AUTO DE FÉ –
Duodecaneto de William Lagos
AUTO DE FÉ I –
01/08/2010
Enquanto a vida nos
conserva vivos,
a sensação constante
conservamos
da própria eternidade
e suportamos
os males deste mundo
mais ativos,
na esperança secreta
que, incisivos,
se afirmem os recursos
que gozamos,
com que sempre, no
passado, superamos
as dores e os ataques
mais esquivos.
De tal modo, permanece
essa ilusão
de que a doença
passará e que o prejuízo,
cedo ou mais tarde,
será recuperado,
nessa urdefesa de
nosso coração,
mesmo em oposto a todo
e qualquer siso:
que a própria morte
tenhamos superado.
AUTO DE FÉ II
Nunca se sabe o que
trará o futuro
e contudo se vive qual
tal fosse,
tão garantido como o
sol que pôs-se
irá surgir após um
breve escuro.
Ninguém espera qualquer
evento duro
que à mente a morte
dos parentes trouxe,
vindo cortar o destino
que supôs-se
ser doce ou amargo
neste mundo impuro.
Mesmo que “a morte é
para todos” alguém diga,
de certo modo, dela se
acha a salvo;
“vem para todos”, se
afirma, quando em pé,
mas lhe parece que a
viver prossiga,
enquanto a foice gira
em torno a outro alvo
e assim nos poupe, em
puro ato de fé.
AUTO DE FÉ III
Contudo, antigamente,
Torquemada
chamava “auto de fé” o
auto de morte,
queimando vivos aos
que tinham a pouca sorte
de submeter-se à sua
tortura malfadada.
Não só judeus e
protestantes, a enfiada
de quem andava com
diferente porte,
todo qualquer que a
sociedade corte,
enquanto a Inquisição
era chamada
de “Santo Ofício”,
porém, de qual igreja?
que um deus de amor não
era, com certeza,
quem mantinha e
autorizava essa loucura.
Não há argumento ou
convicção que seja
que se possa coadunar
a tal vileza,
vasto exercício de
maldade pura...
AUTO DE FÉ IV
Auto de fé é a
natureza humana
que muito bem se sabe
transitória,
por mais que finja
permanente história,
tão diferente dessa
que proclama
a razão; quando
sincera nos inflama
com a esperança de
pena purgatória,
na verdade, pouco mais
do que irrisória,
porque o morrião acaba
e apaga a chama.
Mas resta o impulso
pela sobrevivência:
os outros que se vão,
porém que eu fique:
há certo gozo em
assistir a funerais...
Conosco ainda terá a
morte mais paciência,
é o que se pensa, por
mais respeito indique
nossa presença nas
exéquias dos demais...
AUTO DE FÉ V
Por isso é que se mata
e se condena:
são sacrifícios à
deusa portentosa;
e quanto mais for a
morte pavorosa,
mais atenção
despertará tal pena.
Por isso essa atração
em ver a cena
em que ocorreu a
execução famosa;
dar a morte a quem
teve vida honrosa
deixa nossa mediocridade
mais amena.
E assim nos ajuntamos
nos velórios,
afirmando ser a última
homenagem,
quando de fato é
alívio que sentimos;
quem sabe nesses vagos
peditórios,
para cuja afirmação
falta coragem,
a nossa vida mais
longa usufruímos...
AUTO DE FÉ VI
Porém a morte, afinal,
sempre é inquietante,
seja doença, acidente
ou por velhice,
ainda mais quando,
cheia de ledice,
alguma jovem
sofre um golpe impactante.
Nesse momento em que a
morte é triunfante,
sejam lágrimas
sinceras ou pieguice,
pequena voz dentro de
nós nos disse:
“talvez não tarde
muito o teu instante”.
Ele se foi e eu fico:
mas um dia
outros verão a mim no
meu esquife
e hão de pensar de
forma semelhante;
da vida a gente, de
fato, não se fia
e a morte alheia
sempre alegra algum patife
em sua trapaça sobre o
tempo delirante.
AUTO DE FÉ VII
Li certa vez que
Himmler e os nazistas
autos de fé igualmente
pretendiam,
como preciso para o
ideal que urgiam
de alcançar sua gama
de conquistas.
Pagando aos deuses
sacrifício às vistas
de todos que esse
ideal também nutriam;
pensavam em deuses
famintos, que exigiam
como holocaustos as
mais extensas listas.
Não era simplesmente
por maldade
que provocavam a morte
dos judeus,
mas propósito
enxergavam no massacre,
que seus deuses
aspiravam o odor acre
dessas fornos de ossos
que eram seus
e assim poupavam os da
germanicidade.
AUTO DE FÉ VIII
Por cada um que nos
campos perecesse,
um processo que bem
claro foi chamado
de “holocausto”, a
vida de um soldado
seria poupada na
batalha em que estivesse.
E cada corpo que a
fumaça convertesse
protegeria do
bombardeio aliado
essas cidades do povo
consagrado,
para que o mundo
dominar assim pudesse.
Tudo era fruto de um
pensamento mágico:
milhões de vítimas
seguiam para a morte
e o próprio Hades
assim superlotavam;
porém de tudo isso o
final trágico
é que acabaram por ter
a mesma sorte
ditos heróis que a
outro povo executavam...
AUTO DE FÉ IX
Mas os nazistas
tiveram outra visão:
se cremassem os corpos
dessa gente,
libertariam as almas,
certamente,
Himmler era adepto da
reencarnação.
Pois nasceriam em uma
nova geração
de milhares de
arianos, consequente
dessa doutrina brotada
de sua mente
e assim os judeus
alcançariam redenção...
Porque esses alemães
reencarnariam
para glória maior da
humanidade
e ele julgava
prestar-lhes um favor;
purificados, todos
logo voltariam
nos belos corpos que
tem a arianidade:
seu holocausto era,
afinal, ato de amor!
AUTO DE FÉ X
Fora o mesmo que
fizera Torquemada,
quando lançava os
hereges na fogueira;
queimá-los vivos
bênção era certeira,
para as almas subirem
em revoada,
direto ao Paraíso,
superada
a maldade do diabo,
corriqueira,
pois fugiam os
demônios, nessa esteira,
o seu poder derribado
para o nada!
Assim pensava o nobre
sacerdote,
mas sem pensar em
reencarnação:
era “holocausto de
suave cheiro”!
E quem a pira acendia
com archote
o fazia na maior
abnegação,
ao libertá-los do
pecado derradeiro!
AUTO DE FÉ XI
Bem semelhante era a
crença dos aztecas,
quando arrancavam dos
peitos coração;
era uma bênção
conferida à multidão
da qual acharam as
caveiras secas...
Segundo acreditavam,
todos vão
para inferno de
extermínio e de tormento;
para escaparem de tal
padecimento
era preciso ter dos
deuses proteção,
sem importar o que se
faz na vida;
o que importa é a
maneira que se morre;
quando em batalha, nos
aceita o deus da guerra,
quando afogado, o deus
da água dá guarida...
por tais motivos, da
morte não se corre,
somente é a forma de
escaparmos desta Terra!
AUTO DE FÉ XII
Mil bênçãos
semelhantes se encontraram
em outros povos, com
igual teor;
nos fornos de Moloque,
em pleno ardor,
crianças às centenas
se lançaram...
Por isso eu louvo as
hordas que avançaram
Europa a dentro,
semeando o seu horror:
não precisavam de
pretextos, só do amor
pelo massacre e
estupros que espalharam...
Nos extermínios foram
mais sinceros,
matando os outros por
simples prazer,
de vê-los mortos e
assim sobreviver...
Enquanto os
civilizados usam meros
disfarces, em cem
hipócritas razões
para explicar o cruel
de suas ações...
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