quinta-feira, 1 de janeiro de 2015






ABERLEMNO
William Lagos, 30/07/2010

ABERLEMNO I

se,  por acaso,  escrevêssemos o enredo
para nossas próprias vidas, de antemão;
se pudéssemos  olvidar  que esse filão
de nossas experiências,  em segredo,

tenha sido concebido ante um degredo
para este mundo,  de singular  paixão,
por falta cometida e sem perdão
e o redigíssemos,  para afastar o medo?

quiçá  no início,  esse inteiro monumento
já foi traçado,  para evitar-nos penas
e nos dar experiências  mais ditosas;

mas ocorreu  uma falha  no orçamento
e nos tiveram  de cortar  algumas cenas,
só nos deixando as sequências  dolorosas. 

ABERLEMNO II

a alternativa é que o crime cometido
a nossos próprios olhos fosse odioso
e até pedíssemos castigo tenebroso
para aplicar em nós mesmos, ressarcido

o nosso carma por dito mal sofrido,
neste âmbito fatal e tortuoso,
escolhendo justamente o doloroso
ordálio do julgamento autoinduzido.

então a cada encarnação cabe um sentido,
algo de humano a usufruirmos plenamente,
até se esgote dele o ensinamento;

e por isso tanto mal temos querido,
que nos conduza mais diretamente
à conquista final do esquecimento.

ABERLEMNO III

pedi a meu espírito voasse
e tentasse identificar o paradeiro
daquela que ocupou o derradeiro
lugar no reembolsável de meu peito.

pedi a meu espírito cantasse
em seu ouvido meu pranto verdadeiro;
soubesse da paixão que, por inteiro,
me dominou, em sonho sem defeito.

porém o espírito se encolheu de luto,
ao ver que já morrera o sentimento
que a tanto me induzira e entusiasmara;

sabe melhor que eu, em seu arguto
perceber de como é errôneo o julgamento
de quem a amor aspirar já se cansara.

ABERLEMNO IV

aberlemno, nome estranho explicarei;
por certo viste já a peculiar cruz,
cuja elegante aparência nos seduz;
é essa cruz que então descreverei:

os braços brotam de um círculo, sabei,
que dizem ser a unidade e que reluz;
por trás dos braços se encontraria Jesus,
do pai o remidor da antiga lei;

mas esse símbolo é muito mais antigo,
foi empregado por velhos navegantes,
como astrolábio a indicar sua posição;

o círculo era graduado, meu amigo
e os braços se moviam, nos instantes
em que os girava o piloto em precisão.

ABERLEMNO V

eu me dispus a cometer erro profundo,
induzido pelas vascas da paixão,
abandonando meu próprio coração
e a penetrar em tal peito sem fundo;

eu me induzi, em gesto moribundo,
a desistir do ardor da possessão;
queria apenas ter a sua aceitação,
talvez o gosto de seu beijo rubicundo;

assim a pus no centro de meu mundo,
por ser a única forma de ficar
junto do centro dessa cruz, a me iludir

que meu destino teria igual fado rotundo,
pois como centro de seu mundo há de ficar
e desse ponto sei jamais irá sair...

ABERLEMNO VI

e se esse mundo seu, entorpecente
anel de mil escolhas vacilantes
para mim só demonstrar as sufocantes
exigências de um orgulho onipresente,

de tal modo que me sinta muito rente
podado em meus desejos delirantes,
servindo só ao prazer de seus instantes,
mas predisposto a tal servir paciente;

pois não posso retirá-la desse mundo,
cuja saída nem sequer ela conhece
e se a soubesse, nem a quereria usar

e algumas vezes revolto-me, iracundo,
da servidão que não responde a prece,
só pela bênção de podê-la acompanhar...

ABERLEMNO VII

porém o tempo traz ressentimento,
novos anseios pela liberdade,
esse confuso dom da humanidade
que nos confunde tanto o julgamento

e nos induz ao enfraquecimento
do mágico esplendor da realidade
e contamina a maior sinceridade
na busca vã de um novo assentamento.

é muito fácil dar início à rebelião
contra qualquer externa tirania:
esses altares se derrubam sem tristeza,

mas as correntes que a própria mente cria,
forjadas por artérias e emoção
resistem muito mais a tal empresa.

ABERLEMNO VIII  

o problema está nas grades da prisão
que se forja em gaiola permanente;
mesmo que nada exista exteriormente,
o que é mais real do que a imaginação?

quando criamos a cada constrição
que nos prende a nós mesmos, firmemente,
não existe qualquer força suficiente
para quebrar tal muralha de emoção.

porque, afinal, nossa cela é confortável
e nela estamos bem acostumados:
em seu exíguo espaço há segurança,

sem precisarmos de enfrentar o transmutável
que nos aguarda nos externos fados
a que nos possa conduzir qualquer mudança.

ABERLEMNO IX

mas no meu caso já foi coisa diferente:
amava era o amor e a luz que vinha
dessa mulher, que constituí rainha
e que buscava de forma permanente.

e percebi o quão dificilmente
a poderia tornar somente minha,
pois centrada em si mesma se mantinha
nesse círculo em que reinava totalmente.

porém me decidi: cruzei o umbral
que dava acesso a seu palácio triste,
deixando a porta se fechar atrás de mim;

ergueu-se a levadiça no final,
mas é a vontade própria que hoje insiste
em conservar-me aprisionado assim.

ABERLEMNO X

ante o centro de seu mundo assim gravito;
minha órbita irrequieta se conforma
a seus desejos, dos quais nada transforma:
sou apenas mobiliário e mal me agito

nesse castelo em cruz no qual habito,
que necessita urgente de reforma,
mas não aceita qualquer alheia forma,
por mais que algo a refazer concito.

“é assim que sou e não posso mudar”,
é o que ela diz ante o menor protesto.
“se não te serve, podes ir embora...”

mas nesse seu altivo libertar,
ela me prende com mais firme gesto,
como uma nuvem insuflada pela aurora.

ABERLEMNO XI

meu coração é assim, quando se entrega,
me entrega totalmente e sem rompante,
seu aberlemno é todo o meu sextante,
duro astrolábio que meu destino lega.

pois para amor inteiro me carrega
de tal mulher altiva e petulante,
que quis mulher gentil e acarinhante,
sem encontrar sintonia ao que me apega.

pois penso em tudo, só não penso em mim,
já que pertenço a tal mulher inteiramente,
enquanto a amor escravo permaneço,

até que a jaça se revele assim
e o espelho baço me sorria indiferente,
depois que o próprio amor de mim esqueço.

ABERLEMNO XII

porque habitar uma prisão de amor,
todo grilhão soldando ao próprio pé,
do amor sincero meigo apanágio é;
não se deseja o sol de outro calor.

bem ao contrário, se umedece sob o ardor,
que amor sincero é a mais perfeita fé
e ali permanecer pretende até
que se rache do cristal todo o esplendor.

porém um dia, outras cartas do baralho
serão jogadas ao redor da mesa,
a cada um dada nova e incerta mão;

e enquanto amor a meu redor espalho,
escravo sou do amor com mais certeza
que acorrentado tão somente a um coração.




Nenhum comentário:

Postar um comentário