sábado, 10 de janeiro de 2015







MAMÃE TERRA (Mat Zemlya)
(Folclore russo, recolhido e atualizado por Mary Catherine Koroloff [M. K. Hobson],
A lenda original se referia ao tzar Ivan Grozny [o Terrível ou o Admirável],
versão poética William Lagos, 21 dez 14)

MAMÃE TERRA I

Três soldados andavam pela neve
no ano de Mil Novecentos e Vinte e Dois,
durante a guerra civil, terrível
como não houve nem antes, nem depois;
terrível mais o inverno e, muito em breve,
morreriam todos três da dura fome
que suas entranhas a mastigar consome,
no frio tornada ainda mais terrível.

Haviam recebido apenas as rações
para sete dias e duas semanas já passavam:
a sua missão era encontrar o Inferno!
Algumas pílulas de energia também levavam,
mas para o Cabo Pudovkin más impressões
causavam, tornando os homens violentos
e incapazes de mostrar bons sentimentos:
não as tomara, apesar do frio do inverno...

Dois dos soldados, porém, que o acompanhavam,
as suas haviam consumido inteiramente
e ao Camarada Gavorkian tinham matado
para tomar-lhe as que guardava finalmente.
No outro dia, os dois o interrogaram
e aoTovaritch Ivanov a sua latinha (*)
ele entregara, com as pílulas que continha,
que pelo solo se haviam espalhado
(*) Camarada

enquanto com o Tovaritch Blotski ele lutava,
para depois as engolirem com a neve;
já era episódio há quatro dias transcorrido...
A dormir Pudovkin mal se atreve,
pois da maldade dos outros desconfiava
e os ameaçara com a ira de Tchernov,
seu comandante, cujo temor ainda os comove,
mas disciplina, certamente, haviam perdido.

MAMÃE TERRA II

Pudovkin, agachado, descansava,
por sob os galhos das árvores despidas,
com os braços bem cruzados contra o peito,
indiferente às discussões renhidas,
com que Blotski a Ivanov reprovava;
segundo ele, o outro errara na leitura
da bússola e os levara àquela agrura,
mas Ivanov garantia haver defeito

causado pelo frio.  Pudovkin só pensava
no antigo campo de seu avô Nikolai
e nas histórias que o velho lhe contara...
Por possuir granja, como Kulak vai
ser fuzilado pela milícia que o acusava,
do grave crime de ser um latifundiário;
mas trabalhara igual que um operário
na fértil terra negra que ele amara...

Pudovkin bastante lamentara
não ter podido vir e defendê-lo,
mas era longe o colégio de Kiev,
em que estudara com o maior zelo
e ao Partido há tempos se ligara...
Mas se pudesse vir, que serviria?
Aquela gente também o fuzilaria,
sem discutir, mediante uma ordem breve...

Com toda a fome que agora ele sentia
e que enganava com casca de vidoeiro,
Pudovkin até sentia falta das rações,
duras, sem gosto, mas que aqueciam ligeiro,
que algum produto químico garantia
dentro do invólucro de folha de estanho,
que normalmente lhe davam enjoo tamanho
e que trocava nas primeiras ocasiões...

MAMÃE TERRA III

Eram uma invenção do Comandante
Tchernov, que cursara universidade
e como engenheiro químico se formara,
coisas criando com regularidade,
novos artigos, conforme achava interessante:
cobertas de borracha, em vez de cobertores,
botas gigantes com amortecedores –
porém que a marcha a ninguém facilitara...

As botas e as cobertas somente os afastavam
do contato amigo com sua velha terra
e até mesmo a branca neve derretiam,
mas depois se endurecia e, nessa guerra,
muitos de seus camaradas congelavam...
Não podiam parar em um só lugar,
constantemente precisavam de mudar
e dessa forma, muito mal dormiam...

Mas Tchernov os queria mesmo aborrecidos,
para abafar os seus melhores sentimentos
e quando entravam numa aldeia imperial,
segundo classificava, em tais momentos,
fazia matarem a todos os vencidos,
juntar as provisões e então queimar
a aldeia inteira, para nada mais sobrar
aos adversários, a quem culpava por tal mal.

Mas agora, haviam as pílulas terminado
e lhes restava tão só ferocidade,
mas precisava completar a sua missão
e ao ver que Blotski, por animalidade,
espancava a Ivanov, num prazer descontrolado,
usando um galho que acabara de quebrar,
Pudovkin então lembrou-se de tocar
A sua zhaleika, que esculpira com paixão. (*)
(*) Pequena flauta de madeira.

MAMÃE TERRA IV

Já outras vezes aos soldados acalmara,
tocando a flauta em suave melodia;
logo Blotski seus golpes suspendeu;
Ivanov, ainda agachado, igual ouvia...
Graças a Lênin! – Pudovkin pensara.
Vamos ao menos os três morrer em paz...
A música a alma eslava satisfaz;
seguiu tocando e então se surpreendeu.

Surgira ante eles uma velha mulher,
bastante gorda ou então, bem enroupada;
somente podia lhe ver as mãos e a face,
em um tom negro profundo revelada;
nas mãos o sal e o pão que se requer,
khleba a oferecer aos visitantes,
mais o sali para descansar os viajantes,
se bem cansaço em seu todo se estampasse...

Vestida estava igual que camponesa:
um sarafano vermelho a recobria,
um cinto negro da mais pura lã,
uma kopashnik de pérolas vestia, (*)
o pão e o sal sobre toalha de nobreza...
Ivanov e Blotski sobre ela se jogaram,
com mãos em garra o pão preto disputaram...
“Bem-vindos ao Inferno!” – disse ela, nesse afã.
(*) Estola bordada com joias ou bijuterias.

Os três a seguiram sob a luz da lua,
as árvores ao redor em esqueletos,
por uma estrada de terra bem batida,
com a neve recoberta por gravetos...
Mas quem mantinha aquela senda nua?
Todo o gado fora morto nessas guerras,
Gamos e renas haviam fugido para as serras,
Mas estava a trilha claramente definida!...

MAMÃE TERRA V

“São meus filhos que conservam esta estrada,”
disse a velha.  E assim os três a acompanharam;
ficou Pudovkin um pouco para trás;
alguns ramos sob seus dedos se dobraram,
em outros pontos deixou casca marcada:
queria saber o caminho de retorno!...
Talvez o Inferno fosse até um pouco morno,
mas lá ficar não pretendia o bom rapaz...

Toparam finalmente com árvore gigantesca,
a maior que Pudovkin já encontrara:
tinha a envergadura de um navio de guerra
e sua ramada contra o céu já se espalhara;
só umas estrelas entre os galhos a vista pesca,
crescendo livre sobre o cume de um outeiro,
mais longe ainda a parecer o paradeiro
daqueles ramos que se alteavam como serra...

Sob o outeiro, abria-se caverna:
igual a piche surgia o seu negror,
mais larga que os portões do Kremlin;
indagou Blotski, tomado de pavor:
“Será segura essa escuridão interna?”
Pudovkin, com desdém, lhe respondeu:
“O que é seguro, quando a luz do céu
se abre para um túnel negro assim...?”

“Tchernov nos mandou achar o Inferno
e aqui estamos nós...  Vamos entrar.”
“Será que existe aqui qualquer comida?”
“Quem sabe, camarada, se ajoelha e vai rezar?
Não quer perder o Paraíso eterno?...”
“Rezar é proibido.  Eu sou um comunista!”
Blotski encarou a escuridão que avista:
“O Inferno dos padres eu levo de vencida!”

MAMÃE TERRA VI

A velha os encarou com impaciência:
“Querem ou não chegar até o Inferno?”
“Você é Baba Makosh?” – indagou Pudovkin.
“Vejo que me conhece, subalterno...”
“Mamãe Papoula – semente de potência...”
“Seu avô Nikolai foi meu amigo;
não o lamente – agora está comigo...
Mas esses dois não pensam bem de mim...”

“Desculpe, Mamãe, mas não são povo de aldeia...”
“Mesmo assim, muito sangue me plantaram...
Recorde, filho, em toda morte há alegria...”
Assim os quatro na caverna penetraram;
Pudovkin, na retaguarda, ainda receia,
com a faca a riscar cada parede;
não pretendia permanecer naquela rede,
um tanto inquieto com o que a velha lhe dizia...

Desceram por um túnel muito escuro,
no fim do qual, finalmente, havia luz,
desembocando em uma bela aldeia,
com isbás pintadas de um vermelho que reluz (*)
ou azul profundo, o ar límpido e puro;
porém não via qualquer pessoa ou animal...
Foram levados até o ponto mais central,
onde, em geral, a igreja é que se alteia...
(*) Cabanas de madeira.

Não estava frio e nem quente demais
e os três soldados caminhavam facilmente;
mas o edifício no lugar da igreja
deixou inquieto Pudovkin novamente:
era formado pelas raízes naturais
da enorme árvore que se erguia lá fora;
tarde demais, porém, para ir embora,
por mais que um templo a deus antigo ali esteja!

MAMÃE TERRA VII

Lembrou-se bem das histórias que contara
o seu avô e sentiu um calafrio...
“Esta é a casa em que mora meu marido,
o Deus do Inverno, meu esposo para o frio,
que doze filhos comigo um dia gerara...”
À carne assada o ar dentro recendia,
a queijo, peras e cereais, como sentia
nos celeiros que antes havia conhecido...

Mas ao redor de si havia riqueza
qual nunca vira, desde o início da guerra!
Em ouro e joias você decerto pensaria,
mas bem diversa a que o salão encerra...
Mais de mil sacos de trigo... Em sua magreza,
Pudovkin com cem presuntos se encantava,
carne salgada e batatas contemplava,
beterrabas e nabos gordos ainda via!...

Nos últimos anos, só couves consumira,
em ensopados, com uma colher de aveia
e a vodka habitual de sua ração...
Até de olhar o alimento se arreceia:
era comida que ele nunca produzira!
E se o acusassem de roubar do povo...?
Mas se perdia, no encanto do renovo,
com um respeito que era quase religião!

Mas Ivanov e Blotski não sentiam
o menor escrúpulo perante a situação;
os dois saltaram sobre um vasto queijo,
mordendo a cera, sem a menor hesitação;
enormes nacos desprendiam e comiam,
até caírem ambos, estufados,
num estupor de estômagos recheados...
Mas Pudovkin se guardou de tal ensejo...

MAMÃE TERRA VIII

Já ia indagar alguma coisa à boa velha,
que bem depressa lhe pediu silêncio.
“Meus filhos chegam,” disse simplesmente.
Abriram-se as portas, com fragor imenso
e doze criaturas contemplou de esguelha,
negras de piche, visíveis e invisíveis,
gamos e homens, figuras incompreensíveis,
que não podia fitar abertamente...

Não entendia se caminhavam ou troteavam
e seu olhar se perdia através delas;
contudo, falavam russo como gente,
não a linguagem dos palácios ou favelas,
mas as palavras que no campo ainda usavam...
Algumas delas, nem os popes conheciam. (*)
Bem no centro do salão já se reuniam
e no meio deles se ergueu figura diferente...
(*) Padres da Igreja Ortodoxa.

Era um gigante, vestido em grande luxo,
em prata e verde, mantos numerosos...
Só depois percebeu que era a sua pele!
Vastas camadas de tegumentos escamosos,
na testa chifres, como um velho bruxo...
Era o Deus Veles!... Seu coração quase parou.
O Deus do Inverno, que o comércio dominou
e o gado ampara, embora o mundo gele!...

Mamãe Makosh em seu ombro lhe tocou
e os dois, prontamente, se ajoelharam;
Ivanov e Blotski no chão permaneceram,
quais ratos gordos, dormindo se embolaram...
Veles em trono esmaltado se assentou
e os doze filhos trouxeram-lhe presentes,
que eram aceitos, com acenos imponentes
e um a um para os cantos se moveram...

MAMÃE TERRA IX

Cada um deles com alguns sacos saía
e Pudovkin indagou o que faziam.
“Levam a mercadores encomendas
em troca das oferendas que traziam.
Dez vezes o preço cada um deles cobraria...”
“Mas o povo tem fome, ele não sabe?”
“Todos os animais lutam pelo que lhes cabe,
morrem muitos, outros seguem em suas sendas...”

“Mas não são animais, são seres humanos...”
“As criaturas vivas gozam de felicidade
enquanto são vivas; em seu morrer, porém,
dão a outras a vida em sua bondade;
felicidade há assim todos os anos...”
Veles em longos pergaminhos anotava,
enquanto os filhos depressa despachava...
Logo a velhinha adormeceu também...

Só depois disso, ele notou Pudovkin...
“Há muito tempo que hóspedes não temos.”
Ergueu-se diante dele, um ser imenso,
com quatro metros ou mais em seus extremos,
sem contar os chifres ou a longa causa assim.
Bateu com ela no chão, em grande estrondo;
Blotski e Ivanov de pé se foram pondo...
“Quem é você?” – indagou Blotski, já tenso.

“Será possível que vocês já me esqueceram?
Estão perdidos a adorar o Cristo Branco?”
“Não esquecemos,” falou rápido Pudovkin.
“Sois o grande dragão deste barranco,
o Deus do Inverno, que os mercadores adoraram.”
“Deuses não há no mundo pós-Revolução!”
disse Ivanov.  “E tampouco algum dragão,”
falou Blotski, que era atrevido até o fim...

MAMÃE TERRA X

Veles os fitou, com grande intensidade
e os dois de imediato se encolheram.
“Vocês adoram o Deus Lênin e o Deus Marx.”
Fez um sinal e os dois adormeceram.
“Já esqueceram o seu Cristo, na verdade,
contudo a senda encontraram até o Inferno...
Passam os deuses e permanece o Inverno:
cubro de branco suas cidades e seus parques...”

“Agora acorde, mulher, quero jantar!”
A Mãe Papoula se ergueu, rapidamente,
e foi aos fundos, decerto até a cozinha,
trazendo logo um grande assado quente
e uma mesa, nos próprios pés a caminhar...
O Inverno engoliu tudo, com prazer,
a Pudovkin nem migalha a oferecer,
que até da mão o esticar ele continha...

E com a ponta da cauda ele espancava
a pobre velha, para que andasse mais depressa.
Pudovkin a interceder por ela se atreveu.
“Este é meu reino, filho, não se esqueça!
Seu avô a suas macieiras não podava?
Agora toque a sua zhaleika para mim;
o deus dos músicos esqueceu que sou assim?”
Pudovkin, muito depressa, obedeceu...

Depois que o Inverno sentiu-se satisfeito
e escutara sua música à vontade,
quis seu hóspede faminto interrogar:
“A que vieram aqui?  Fale a verdade!...”
“Nosso Comandante achou ter o direito
a alguma coisa que à nossa Causa ajudará
e que somente por aqui encontrará...”
“E qual é a Causa que pretendem implantar?

MAMÃE TERRA XI

“Nossa Causa é a justiça da Revolução,
para os egoístas e autoritários derrubar,
a fim de dar a todos parte igual:
toda a riqueza redistribuir após juntar!”
“Mas que há de novo em tal redistribuição?
Eu redistribuo a riqueza todo o tempo...”
“O senhor comercia, desculpe o atrevimento,
nós redistribuiremos, de uma forma natural...”

“Isso é impossível,” afirmou o Inverno.
“Será como plantar trigo sem ter sol;
o que a terra me dá, eu dou à Terra;
o camponês trabalha desde o arrebol
e dá seu corpo, após o descanso eterno;
com a Terra eternamente comerciamos;
nada nos dá, se a ela nada damos;
mesmo seu sangue, vocês dão durante a guerra.”

“O que queremos, com todo o respeito,
é dar a cada um o quanto precisa
e tomar dele só o que pode produzir...”
“Cada boi come a erva da terra em que pisa;
por que o boi parado poderia ter direito
ao mesmo pasto que o boi trabalhador?”
“Porém falamos de homens, meu senhor:
Todos iguais com igual direito a se nutrir...”

“De forma alguma!” – protestou Veles Inverno.
“Os homens são, muito ao contrário, diferentes.
Há grandes homens e uma vasta maioria
que não vale mais do que ratos descontentes,
como seus dois companheiros em meu Inferno!”
Ivanov e Blotski, em grandes ratos transformados,
dormiam no chão, a roncar, bem abraçados...
“Cansei, Mamãe!... Dê ao flautista hospedaria!”

MAMÃE TERRA XII

A velha o conduziu, muito cansada,
até uma alcova, à beira do salão
e lhe indicou uma cama e cobertores;
sentindo a fome a lhe roer o coração,
deu-lhe um pacote, Folha de Flandres estanhada: (*)
“Meus filhos o encontraram no outro inverno;
você fez bem em não comer nada no Inferno,
coma a ração de seu Tchernov sem temores...”
(*) Folha metálica de estanho, hoje substituída por alumínio.

Logo a fome se foi e um vasto calor
percorreu-lhe todo o corpo de repente.
A velha o acariciou.  “Você recorda...
Seu avô me tratou sempre fielmente.
Não lamente sua morte.  Seu amor
está comigo e me traz felicidade;
nunca se esqueça de que só eu sou a verdade;
logo virá a primavera, que me acorda...”

Tocou-lhe a testa, com grande carinho:
“Vocês hoje têm estranhos pensamentos...”
“O que pensamos é acabar com a opressão
dos pobres por esses ricos sem lamentos...”
“Vocês inverteram todo o meu caminho:
são os pobres que aos ricos mais oprimem...”
“Como assim?”  “São os que mais consomem.
Os ricos guardam para sua manutenção...”

Pudovkin já não mais podia entender,
porém lembrou de que seu avô guardava
a produção de toda a aldeia nos celeiros
e nos invernos, pouco a pouco, ele a entregava;
e os mercadores de longe iam trazer...
Se não houvesse alguém para guardar,
nem existisse quem quisesse comerciar...
E adormeceu, entre sonhos lisonjeiros...

MAMÃE TERRA XIII

Quando acordou, já no meio da manhã,
ouviu o barulho de tanques e soldados;
a tropa inteira o negro túnel já cruzara.
Mamãe Papoula, com passos apressados,
lhes trazia o pão e o sal, em grande afã;
Tchernov, com um tapa, virou a sua bandeja.
“Não somos tontos em comer o que se enseja
aqui no Inferno, que a estes dois tolos transformara!”

Mandou agarrar a Blotski e a Ivanov,
enquanto tirava uma seringa de um estojo,
aplicando em cada um deles injeção...
“Viraram ratos!  Vocês dois só me dão nojo!”
De novo humanos, cada um deles se move.
“Vou os dois guardar para meu julgamento;
em breve teremos um bom fuzilamento...
Vimos um morto... E do flautista, a situação?”

“Aqui, Camarada!” – falou Pudovkin.
“Pelo visto, recusou-lhes a comida...
E foi vocês que nos marcou o caminho?”
“Sim, Comandante!  Marquei a senda devida,
a sua missão eu cumpri até o fim...”
“E onde se esconde, afinal, essa serpente?
Se não a matar, para mim é indiferente,
foi a você que vim buscar, Velha do Ancinho!”

Pudovkin se encolheu com o tratamento:
Era o que os popes para a Mãe Terra usavam!
Mas Mat Zyra Zemlya em nada protestou
(Mamãe Terra Úmida, os muzhiks a chamavam) (*)
e Tchernov a segurou, com atrevimento...
Só então a caverna iniciou a tremer
e cem cobras começaram a aparecer:
do chão e do teto cada uma ali chegou!...
(*) Camponeses.

MAMÃE TERRA XIV

E se reuniram no centro do salão,
compondo novamente o Deus Inverno,
com quatro metros de altura a se mostrar,
escamas verdes e prata em seu externo,
os soldados já a recuar, em confusão.
Mas Tchernov, ao contrário, lhe mostrou
um amuleto, que do capote retirou,
com o símbolo do raio a rebrilhar!...

“Você ousa mostrar aqui esse sinal!?
Justamente no interior do meu salão?...”
“Eu não apenas trago este amuleto,
estou, de fato, sob a sua proteção
e vim buscar a sua esposa natural.”
“Ela é minha durante todo o inverno;
há entre nós antigo pacto eterno,
na primavera a entregarei a seu afeto!”

“Primavera ou outono, pouco importa,
eu vou levá-la para fazer verão;
o ano inteiro irá crescer o alimento
e nunca mais virá a neve em profusão,
pois seu poder o meu amuleto corta!...”
“Perum não tem qualquer poder aqui;
sob as raízes do mundo me escondi:
só a entregarei ao chegar o seu momento!”

“Hoje as coisas mudaram, deus antigo!
Vou criar a vida sem o seu consentimento
e não poderá impedir-me mais agora!...
Não percebeu o meu procedimento:
forte herbicida eu carreguei comigo
e ao redor das raízes derramamos
da árvore mágica que no alto encontramos,
que já estará bem morta, sem demora!...”

MAMÃE TERRA XV

Tchernov tirou do bolso uma bateria
que havia inventado, em formato de maçã,
e num instante, apertou ali um botão:
Veles Inverno encolheu-se como rã.
“Que fez comigo?”  Sob a descarga ele gemia
e logo em seguida começou a desmanchar,
cem serpentes no assoalho a agonizar.
“Mulher!” – ainda gritou, em confusão.

Mas Mat Zemlya dormia... E Veles se desfez,
enquanto o grande salão apodrecia...
Tchernov acordou a Mamãe Terra
e logo com ela na alcova se escondia.
A soldadesca inquieta, por sua vez,
ao verem as paredes a rachar,
mas tinham ordens e precisavam de esperar:
Tchernov os comandava nessa guerra!...

Após algumas horas, retornaram
Tchernov e uma linda moça nua,
verde na pele, nos olhos e cabelos,
que de energia e força então estua.
Todos os olhos se arregalaram,
mas ela chegou até Pudovkin.
“O que ele fez, para deixá-la assim?”
“Nada importa!  Retomei os meus desvelos...”

“Ele me diz que posso ficar com meu Perum
o ano inteiro e assim será sempre verão!”
“Mas quando, então, a senhora irá dormir?”
“Ele me disse que não terei mais precisão:
Verão e Inverno serão apenas um
e as colheitas nos kolkhozes crescerão (*)
eternamente e com sangue as regarão,
para que a Terra sempre possa se nutrir!”
(*) Granjas coletivas.

MAMÃE TERRA XVI

Tchernov então mandou aos três prender:
“Começaremos com um breve julgamento;
para à Terra fornecer rega inicial,
precisaremos de um bom fuzilamento!”
“Não!” – disse a Terra – “primeiro dança vou ter
E meu flautista irá tocar a melodia!
Sem essa dança, a primavera não se cria!”
“Dance, então!” – disse Tchernov, afinal...

“Então toque, volynshtchik, de uma vez!” (*)
E Pudovkin então pôs-se a tocar
a melodia suave do degelo,
as notas simples do primeiro despertar;
mas ao poucos, métrica mais rápida fez
e a Primavera batia os pés no chão,
vasto tremor a percorrer todo o salão,
dançando a jovem no ritmo mais belo...
(*) Flautista

Mas quanto mais depressa ela dançava,
surgindo no ar aroma a trigo e flores,
o largo teto começou a desabar,
os soldados a gritar, em seus temores.
Tchernov em vão para a interromper gritava,
Pudovkin em ainda mais rápida melodia
e logo o salão totalmente derruía,
Tchernov e a tropa inteira a sepultar!...

Pudovkin acordou-se num relvado,
por sob a sombra de árvores em flor;
numa tontura, ergueu-se lentamente...
Mas quanto tempo transcorreu daquele horror?
Não enxergava a colina em qualquer lado.
Assim terminam esses sonhos de conquista...
Ora, Tchernov nunca foi um bom comunista!
A um deus antigo ele adorava, realmente!...

EPÍLOGO

Começou a caminhar, sem ter destino:
vestia-se agora como um simples camponês
e a jovem nua apareceu-lhe ao lado...
“Seus companheiros morreram, como vês,
mas a você eu salvei, meu pequenino...
Vá para longe e fuja desta guerra,
procure o leste, a Rússia é vasta terra,
na primavera você será abençoado...”

“De fato, Veles se encontra satisfeito:
tem muitos espíritos para seus escravos...”
“Quer dizer, então, que não morreu?”
“Claro que não.  Os velhos deuses eslavos
à eterna vida conservam seu direito...
Mas este ano eu terei longa primavera
e um longo verão também me espera:
Lá nos céus, já meu Perum me recebeu...”

“Contudo, um dia, voltará o Deus Inverno;
sempre haverá esta alternativa,
para que a Terra trabalhe e adormeça;
santo é o Inverno; também santo é o Verão.
Vá para o leste, onde o labor é eterno
e lá achará boa terra em que plantar...”
Partiu dançando. Igual que o avô, a hei de desposar,
pensou Pudovkin, no breve dia em que eu pereça!...

William Lagos
Tradutor e Poeta
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com



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