sábado, 21 de fevereiro de 2015




CORDAS DE AREIA – 2008
Duodecaneto de William Lagos

CORDAS DE AREIA I 

Ela chegou, vestida de cinzento...
Sob um capuz... da orla aparecia
somente a boca, que meiga me sorria,
numa expressão tão leve como o vento.

Aproximou-se, seu corpo fraudulento
juntou-se ao meu, fantasma da alegria.
Beijei-lhe os lábios com que me vencia:
os ossos derretidos num momento...

Apenas abracei-a, sobre a capa,
naquele beijo cinza e gris de sonho,
na boca que se abria e, pelos dentes,

a língua se insinuava a ver o mapa
de minha própria boca, em tal bisonho
sondar mais próprio para adolescentes.

CORDAS DE AREIA II

Logo senti que era algo mercenário,
não que fosse me cobrar pelo serviço
que iria me prestar com pleno viço:
seu preço era bem menos ordinário;

era de alcance bem mais multifário
o amor que vinha de seu olhar mortiço,
porém meu próprio desejo assim atiço,
carinho ansiando de destino vário,

que comigo nessa hora repartia
os mil tesouros sob a capa gris,
num protocolo de generosidade;

contudo amor, de fato, não sentia
e esse amor que então com ela fiz,
não foi ato de amor, mas de amizade...

CORDAS DE AREIA III

Eu me criei num mundo diferente,
no qual amor se assemelhava a cântico,
pura tolice de um ideal romântico,
que agrilhoava com sutil corrente;

eram de areia as cordas da pungente
fantasia de carinho coribântico,
talvez até um pouco necromântico,
que me prendiam a tal ideal dolente;

mas eu queria que meu júbilo nascente
pudesse crer até que fosse amor
e me prendesse à meiga visitante;

mas afinal reconheci, sinceramente,
que a abraçava no mais puro sexor
e que nem esse me seria constante...

CORDAS DE AREIA IV

Eu a chamei de mercenária inicialmente
e descrevi como sendo fraudulento
esse corpo que me dava num momento
de prazer transitório e ambivalente;

mas esse preço, talvez só complacente,
não se media em puro pagamento,
nem se ocultava em vago fingimento,
mas era algo mais sutil, subjacente;

e à sua maneira, seria até sincera,
fantasmagórica dama de cinzento,
a coletar de mim o sentimento,

após submeter-me a longa espera,
nutrindo plenamente a sua vaidade
ao me levar à plena saciedade...

CORDAS DE AREIA V

Mas eu queria mais o amor eterno,
que sei não existir, mas ainda busco;
persigo o fogo-fátuo ao lusco-fusco,
guardando vagalumes para o inverno...

E ela me entrega o seu carinho terno
e então a tenho e a própria mente ofusco,
no brilho multicor do orgasmo brusco,
mescla sutil de paraíso e inferno...

Não é o que ela quer.   Só me visita
quando se quer assegurar do sentimento
que ainda me prende na areia da esperança;

e os meses passam consoante quer a dita
e quando quase me escapou do pensamento,
era retorna, com seu sorriso de criança...

CORDAS DE AREIA VI

Quando me abraça, não tem nada de infantil,
mas se demonstra mulher integralmente;
desperta em mim o entusiasmo mais viril
e corresponde sem pejo e integralmente;

e então desaparece, em feminil
capricho, a se fazer de indiferente;
não me procura, não escreve, enquanto vil
eu lhe mando minhas mensagens diariamente...

Quando retorna, a noite se ilumina
e nos meus braços ela dorme de extenuada;
em cada assomo se torna sempiterna,

brando calor nessa emoção que externa
e então se vai e não me deixa nada,
arrebatando mil nacos de minha sina...

CORDAS DE AREIA VII

Não sei se ela me mente, quando diz
que é somente minha e contaria
se houvesse outrem, que não me esconderia!
Mas a palavra da mulher é como giz...

Se faz tábula-rasa em tons de gris.
Como saber se alguma coisa me diria
ou só num quadro-verde escreveria
essas palavras de amor que tanto quis...?

Pois de fato, em suas cordas me algemou,
mesmo que sejam tão somente fios de areia
e olho para as outras sem desejo;

a mercenária, ao entregar-se, me comprou:
somente ela tem o ardor que me incendeia:
como foi caro para mim seu beijo!...

CORDAS DE AREIA VIII

Às vezes penso que foi apenas sonho
que algum dia me tivesse visitado;
afinal, à poesia consagrado,
as fantasias nutro em ideal bisonho...

Mas reconheço, em meditar tristonho,
que essa quimera de meu sonho alado
é outra corda com que me tenho atado,
areia seca em esmeril medonho...

Porque tais cordas de areia, com certeza,
são atadas ao redor do coração
e os mil grãozinhos vão roçando sem parar!

E os tegumentos da antiga fortaleza,
são erodidos em tal lenta abrasão
que nem meu sangue consigo coagular!

CORDAS DE AREIA IX

Cordas de areia a provocar sangria,
igualmente ao redor de meus pulmões,
arranhando permanentes erosões
em cada alvéolo que me sustentaria;

destarte, o oxigênio que eu teria
para o nutrir da magia e das paixões
se evola por mil fendas e abrasões
e a vida inteira assim eu perderia,

muito embora tenha a goma da poesia
para tapar minha pleura amarfanhada;
são os mil versos que formam um baraço

aplicado em tal ferida que esvazia;
porém a areia permanece atarefada
e me obriga a escrever o que nem faço!

CORDAS DE AREIA X

Quando me acordo, nos olhos sinto a areia
que a lágrima deixou, durante o sono;
nas poucas horas em que a ele me abandono
mais cresce a areia que a alma me incendeia;

a dama gris por aqui não mais passeia;
não foi mais que esta canção que agora entono;
foi a quimera de meu ideal de outono,
quando eu curti os tentos da correia;

em pesadelos, cacei monstros de areia
e sua pele esfolei, queria abrigo
costurar com seus pelos eriçados;

mas se rasgaram, são corrente para a peia,
que enrolo nos meus pés como inimigo
de meus próprios desejos indomados!...

CORDAS DE AREIA XI

Ah, bem quisera que minha dama gris
não fosse apenas um simples fragmento
desse meu discutível julgamento,
marchetado por um sonho que não quis!

O que eu queria é que esse ideal de giz
não se apagasse com o mais leve movimento,
mas me pintasse a óleo o pensamento
e a tornasse tão real quanto eu a fiz!...

O que eu queria é que um dia me surgisse,
com o rosto semioculto por capuz
e que, sorrindo, à porta me batesse!

Mesmo nuvem de pó que assim eu visse
ao despi-la, procurando os seios nus
e apenas pólvora e areia ali encontrasse!

CORDAS DE AREIA XII

Mas pela força do amor e da paixão
a polvadeira se solidificasse
e um corpo feminino condensasse,
capaz de abraço em plena comunhão!

Que eu a levasse para meu leito, então
e que essa mulher de areia então amasse;
que entre meus braços não se desmanchasse,
igual que a vi desfazer-se em ilusão...

E que depois do amor, se perpetuasse;
que a contivesse no vigor da fantasia,
por arenosa que fosse essa cadeia

e que em minha carne, destarte, se entranhasse
e logo após na alma que lhe abria,
na solidez que só têm cordas de areia...
  
William Lagos
Tradutor e Poeta
Blog: www.wltradutorepoeta.blogspot.com


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