vazia... E, ao te rever assim,
        não eras mais que o invólucro do sonho

Que existiu só em mim.  Sonho perfeito,
que devaneei, em meu pleno direito,
        e que fora do peito agora eu ponho. 

Eu já te disse: queria ter saudade,
e nada sinto.   Desfeita é a ansiedade
        que me fazia moldar tanta emoção.

E agora te percebo qual reflexo
daquele amor que nunca teve amplexo
        e gotejou total do coração.

CINDERELLA REVISITADA II – 13 JAN 15

Porém quando esperei, tu não vieste;
meus ouvidos eu fechei ou não disseste
por que razão não poderias chegar.

Pois tão somente sugeriste, de passagem,
que serias uma flor na minha paisagem
e que, ao te ver, te poderia regar.

Então andei pelos possíveis panoramas,
vi pastores e soldados, dioramas,
mas no deserto não brotava qualquer flor.

Arbustos secos, apenas, plantas nuas,
alguns postes apinhados sobre as ruas,
sem atacarem a fúria do calor.

Melhor me fora que nunca me dissesses
que para o meu redil assim viesses,
pois aguaria sozinho o meu jardim.

Sem sentir meu coração a palpitar,
sob essa angústia de nunca te enxergar,
mais esquiva que a lanterna de Aladim.

Quanto queria de tal flor me apoderar,
pois lhe daria o mais fresco lugar,
bem protegida por arandela e aramado.

Mas não achei para mim sequer botão:
brilhava a flor na palma de minha mão,
fingindo em versos que estavas do meu lado.

CINDERELLA REVISITADA III

Quando estavas por perto, te afastaste
e nem sequer uma sépala deixaste,
ficou somente um bulbo seco no canteiro.

Eu procurei em vão caule e semente,
meus dedos a peneirar a terra ardente,
já malferidos nos acúleos do espinheiro.

Bem longe foste e te quero lá feliz,
que seja amor purpurina flor-de-lis,
roxas pétalas abertas em coroa.

Que uma cachoeira te refresque o dorso,
que amentilhos alegres tenham corso,
que minha ausência te garanta prenda boa.

Na verdade, já muita falta antes senti,
mas diferente foi agora o que vivi:
outros corimbos existem a regar.

Mas se pudesse, ainda te protegeria
da luz mais drástica que sobre ti luzia
e sobre ti meu véu iria lançar.

Porém entendo que já buscas outra sorte,
satisfação de bem diverso porte
do que estas que te dar eu poderia.

E como disse, emurchou-se minha saudade,
dentro do peito já encontrei felicidade
muito mais certo da que em ti eu acharia.

CINDERELLA REVISITADA IV

A jovem era pobre, porém bela,
em crua vida maltratada essa donzela,
abençoada, no final, por um sapato!

Não uma fada, mas sua mãe no original,
transformada pela morte em vegetal
e ali retida por estranho desacato...

Aschenbrödel, Cinderella, Cendrillon,
nomes poéticos, porém acho melhor tom
que inda a chamassem de Gata Borralheira.

Foi em busca de seu príncipe ao castelo,
achou o amor de um baile em seu desvelo,
para fugir antes da hora derradeira...

Mas não sou príncipe e a outro ela buscou.
Perdeu um sapato.  Por que não se esfacelou
pelos degraus, já que era de cristal?

E para mim chegou somente em fantasia;
era uma abóbora a carruagem que corria:
à meia-noite, voltou ao natural...

Bem ao contrário, esse amor que me nutria
não era mais que o som da melodia:
doze pancadas no velho carrilhão!...

E assim perdi a esperança do contato,
pois me deixou apenas um sapato,
cujo cristal me rasgou o coração!...

GOTAS DE ÂMBAR I – 07/12/02

Não me cabe dizer assim que a amo,
porque o que sinto por ela é mais estético.
É como arquetipasse no poético
tanger de seu andar o que reclamo,

para a meiga inspiração, em que me exclamo,
na tessitura de um ideal ascético:
Amor sem carne, totalmente asséptico...
E é para tal ardor que me conclamo...

Que me sirvam de facho seus encantos;
Que me iluminem a senda trepidante
e me permitam alçar-me a novo céu.

Porque, por ela, só anseio nos meus cantos.
Prefiro mesmo tê-la bem distante,
sem ser forçado a retirar-lhe o véu...

GOTAS DE ÂMBAR II – 14 JAN 15

Existem por aí, no Mar do Norte,
pequenas vidas colhidas pela morte,
nessa dourada resina da surpresa,
conservadas para sempre nessa sorte.

Estão há séculos mantidas na represa
de uma gota congelada de incerteza,
manutenção eterna nesse corte,
na periferia da morte eterna presa.

Durante milênios, houve longa rota,
os rios gelados a cruzar e as montanhas,
os mercadores muita vez capturados

pelo âmbar branco da neve que os derrota,
enquanto as contas sobrevivem a tais sanhas,
com seus insetos para sempre preservados.

GOTAS DE ÂMBAR III

Aos mercadores achavam, eventualmente,
os que passavam por ali, no tempo quente,
das mochilas e sacolas em que se assente
a sua riqueza a retirar avidamente...

Contudo os corpos no âmbar branquicente
eram deixados por ali, no alvinitente
túmulo.  Talvez ave de rapina se apresente,
ou até a geleira a descer subjacente.

Ninguém queria recolher esses insetos
de porte humano que o gelo assim comeu:
não eram arte para brincos ou colares...

Mas quem no colo traz tais objetos
lembrar devia dessa gente que morreu
além dos belos insetos seculares...

GOTAS DE ÂMBAR IV

Conserva ela assim, no ambarino olhar
cada momento congelado do passado;
seus olhos de avelã sonho dourado,
em que se esgarça o peito a palpitar...

São dias mortos nesse âmbar a durar,
qual relicário no colo pendurado,
escapulário de um dia enregelado,
tornado em ouro tão só no meu sonhar.

E quando tomo tais gotas em meus dedos,
elas se enchem de místico fulgor
e em tal fagulha me iluminam toda a noite;

de seu hálito têm os místicos segredos,
pérolas tristes do que nunca foi amor,
porém me incita no mais brando açoite.

EXFLUXO I – 07/12/2002

Enfim, ela partiu: levou-me a aurora,
o sonho, a paz...  Consigo foi embora
todo o melhor de mim, até o ingente
desejo de escrever o verso ardente.

Que agora se estiola, em verso impuro,
que tenho de pensar. Não brota ao furo
de meu coração: brota da mente,
que se esforça em manter inda frequente

a pálida corrente destes versos,
que foram turbilhão, meses atrás...
E são agora apenas o mordaz

folhear desiludido dos diversos
momentos, em que guardo na lembrança
a flama gélida da desesperança...

EXFLUXO II – 15 JAN 15

Pois na sua ausência, levou muito de mim,
desejos mortos, melancolia, requin-
te que deveria inspirar, mas expirou;
que ao invés de me alegrar, desapontou;

a liana de meus versos decepou
e sobre as lajes do chão depositou,
sob meus passos, secas flores de jasmim,
amarelado tornando o seu carmim.

Destarte eu sinto a palidez do verso
que antes fora de púrpura e escarlate,
um celofane em estalos de ilusão,

não mais que invólucro no coração disperso,
que ainda jorra incessante e não se abate,
na hipovolêmica sangria da paixão.

EXFLUXO III

A bem verdade, é falácia o desespero;
o seu retorno já de fato nem espero,
mas sempre apelo para a imaginação,
manso sarcasmo a servir-me de bordão.

Pois nada existe a ser de fato deprimente
que minha esperança resseque totalmente;
espero em mim, confiante no ademais,
por mais que dela não espere nada mais.

Pois afinal, o desmedido amor
não brotou para meu peito nesse influxo,
de mim saiu, em gêiser permanente

e mesmo que não tenha o seu calor
a potência ainda mantenho desse fluxo
como num sonho realizado no presente.

EXFLUXO IV

E se o amor de antes se fizera em turbilhão,
em uma eclusa agora está contido;
todo o canal do influxo vivido
fui eu que o abri com goiva e com picão!

Abri à pá e à enxada essa vazão,
os versos arranquei do meu olvido,
suguei da lama o meu estro perdido
e é só de mim que deriva essa emoção!

É lastimável que não a possa repartir,
ao arrastar pelo fio de sua geleira
os mil versos em farrapos de cristal;

mas quem sabe se a outrem vou nutrir
com o encarnado sangue de minha esteira,
nas ânsias carmesim do meu fanal.

FAÚLHAS I – 07 DEZ 02

Dizem que amor desbota, quando a posse
        a esperança esgota – que era a espera,
        que tanto imaginava sutil fosse
        o prazer que seu beijo então me dera...

E que esse beijo, enfim, ao ser negado,
        melhor servisse ao palpitar do sonho
        que um beijo no passado já gozado,
        cujo sabor recordo e ao qual me exponho...

Não é assim comigo.  É a posse mesma
        que me entusiasma mais.  Esse jamais
        apenas me revoga e nega o ardor...

Enquanto esse teu beijo me ensimesma
        e me faz rebrilhar sonhos vitais,
        manifestados em novo resplendor...

FAÚLHAS II – 16 JAN 15

E se o amor não desbota, mas aquece
quando recebe a aquarela de teu beijo,
muito mais colorido vem o ensejo
de um novo beijo receber em prece.

E se o amor não fruído desfalece,
tão só crisálida se faz, em leve adejo
e se desfaz no vácuo do desejo,
quando se cumpre, mais se fortalece.

Pois de teus lábios fagulhas se desprendem,
na etérea explosão de mil faíscas,
arco voltaico de místicas centelhas

que até minha boca sobem e me prendem,
da pescadora as mais formosas iscas,
como um ramo de sabores em corbelhas...

FAÚLHAS III

Contudo, descobri nos desenganos
que outra forma de beijo se desprende,
exalação arcana que mais prende
na comissura dos lábios com seus danos.

E me aconselham, com furtivos planos,
que vá buscar essa mística que atende
toda fragrância que pelo ar se pende,
mais invencível que os reais enganos.

Assim escuto os beijos invisíveis
que me rodeiam e se queriam dar,
mas sem ter lábios para me oscular;

talvez os outros sejam insensíveis,
mas não tais colibris, que busco mais
e em seu flutuar se fazem sonhos corporais.

FAÚLHAS IV

Pois beijo o fogo nas anáguas de sua luz,
beijo fantasmas de líquidas visões,
beijos de ar, de sol, palpitações
em redemoinho que passa e me seduz.

Tendo os braços abertos como em cruz,
busco tais beijos de mansos turbilhões,
cubro minha pele com tais eructações,
róseos mamilos de invisíveis seios nus.

E se não os encontro no jardim,
vou procurá-los no alto do terraço,
em que as almas revoam a seu destino

e as mais doces faúlhas dão a mim,
antes que evolem ao derradeiro passo,
para que as ouça num clamor de sino.

SEDIMENTOS I – 17 JAN 15

Camada após camada se acumulam
Os arenitos vermelhos de minha vida,
Sedimentada cada despedida,
Mágoa vê mágoa e sem pesar se osculam.

Em terracota as camadas se acumulam
Na senda seca e milenar perdida,
Acenos ocos de cada luz despida,
Mil grãos de areia que ao coração pululam.

Estranha aterosclerose, sem oleosa
Acumulação em qualquer artéria ou veia,
O que me entope são os grãos de areia,

Cacos minúsculos da alma laboriosa,
Vidrilhos reluzentes de harmonia,
Cada tristeza nova fonte de magia!...

SEDIMENTOS II

Desce a paixão em cacos de granada,
Preenchendo dez buracos no meu peito;
Desce a incerteza em singular conceito,
Toda a alma a preencher desordenada.

Desce a tristeza, turquesa esfarelada,
Como os pregos que traz faquir ao leito;
Desce a ganga do diamante desde o eito,
Como a lágrima de fúria desvairada.

Desce a ágata, em cintilar de inveja
E calcifica paulatina minhas entranhas,
Lápis-lazúli escorre por minhas veias;

Contra o crisólito cada faixa se festeja,
Arrancada com sangue das montanhas,
Iguais adagas a me romper as teias.

SEDIMENTOS III

Toda a alma humana um composto mineral
Em que o cristal superjacente se derrama;
Cada emoção como jóia se conclama,
Breve magma vulcânico em castiçal.

São delicados os estratos, afinal,
Fila após fila deposta como escama;
Cada ilusão para si lugar reclama
Contra o concreto da evidência natural.

São milhares de impressões que se recolhem,
Penas flutuando no palpo dos sorrisos,
Vaidade e orgulho no leque do pavão

E é dentro dos dendritos que se acolhem,
Caleidoscópica amplidão em cortes lisos
A cintilar no furtacor do coração.

PRECE INSIDIOSA I – 18 JAN 15

É longa a espera de quem tão pouco espera,
que na palma da mão essa quimera
da linha da sorte traz fragmentada.

Com a linha da cabeça conturbada,
como os vimes de um cesto em confusão,
com a linha que deveria ser do coração.

A este encontro denominam “linha simiana”,
em que a razão com a emoção se irmana.

Tudo pode fazer em que se empenha,
quem a palma da mão conserva prenha
desse duplo penhor tão incomum.

Porém quem tudo pode, nada faz,
tem mil caminhos e não se satisfaz,
embora os siga mais que qualquer um.

PRECE INSIDIOSA II

Quero que a cunha que me percorre a mão,
ângulo claro em sua vital oscilação,
que me circunda, qual anel, o polegar,

do Monte de Vênus a definir o seu lugar,
da Lua e do Sol em oposta posição,
filhos mostrando da imaginação,

razões concretas dê para essa estrela
que bem no centro da palma se congela,

sem esperar nada mais que a profecia,
não do futuro, que se escolhe de uma trama,
mas dos conselhos para a outrem outorgar,

que para mim por pura insídia não se via:
casei-me com mim mesmo nessa rama,
vermelho o sangue como o próprio conubiar.

PRECE INSIDIOSA III

Que seja assim vermelha essa minha espera,
turbulenta de placenta e de quimera,
que seja um útero a palpitar na escuridão.

Que não seja esse frescor de ostentação
proclamado por tantos na verdura,
mas seja a carne maternal e pura,

pois amo o verde no azul de tuas entranhas,
tropeço ardente nas trompas das montanhas.

O que desejo é a esperança avermelhada,
que me mantenha vivo na jornada,
corda de umbílico em que possa me agarrar.

Porque a esperança verde da liana
facilmente se rompe, é desumana,
igual que um pingo irrequieto de luar!...

AIS CONVULSOS I – 19 JAN 15

Embora eu fale com frequência na tristeza,
Já de há muito de tal dor me libertei:
Sinto tristeza de não possuir um rei,
Nem ver passar a carruagem da nobreza...

Mas não sinto tristeza da pobreza,
Nenhum castelo eu quis nem habitei:
Talvez no antanho com fantasmas conversei,
Mas estes tenho à volta de minha mesa...

Se não me queixo da falta de riqueza
É que possuo bens até demais,
Sem lugar ter para a todos colocá-los;

Selos e livros, melodias de beleza,
Muitos dos quais eu nem lerei jamais:
Por que um castelo ter para ostentá-los?

AIS CONVULSOS II

Mais ainda, no interior dos escaninhos
Convulsos, que o encéfalo percorrem,
Guardo ideias e sonhos que não morrem;
Alguns escapam entre os dedos, pequeninhos...

Já muitos deles espalhei pelos caminhos,
Mil fragmentos que nos meus rastros correm,
Plumas oníricas que o meu leito forrem,
Alfazemas de vapor entre azevinhos...

E se os conservo em mim, por que tristeza?
Esses meus versos traem falsidade,
Mais transitória que as luzes da ribalta.

Mas se eu falar em alegria e singeleza,
Quem irá compreender esta vaidade,
Pois quem compreende aquilo que lhe falta?

AIS CONVULSOS III

Assim, quando te falo de tristeza,
A que descrevo é aquela que sentiste;
Muito mais vezes teu coração foi triste
Do que empolgado de alegria e singeleza.

E se vê no sofrimento essa beleza
Da melancólica perda com que ungiste
A condição humana, quando insiste
Em deslustrar cada trama da certeza.

É como se dez mágoas ao redor
Continuamente puxassem os tais fios,
O tecido da vida a se esgarçar,

Ficando tênue até o mais doce amor,
Esfiapados os mais ardentes brios,
Rachado aos poucos todo o esperançar...

AIS CONVULSOS IV

Torna-se fútil o útil da poesia
Quando te encontras em contentamento;
É o desaponto que comove o sentimento
E a tristeza que tua dor delgaçaria.

Existe, é claro, a poesia da harmonia,
A descrever bom e correto julgamento,
Passos no palco, o brilho do momento,
A suave concepção da melodia...

Mas quem contempla esse verso delicado
Talvez sorria em sua melancolia,
Mas não o sente por sua alma perpassar;

Assim eu busco ao coração gelado
Dar o consolo da mística elegia
Do meu suspiro que te faça suspirar...

AIS CONVULSOS V

Pois no momento da maior inspiração,
Ao ver o pássaro voar para o infinito,
Sempre se sente o coração contrito:
Por quanto tempo lhe dura a arribação?

Quanto voa na esperança o coração?
Sempre há motivos para quedar-se aflito;
Fácil se quebra o momento mais bonito,
Pois todo o bem que se tem nos tirarão.

Por isso é belo o momento da tristeza,
Que nunca roubam para dar felicidade:
Que seja a mágoa a jóia mais preciosa,

Que não se empanará na sua beleza,
Mas que se pode ostentar com equidade
Perante a inveja, qual imagem milagrosa!

AIS CONVULSOS VI

Mas realmente, a minha tristeza é falsidade:
A mim me basta o que tenho e o que perdi,
Meus filósofos e as opiniões que já acolhi
E aquelas tantas que distribuí pela cidade.

Porém as queixas de real vivacidade,
Os mil suspiros e os ais que já emiti,
Bem compensaram as dores que sofri,
Sua expiração foi engaste de ansiedade...

Assim convivo com meus desapontamentos,
Brinco com eles de esconder e pega-pega,
Talvez eu possa desapontá-los ainda mais!

E de tristezas revestirei ressentimentos,
Nessa gangorra de uma criança cega
A quem mil cores não explicarão jamais!...

DOIDIVANAS I – 20 JAN 15

FAVELA NO NORTE É FLOR
MAS NO RIO SÓ UM CORTIÇO
EM MEU GAGUEJAR CASTIÇO
O FERRÃO ME CAUSA DOR
MAS É DA ABELHA O ESTERTOR
ESPERNEANDO AINDA NO VIÇO
IGUAL QUE ZÂNGÃO POSTIÇO
TRANSFORMEI MEL EM VAPOR.

DE QUE SERVE SEU LABOR
QUANDO A CERA VIRA VELA
E SE SUBLIMA NO AR
OU QUANDO, EM OUTRO VELAR
FORRA VELA EM CARAVELA
QUE SE DERRETE NO MAR?

DOIDIVANAS II

NA CIDADE EM QUE EU HABITO
TEMOS DOIS SANTOS PADROEIROS
MAS QUEIMAM VELA A TERCEIROS
NAS PRECES PARA O INFINITO
SÃO SEBASTIÃO LANÇA UM GRITO
FOI CORTADO DOS POLEIROS
POR DECRETOS VERDADEIROS
DE JOÃO xxiii BENDITO!

E A SENHORA AUXILIADORA
NUMA IGREJA EM ART-DECÔ
CONTEMPLA MANSA DO ALTAR
A RIVAL CONQUISTADORA,
NOVA PADROEIRA EM ANDOR
TALVEZ A SE LAMENTAR...

DOIDIVANAS III

NOS FIOS DO VIDRO EM QUE PASSA
BEM DISCRETA ESCORRE A CHUVA,
TRAÇA DEDOS COMO LUVA
SOBRE O LISO DA VIDRAÇA,
PORÉM QUANDO A ÁGUA É ESCASSA
SÓ POSSO PENSAR EM UVA,
QUER ROXA, QUER SEJA FULVA
PERDURA NOS FIOS QUE TRAÇA.

A CHUVA DANÇA NO VENTO
QUANDO APENAS UM CHORRIO
E A GOTA GROSSA SE APAGA
NO CHÃO EM BREVE TORMENTO
CHOVE A CHUVA COMO RIO
E ROLA QUAL UVA EM BAGA.

Doidivanas iv

Contudo é livre o vapor
Quando em flocos de algodão
Mais grosso EM massa de pão
Mas a gota não tem cor
Somente quando o calor
Sem respeito adensa a mão
A chuva se engrossa então
Num bambuzal de cinzor.

Porém toda chuva é presa
No anzol da gravidade
E no solo se desmancha
Minhalma, no entanto, ilesa
Somente cai em saudade
E no solo o sonho alcança.

DOIDIVANAS V

SERÁ QUE ESTA NOITE ELA
IRÁ ME TRAZER A CHUVA
SALIVA EM BAGA DE UVA
FLOR VERMELHA DE DONZELA
NO LUSCO-FUSCO DA ESTRELA
NOS MEUS OLHOS DOCE LUVA
DESCE A VELA DE ÁGUA FULVA
E MINHA AFLIÇÃO CONGELA?

SERÁ QUE QUANDO CHEGAR
TRARÁ VELAS PARA MIM
OU AZEDO MEL DA TRISTEZA
TAL PADROEIRA A ME ABRAÇAR
LUZ DE CERA CARMESIM
DERRETIDA EM SINGELEZA?

DOIDIVANAS Vi

COLMEIA SECA MINHA VIDA
JÁ NEM SEI O QUE ESPERAR
QUIS-ME O DESTINO NEGAR
TANTA BÊNÇÃO PROMETIDA
QUE NEM SEQUER TEM VALIDA
A ESPERANÇA DO CHEGAR
SE VIER QUE IRÁ ADIANTAR
VER SUA FACE TÃO QUERIDA?

RealMENTE É UM DOIDIVANAS,
COMO ATEU A SUPLICAR,
MEU CORAÇÃO A ESPERAR
QUAISQUER GRAÇAS SOBREHUMANAS,
BEIJANDO A POEIRA DO CHÃO
COMO A CHUVA A BEIJA EM VÃO.

PARUSIA I --  21 JAN 15 (Retorno Glorioso)

No escuro da aurora o meu sinuelo
Percorre o pago a relinchar na senda;
Ao meio-dia, meus olhos cobre a venda:
Na séstia, meu pelego é meu castelo.

No travesseiro da sela o rosto belo
Só me avalia, tal qual visão de lenda;
Tê-la nos braços riscara já da agenda,
Não esperava merecer mais o seu zelo. 

Mas ali está ela, que de longe viajou
E me entrou, de mansinho, no galpão,
Um sol que chove em temporal de luz,

Nas tábuas negras só pouca luz filtrou,
São interstícios por onde adagas vão
Pingar no rosto a ilusão que me seduz.

PARUSIA II

Será um sonho apenas seu retorno?
Certamente os céus não estão abertos.
Mas os meus olhos se acharão despertos,
Sente minha pele junto a mim seu corpo morno?

Essas rédeas de luz em meu entorno
Quais pilchas vindas dos ventos desertos,
Cobrem-me as pálpebras com clarões incertos
Ou é o mormaço que me embala com seu forno?

Pois me cozinha tal e qual pó de cominho,
Pão de milho e de cevada com centeio;
Minhas vistas ainda insistem em se abrir...

De seu retorno eu me encolho de receio
Será que, finalmente, o mate em vinho
Se mudará para meu amor nutrir?

PARUSIA III

Se ela vier e me trouxer a glória,
Sem ser somente um dom do devaneio;
Se o mau destino não se mete de permeio,
Transformando mais brilhantes em escória;

Se ela vier e transmutar-me a história
Por uma tarde que seja, sem receio,
Na redenção dos mamilos de seu seio,
Na aceitação de sua flor peremptória!...

Mas nem ao menos me envolvo de esperança.
Os olhos guardo fechados firmemente,
Mesmo sentindo a ponta de seus dedos

E sua voz, meio em caprichos de criança,
Sua língua a revelar-se lentamente,
Na multidão sutil de mil segredos!...

DEUSA PENÚRIA I – 22 JAN 15

Tomei nos dedos vinte raios de luar,
para impedir que a alma se escondesse,
esperando que sua prata concedesse
durante o dia inteiro, sem parar!

Nesse rosto de mulher, a respirar
bem junto ao meu, que tal Lua me desse,
nesse frescor que no Sol nunca se aquece,
porém é cálido como um sonho de avatar!

Eu sinto a deusa, em vasta sedução,
teia de asbestos com que pôde me atrair
no meu amor que por ela azinhavrou...

Porém a tenho ao alcance de minha mão,
da longa ausência a buscar seu redimir
e minha saudade em electro transformou...

DEUSA PENÚRIA II

Por toda a vida suas promessas recebi;
no entretanto, raramente se cumpriram;
foram dedos chumbados que lançaram,
tanto no amor quanto no jogo que escolhi.

A deusa branca nas palmas eu possuí,
porém suas pétalas rosadas só se abriram
na senda inquieta que tão mal traçaram...
Foi o destino ou foi por tolo que a perdi?

Que pelo meu prazer nunca insistisse,
que como anjo sem asas só voasse,
que o suor de seu rosto não bebesse;

Foi-me tal deusa que afinal não concedesse
que até os páramos de seu trono me alçasse
ou de seu beijo eu simplesmente me escondesse?

DEUSA PENÚRIA III

Mas se eu amei sem impulsos de luxúria,
porém a tive como musa imarcescível,
como posso me queixar do inacessível,
se fui eu mesmo que invoquei a minha penúria?

Contra mim mesmo que eu projete toda a fúria
e pela vez derradeira do possível
possa tê-la no alcance irretorquível,
sem a perder outra vez mais por minha incúria.

Que seja assim.  Que o baraço novamente
se apresente diante de mim a decifrar;
qual o destino que agora escolherei?

Ou circunstâncias de novo, torpemente,
me impedirão de tal escolha completar
e em beijo seco de cristal me lanharei...?



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