O MACACO TRAVESSO
(Recolhida de O Thesouro da Juventude a descrição de um episódio
supostamente histórico, adaptação e versão poética de
William Lagos, 15 fev 15)
O MACACO TRAVESSO I
Quando Ludovico Sforza era o Duque de
Milão,
apesar de praticar muitas maldades,
tinha igualmente as suas extravagâncias
e reunia em sua corte cada anão,
cada infeliz que nascera deformado,
pelotiqueiros de grandes habilidades,
cantores, músicos, bufões de manigância
e assim se divertia, ao se achar
mal-humorado.
Possuía estatuária e as mais belas
pinturas,
adereços de alabastro e vasos de cristal,
vastas panóplias e cabeças de animais,
armas de guerra e antigas armaduras.
Tinha, além disso, um lindíssimo jardim,
viveiro de pássaros de canto angelical,
flores formosas dos prodígios vegetais,
faisões e perus para ostentar assim...
Certo dia, ele um macaco adquiriu,
por uma vasta soma de florins,
que lhe trouxera da Índia um mercador,
divertimento grande produziu,
imitando os costumes, facilmente,
dos humanos ou de animais afins
e despertando admiração e até amor,
por verem bicho assaz inteligente...
Ganhou o macaco o nome de Gepetto,
que é uma forma de dizer “Zezinho”
e como todos a seu dono temiam,
era tratado do jeito mais dileto,
mesmo porque se fazia bem-querer
e em toda a corte o tratavam com carinho
e amor mesmo os cortesãos sentiam,
pois só brincava, sem qualquer mal lhes
fazer.
O MACACO TRAVESSO II
Pelas manhãs, o duque dormitava;
somente à tarde seus deveres atendia
e ao entardecer, após o seu jantar,
a noite inteira ao bel-prazer passava,
em todo tipo de divertimento,
pois tal sua autoridade permitia,
até altas horas; e só após se embriagar
é que ia dormir, desgastado o seu alento...
Logo o macaco seus caprichos entendia
e ao anoitecer é que se apresentava,
para as vontades do senhor satisfazer,
que lhe jogava, do prato em que comia,
alguns pedaços do melhor sabor;
e aos criados e cortesãos se acostumava
a mais pedir e quase sempre a receber:
não engordava, pois pulava com vigor...
Mas de manhã, bem cedo ele acordava
e acostumou-se a passear pela cidade,
especialmente em San Giovanni e no Cusano,
os bairros próximos que o castelo
dominava...
Não haveria sequer como detê-lo,
pois saltava, com a maior facilidade,
pelas janelas do palácio soberano
e só de longe se conseguia vê-lo...
Inicialmente, só agia por instinto,
comendo as frutas que encontrava no pomar,
mas logo após começou a galgar o muro
que cercava o palácio como um cinto
e acabou pulando para fora,
sem o menor perigo a enfrentar;
com o povo se sentia bem seguro,
sem sofrer qualquer dano nessa hora...
O MACACO TRAVESSO III
A andar pela cidade acostumou-se
e onde ia lhe davam guloseimas
e das momices riam às gargalhadas;
naturalmente, logo ele atreveu-se
a penetrar pelas portas e janelas,
onde todos o aceitavam, sem mais teimas;
não era ladrão, não tocava nas espadas,
nem mesmo em coisas que parecessem belas.
Só ia entrando a observar a gente
e a fazer uma que outra travessura;
subia nas mesas, porém sem quebrar nada,
deixando o povo alegre e bem contente,
sem muito tempo em parte alguma ficar,
toda a cidade na diversão mais pura,
acompanhado pela alegre garotada,
bem recebido onde quer que ia chegar...
Um dia entrou em uma certa residência
em que morava uma senhora já idosa,
que por doença achava-se acamada;
“Mona Bertuccia”, com toda a reverência
era tratada... “Mona” era “Senhora”,
abreviatura de “Madonna”; e prestimosa,
era aguardava suas visitas, deliciada,
dando-lhe doces e petiscos nessa hora...
De fato, Gepetto era ali tão bem tratado
que suas visitas diariamente prolongava,
sem desviar-se de seu novel trajeto,
até esquecendo da Praça do Mercado,
em que fora centro geral das atenções;
pela janela da doente ele pulava,
que o recebia com o maior afeto
e até o lembrava nas suas orações...
O MACACO TRAVESSO IV
Mona Bertuccia com os dois filhos morava,
homens casados, já com filhos e com netos,
que as travessuras de Gepetto observavam,
com gratidão pelo efeito que causava
na velha dama, por dores alquebrada
e também eles demonstravam seus afetos
pelo animal alegre que apreciavam
e se pudessem, até o teriam comprado...
Mas à venda, naturalmente, não estava,
por ser do Duque Sforza a sua mascote
e Gepetto era suficientemente esperto
para saber quando o dono se acordava
e então pulava de sua câmara a janela
e o deixava beliscar o seu congote,
mas evitando chegar muito mais perto,
pelo temor de cair numa esparrela!
O Duque tinha noção um tanto estranha
sobre a maneira de se divertir
e mais de uma vez o espancara
para vê-lo guinchar, por pura manha,
que achava divertido, em seu sadismo,
especialmente ao despertar de seu dormir;
como criança má, dele judiara,
porém Gepetto não era afeito a
masoquismo...
Porém sabia exatamente o que fazer
e a seu amo e senhor se apresentava;
durante a tarde, dormia no salão,
enquanto o Duque executava o seu dever;
mas se o chamava, de um pulo já se erguia
e logo uma pirueta executava;
no jantar, ele comia de sua mão,
pois nessa hora não o maltrataria!...
O MACACO TRAVESSO V
Mas de fato, a Mona Bertuccia preferia
e já passava as manhãs no amplo quarto,
só indo embora ao começar da tarde...
Assim a velha dama, feliz, se divertia
e ele sabia que seria bem tratado;
ao ir embora, estômago bem farto,
de acompanhante fizera já sua parte,
da anciã a vida tendo prolongado!...
Porém um dia, venceu-a a enfermidade
e Mona Bertuccia foi amortalhada;
vieram os padres trazer o sacramento;
a velha confessou, sem ter maldade
e lhe administram a extrema unção;
pelas irmandades foi acompanhada,
as freiras preenchendo esse momento
com salmodias e hinos de oração...
Foi depressa colocada em seu caixão
e levada para a missa numa igreja,
acompanhada por filhos e parentes,
os criados a seguir na procissão.
Gepetto, a um canto, tudo observava,
sem entender muito bem o que se enseja,
contemplando os eventos surpreendentes
e que sua amiga vazio o leito ali deixara!
Já sozinho, comeu de tudo à sua vontade,
andando às soltas pela casa inteira
e então tornou a seu pouso habitual,
muito intrigado com aquela humanidade;
e vendo as roupas da morta descartadas,
amortalhada sendo, da forma costumeira,
agiu então de maneira natural,
tocando as vestes ali abandonadas...
O MACACO TRAVESSO VI
Primeiro, ele as cheirou, devagarinho
e logo após, começou a experimentar:
vestiu a camisola e até a touca
e se deitou, como forma de carinho,
puxou as cobertas e ajeitou o travesseiro,
justamente com a vira se deitar,
passando a ressonar, com sua voz rouca,
igual que a anciã, em seu instante
derradeiro.
Em breve tempo, ele de fato adormeceu,
ficando ali, uma perfeita imagem
de sua pobre e velha amiga falecida...
Horas depois, o enterro aconteceu
e as criadas subiram, sem falar,
para arrumar o quarto, com coragem:
Ocorre a morte, mas prossegue a vida...
E então ouviram alguém a respirar!
Sendo ainda dia claro, logo viram
aquele vulto deitado sobre a cama,
usando a mesma touca e camisola
que no passado, tanta vez, vestiram
na falecida que estava já enterrada!...
A pobre velha, a quem a febre inflama,
em seu final, se enrugara feito mola,
com o chimpanzé bastante assemelhada...
No caso delas, o que você faria?
Ficaram as três imóveis de pavor,
sem conseguir mover-se do lugar
e então fizeram uma tremenda gritaria
e se empurraram, correndo pela escada:
Era a alma da defunta!
Ai, que horror!
Só pararam na cozinha, lá tremendo sem
parar,
cada qual a se sentir mais assustada!...
O MACACO TRAVESSO VII
Então chegaram os filhos e os parentes,
para fazer a funerária refeição,
tal como era o costume do lugar...
E as criadas juraram, ainda trementes,
terem visto a senhora retornada!
Duvidaram os demais da aparição,
mas aos filhos foram também acompanhar...
Durante a tarde, surgir alma penada!?...
Mas como a noite já se aproximava,
pela escada subiu o grupo inteiro,
todos sentindo desagradável sensação...
E sobre a cama, um vulto se enxergava
que, de repente, começou a se mexer!...
Fugiram todos do quarto, bem ligeiro...
E se neles pulasse a aparição?
Teria um demônio vindo ali se intrometer?
E sem mais dúvida, ao Pároco chamaram,
que com o sacristão viesse ao esconjuro!...
Pois de imediato, o crucifixo de marfim
e o ostensório juntos transportaram,
mais água benta pela própria mão
do Santo Papa, em relicário puro,
a estola antiga com o breviário, assim,
para iniciar o ritual nessa ocasião!...
Mandou o Pároco ao seu bom Sacristão
que subisse diante dele pela escada,
levando o crucifixo bem erguido,
entoando salmos, como em procissão
e loas à Virgem, que tudo purifica,
seguindo atrás toda a gente assustada,
para o ritual ser por sua fé fortalecido,
na exortação que aos cristãos dignifica!
O MACACO TRAVESSO VI
Afirmou o Pároco que não se preocupassem
com a alma pura daquela boa senhora,
cujo corpo já fora bem encomendado,
sem ter pecados que a contaminassem:
alguns minutos antes da morte confessara
e absolvida ela então fora nessa hora!...
Era só um truque por Satanás realizado,
o que não era, em absoluto, coisa rara!...
Mas ao chegarem até a porta do quarto,
ficaram todos para trás, com medo,
só entrando o padre após o sacristão,
que ao enxergarem do Diabo o horrível
parto,
já não confiavam mais na salmodia...
Então o Pároco pôs em uso seu segredo:
o hissopo que trouxera na sua mão,
com o qual a água benta se esparzia...
“Asperges me, Domine!” – os dois gritavam.
E a água benta deu na cara do macaco
o qual, com a frialdade, se acordou
e viu dois homens de preto, que se alçavam
perante ele, com rosto ameaçador
e o crucifixo, marfim colado naco a naco...
Que pretendiam bater nele acreditou
e começou a guinchar que era um horror!
Saltou depressa sobre o travesseiro,
vestindo ainda a touca e a camisola,
a caretear do modo mais horrível,
em seu medo a emitir um forte cheiro...
“É o Diabo!...” – gritou o Sacristão.
“É enxofre!...” – enrolado em sua estola,
recuou o Pároco ante o incompreensível,
pois jamais vira semelhante aparição!...
O MACACO TRAVESSO IX
Sem largar o crucifixo, o Sacristão
recuou também e ali os dois se embolaram...
relicário e hissopo voaram até o teto!...
Por sorte, desde o início da aspersão,
ficara o frasco de água benta bem vazio!
Mas os dois bem depressa levantaram,
correndo para fora, em desafeto,
os cabelos eriçados de arrepio!...
E é claro que bateram nessa gente
que os aguardava, bem no alto da escada,
todos rodando em terrível confusão,
cada guincho do macaco mais potente,
pois jamais encontrara gente assim!...
Gritava o padre, com voz esganiçada:
“Adjuvame, Domine! – com trepidação,
já no temor de enfrentar o próprio fim!...
Meio estonteados, já no patamar,
muito brancos, o padre e o Sacristão
disseram, com terror, aos circunstantes:
“De fato, nós acabamos de encontrar
algum demônio, que assumiu a aparência
de vossa mãe, de tanta devoção,
a insultar-nos com palavras delirantes!
Deveis trazer um exorcista de potência!...”
Porém Gepetto, ainda mais assustado,
tentou em vão pular pela janela,
atrapalhado com a touca e a camisola!...
E não vendo outra saída, apavorado,
vestindo ainda os trajos da senhora,
soltando gritos que toda alma gela,
atirou-se pela escada, feito mola,
por sobre a gente encolhida nessa hora!...
O MACACO TRAVESSO X
Mas se enroscou com toda a procissão
e na luta para dela se escapar,
a touca escorregou para o pescoço
e a camisola abriu-se num rasgão!...
Todos gemeram num rosário de oração,
e ele arranhou quem o tentava segurar,
até notarem como tinha o pelo grosso...
“É o Gepetto!” – foram mil exclamações!...
Saiu o animal, a correr, pela cozinha
e fui pular sobre o muro do quintal,
deixando um coro aliviado de risadas
de toda a gente que tanto medo tinha
e agora via não ter qualquer motivo...
“Senhor Pároco, portou-se muito mal!”
disseram as pessoas, revoltadas,
envergonhado o padre, o olhar esquivo...
“A culpa foi toda só do Sacristão:
foi ele que primeiro se assustou
e depois até me derrubou no chão!”
“É, mas o crucifixo trago aqui na mão,
foi o senhor que a água benta derramou!”
Mas o filho mais velho então falou:
“Não foi culpa de ninguém nesta ocasião:
Gepetto a todos nós nos assustou!...”
E o pobre chimpanzé? Corria pela rua,
ainda a usar da roupa os fragmentos,
causando riso onde quer que ele passava,
como um fantasma peludo à luz da lua,
até chegar ao castelo, em tremedal,
em que logo se encolheu nesses momentos...
De seu terror o bravo Duque se assombrava
e quis saber quem lhe fizera mal!...
EPÍLOGO
Mas depois do mistério esclarecido,
também Ludovico soltou boas gargalhadas,
sem que ninguém fosse punido no final...
Só foi o Pároco pelo Bispo repreendido,
que o transferiu para paróquia diferente...
Quanto a Gepetto, causou ainda boas risadas
alegre a desfrutar a sua vida de animal,
muito mais longa que na floresta
indiferente!
De fato, ao Duque ele sobreviveu,
mas foi morar com um rico mercador,
ali seguindo com suas diabruras,
nessa vidinha boa que lhe deu
o carinho dos moradores da cidade...
Porém na casa do seu maior pavor
nunca mais quis fazer suas travessuras:
Pois queriam bater-lhe por pura maldade!...
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