ABERLEMNO
William
Lagos, 30/07/2010
ABERLEMNO
I
se,
por acaso, escrevêssemos o enredo
para
nossas próprias vidas, de antemão;
se
pudéssemos olvidar que esse filão
de
nossas experiências, em segredo,
tenha
sido concebido ante um degredo
para
este mundo, de singular paixão,
por
falta cometida e sem perdão
e
o redigíssemos, para afastar o medo?
quiçá no início, esse inteiro monumento
já
foi traçado, para evitar-nos penas
e
nos dar experiências mais ditosas;
mas
ocorreu uma falha no orçamento
e
nos tiveram de cortar algumas cenas,
só
nos deixando as sequências dolorosas.
ABERLEMNO
II
a
alternativa é que o crime cometido
a
nossos próprios olhos fosse odioso
e
até pedíssemos castigo tenebroso
para
aplicar em nós mesmos, ressarcido
o
nosso carma por dito mal sofrido,
neste
âmbito fatal e tortuoso,
escolhendo
justamente o doloroso
ordálio
do julgamento autoinduzido.
então
a cada encarnação cabe um sentido,
algo
de humano a usufruirmos plenamente,
até
se esgote dele o ensinamento;
e
por isso tanto mal temos querido,
que
nos conduza mais diretamente
à
conquista final do esquecimento.
ABERLEMNO
III
pedi
a meu espírito voasse
e
tentasse identificar o paradeiro
daquela
que ocupou o derradeiro
lugar
no reembolsável de meu peito.
pedi
a meu espírito cantasse
em
seu ouvido meu pranto verdadeiro;
soubesse
da paixão que, por inteiro,
me
dominou, em sonho sem defeito.
porém
o espírito se encolheu de luto,
ao
ver que já morrera o sentimento
que
a tanto me induzira e entusiasmara;
sabe
melhor que eu, em seu arguto
perceber
de como é errôneo o julgamento
de
quem a amor aspirar já se cansara.
ABERLEMNO
IV
aberlemno,
nome estranho explicarei;
por
certo viste já a peculiar cruz,
cuja
elegante aparência nos seduz;
é
essa cruz que então descreverei:
os
braços brotam de um círculo, sabei,
que
dizem ser a unidade e que reluz;
por
trás dos braços se encontraria Jesus,
do
pai o remidor da antiga lei;
mas
esse símbolo é muito mais antigo,
foi
empregado por velhos navegantes,
como
astrolábio a indicar sua posição;
o
círculo era graduado, meu amigo
e
os braços se moviam, nos instantes
em
que os girava o piloto em precisão.
ABERLEMNO
V
eu
me dispus a cometer erro profundo,
induzido
pelas vascas da paixão,
abandonando
meu próprio coração
e
a penetrar em tal peito sem fundo;
eu
me induzi, em gesto moribundo,
a
desistir do ardor da possessão;
queria
apenas ter a sua aceitação,
talvez
o gosto de seu beijo rubicundo;
assim
a pus no centro de meu mundo,
por
ser a única forma de ficar
junto
do centro dessa cruz, a me iludir
que
meu destino teria igual fado rotundo,
pois
como centro de seu mundo há de ficar
e
desse ponto sei jamais irá sair...
ABERLEMNO
VI
e
se esse mundo seu, entorpecente
anel
de mil escolhas vacilantes
para
mim só demonstrar as sufocantes
exigências
de um orgulho onipresente,
de
tal modo que me sinta muito rente
podado
em meus desejos delirantes,
servindo
só ao prazer de seus instantes,
mas
predisposto a tal servir paciente;
pois
não posso retirá-la desse mundo,
cuja
saída nem sequer ela conhece
e
se a soubesse, nem a quereria usar
e
algumas vezes revolto-me, iracundo,
da
servidão que não responde a prece,
só
pela bênção de podê-la acompanhar...
ABERLEMNO
VII
porém
o tempo traz ressentimento,
novos
anseios pela liberdade,
esse
confuso dom da humanidade
que
nos confunde tanto o julgamento
e
nos induz ao enfraquecimento
do
mágico esplendor da realidade
e
contamina a maior sinceridade
na
busca vã de um novo assentamento.
é
muito fácil dar início à rebelião
contra
qualquer externa tirania:
esses
altares se derrubam sem tristeza,
mas
as correntes que a própria mente cria,
forjadas
por artérias e emoção
resistem
muito mais a tal empresa.
ABERLEMNO
VIII
o
problema está nas grades da prisão
que
se forja em gaiola permanente;
mesmo
que nada exista exteriormente,
o
que é mais real do que a imaginação?
quando
criamos a cada constrição
que
nos prende a nós mesmos, firmemente,
não
existe qualquer força suficiente
para
quebrar tal muralha de emoção.
porque,
afinal, nossa cela é confortável
e
nela estamos bem acostumados:
em
seu exíguo espaço há segurança,
sem
precisarmos de enfrentar o transmutável
que
nos aguarda nos externos fados
a
que nos possa conduzir qualquer mudança.
ABERLEMNO
IX
mas
no meu caso já foi coisa diferente:
amava
era o amor e a luz que vinha
dessa
mulher, que constituí rainha
e
que buscava de forma permanente.
e
percebi o quão dificilmente
a
poderia tornar somente minha,
pois
centrada em si mesma se mantinha
nesse
círculo em que reinava totalmente.
porém
me decidi: cruzei o umbral
que
dava acesso a seu palácio triste,
deixando
a porta se fechar atrás de mim;
ergueu-se
a levadiça no final,
mas
é a vontade própria que hoje insiste
em
conservar-me aprisionado assim.
ABERLEMNO
X
ante
o centro de seu mundo assim gravito;
minha
órbita irrequieta se conforma
a
seus desejos, dos quais nada transforma:
sou
apenas mobiliário e mal me agito
nesse
castelo em cruz no qual habito,
que
necessita urgente de reforma,
mas
não aceita qualquer alheia forma,
por
mais que algo a refazer concito.
“é
assim que sou e não posso mudar”,
é
o que ela diz ante o menor protesto.
“se
não te serve, podes ir embora...”
mas
nesse seu altivo libertar,
ela
me prende com mais firme gesto,
como
uma nuvem insuflada pela aurora.
ABERLEMNO
XI
meu
coração é assim, quando se entrega,
me
entrega totalmente e sem rompante,
seu
aberlemno é todo o meu sextante,
duro
astrolábio que meu destino lega.
pois
para amor inteiro me carrega
de
tal mulher altiva e petulante,
que
quis mulher gentil e acarinhante,
sem
encontrar sintonia ao que me apega.
pois
penso em tudo, só não penso em mim,
já
que pertenço a tal mulher inteiramente,
enquanto
a amor escravo permaneço,
até
que a jaça se revele assim
e
o espelho baço me sorria indiferente,
depois
que o próprio amor de mim esqueço.
ABERLEMNO
XII
porque
habitar uma prisão de amor,
todo
grilhão soldando ao próprio pé,
do
amor sincero meigo apanágio é;
não
se deseja o sol de outro calor.
bem
ao contrário, se umedece sob o ardor,
que
amor sincero é a mais perfeita fé
e
ali permanecer pretende até
que
se rache do cristal todo o esplendor.
porém
um dia, outras cartas do baralho
serão
jogadas ao redor da mesa,
a
cada um dada nova e incerta mão;
e
enquanto amor a meu redor espalho,
escravo
sou do amor com mais certeza
que
acorrentado tão somente a um coração.
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