EXPLORADORES I – 3 FEV 15
Como eu queria a brancura cintilante
dessa mulher, a se abraçar comigo!
Mesmo que esteja a um passo do jazigo
e ela rebrilhe em juventude deslumbrante!
Como eu queria a sua boca acidulante
colada à minha, para meu perigo!
Olhos nefastos, ninfa do inimigo,
a seduzir-me para o orgasmo cintilante!
Sabendo embora que tanta perfeição
pertence apenas a uma estátua de resina,
bravo o modelo oriundo do Japão;
Pele perfeita assim não vi em menina
e apenas olho a inexorável sedução,
capaz de transformar toda a minha sina!
EXPLORADORES II
Sem dúvida, idealizou-a o escultor...
Ou terá mesmo gozado a imensa dita
de contemplar essa visão bendita,
que à habilidade comunicou tanto vigor?
Mas eu, que só de letras sou pintor,
somente penso nessa visão que agita
e que a tanto entusiasmo me concita,
por ver a luz que ilumina tal primor!...
Nunca por certo terei dela um bem,
mas certamente jamais me fará mal,
pois nem sequer um suspiro me dará...
Mas sua beleza me extasia mais além
que mulher viva, em sua forma natural,
que me sorriu, mas nunca beijará!...
EXPLORADORES III
Nós, os artistas, somos exploradores,
mesmo presos nos confins de nosso quarto;
ao mundo nossos olhos darão parto,
a cada vez que percorrermos esplendores,
sejam de fotografias ou de pendores,
quais concebidos por Andrea del Sarto;
meu cérebro do real já tenho farto,
mesmo das joias imaginadas por pintores.
E assim o mundo exploro quando o crio:
a estátua nua, eu a contemplo viva
e encontro olhar nas órbitas cerradas
e no fundo dos meus, vejo com brio
esses braços que me estende, rediviva,
suas formosuras só para mim votadas!...
EXPLORADORES IV
Ali vejo a pele pura de marfim,
com certo róseo de pórfiro entranhado;
é de alabastro o corpo desenhado:
do chão se ergue em folhas de jasmim...
Procuro em vão o óleo em tal cetim,
é fosco o brilho sobre ela derramado;
de ébano os cabelos e o anelado
brinco de Vênus que me chama assim...
Qual alvaiade entrou nessa resina?
Ou foi a luz da lua a se espalhar
sobre a epiderme que tanto me fascina?
Será que vejo suas pupilas a explorar
meu próprio corpo, em ternura fescenina
ou só minhas vistas que furtaram esse olhar?
SOUVENIR DOS BILROS I –
8 DEZ 02
Não esperes de mim que
fale apenas
do que houve entre
nós... Antes diria
que é melhor esquecer a
nossa orgia
e mencionar tão somente
as açucenas...
que nos rodearam no
campo dos amores,
o sol nas costas de um
e, contra a relva,
as costas da outra,
nesse amor de selva,
de mescla pura de suores
e de odores...
que nos tornaram um, em
sentimento,
mais do que um em carne
devorante,
mais do que um, em mente
e diapasão...
Falar eu não irei de tal
momento,
mas do que houve, antes
desse instante,
em que fundiste ao meu
teu coração...
SOUVENIR DOS BILROS II –
25 JAN 15
Falar devia é do lento
entendimento
que para o amor se fez
preparação,
aquelas noites de meiga
sedução,
ao longo das calçadas,
longo alento
para tomar coragem,
julgamento
se o beijo alcançaria
aceitação,
se poderia haver
continuação,
se algo mais sério
poderia ter assento...
Só depois breve passeio
pelo campo,
quando disseste os nomes
das florzinhas
que desde a meninice
conhecias...
A pouco e pouco se firmando
o grampo
que me prendia, enquanto
me continhas,
sem nunca confessar que
me querias...
SOUVENIR DOS BILROS III
Ah, como entendo, após
caso passado,
de que maneira suave me
envolveste!
Os bilros, fio por fio,
entreteceste
e nos teus olhos azuis
fiquei pasmado...
Seria o céu refletido em
tal pecado
ou a cor dos olhos aos
ares concedeste?
Alguns traços de rosa
devolveste
ao pôr do sol já de seus
dedos alienado...
Ou foi crepúsculo
forjado de tuas vistas,
as pestanas como nuvens
de conquistas,
as sobrancelhas a noite
em seu lamento?
E o beijo... O beijo
longo de segredo,
por sob as aroeiras,
longo medo
de não lhes dar o devido
cumprimento...
SOUVENIR DOS BILROS IV
Porque existe entre nós
a tradição
ou pelo menos, assim
corre a ingenuidade
que à aroeira deves, com
gentilidade,
cumprimentar em reversa
situação...
Dar “bom dia!” pela
tarde e, na ocasião
da manhã, dar-lhe “boa
tarde!” em humildade;
caso contrário, te
enzamboa de verdade,
com o pólen de seus
ramos em botão!...
E que dizer? Cumprimentamos certo,
que ao contrário de
sentirmos alergia,
um no outro derramamos
alegria,
sobre a aspereza do
capim deserto,
teu corpo inteiro
finalmente aberto,
enquanto o coração,
enfim, se abria!
BASÍLICA I – 08 DEZ 2002
Sempre um prazer me
dás... Ao menos esse
de fazer algo por ti,
sentir-me útil,
percebendo amor não ser
tão inconsútil
tessitura de sonho, que
a gente mal conhece.
Fazer algo por ti me soa
como prece,
dá-me sentido à vida, de
resto tão inútil.
Por mais que teu amor me
seja um sonho fútil,
ainda permaneço e quero
recomece
a mesma polvadeira de
estrelas e de aurora,
que me banhou um dia, em
farpas de ilusão,
meu coração pavio
ardendo lentamente.
Por mais que tua
ausência persista em tal demora,
era tão bom o sonho,
bordado de emoção,
que pouco importa o
sangue que escorra finalmente.
BASÍLICA II – 26 JAN 15
Quando uma igreja
consagrava uma princesa
(mais comumente um
príncipe), costumavam
dar-lhe o nome de
basílica e afirmavam
ser duplamente protegida
por nobreza;
certamente pela divina
realeza,
mas pelas tropas que os
príncipes lhe davam;
na maioria, os reis
godos consagravam,
com devoção, tais
edifícios com presteza.
Também tive uma princesa
e consagrei-me,
igual basílica, para o
serviço dela,
mas era ela que estava
sobre o altar;
de meu egoísmo e vaidade
despojei-me
e sujeitei-me, na
alegria e na procela,
às bênçãos que por bem
houve outorgar...
BASÍLICA III
Foi religião para mim
incontestável,
pois tanto nesse altar
sacrifiquei!
A minha antiga vocação
deixei
ao devotar-me à princesa
venerável...
Não que encontrasse nela
algo notável
de divino; que era
humana somente observei,
desde o primeiro
instante em que a beijei,
por um acaso de amor
imponderável...
Pois foi ela que
primeiro me atraiu
e até afirmou que ser
podia submissa;
mas não passava de outro
fio da teia;
em minha inocência foi
que me seduziu;
não lhe enxergava a
expressão mortiça,
mas o sorriso com que
então me lisonjeia...
BASÍLICA IV
E que fazer, então? Redondos seios
utilizei como colunas
dessa igreja;
o corpo liso em vastidão
se enseja,
arcobotantes os ossos em
volteios...
Com os cabelos as ogivas
dos permeios;
feitos de unhas os
castiçais cereja...
Mas foi a luz dos olhos
que me aleija,
queimando sobre mim em
duplos veios...
E nela achei as estações
da cruz,
que percorri, também eu
martirizado,
cheia de si nessa
entronização
das salmodias que em
versos lhe compus,
em batina e sobrepeliz
escravizado,
sem alcançar até hoje a
redenção!...
MAJÓLICA I – 08 DEZ 02
Cada vez que te vejo,
mulher, é tal como se o mundo
se fechasse completo e
me deixasse fora.
Pois mostras-me um
instante e, então, te vais embora
e eu fico a me esbater
nesse jamais profundo...
Pois sabes que és minha
vida e apenas tua visão
me consola do tédio, da
mágoa e do estridor
de tantas insistências,
da pena e do amargor
que me estilhaça a alma
e esfrega o coração.
Queria até dizer-te: não
chegues mais. Por certo,
eu me encanto de ti e em
ti me maravilho,
teu rosto e teu perfume
são quanto mais desejo.
Mas quando já te foste,
se não te sinto perto,
de todo o meu controle
assim me descarrilho
E o sangue coagula, na
ausência do teu beijo.
MAJÓLICA II – 27 JAN 15
Ainda adolescente,
mulher, te conheci
e o mundo conhecias com
bem mais experiência;
mais velha do que eu,
mostraste-me a sapiência
no meu deslumbramento
que descobri em ti;
em parte, me criaste, do
jeito que te vi;
do que me sucedia,
faltava-me a consciência,
mas me foste moldando,
com plena consistência
e no teu turbilhão eu
quase me perdi...
Naturalmente, eu sei que
nunca foi paixão
de parte a parte, mas
apenas um desejo
que se manifestou e se
cumpriu assim
nesses encontros finais
de orgásmica emoção,
quando a língua insistiu
além do casto beijo,
em abraço triunfal, qual
toque de clarim!...
MAJÓLICA III
Que coisa estranha! Hoje que estou sozinho,
e tenho a casa inteira à
minha disposição,
o que faço é visitar
velhos versos onde estão,
empoeirados nas fendas
mofadas do escaninho!
Cada soneto antigo a
lembrar outro carinho
de lábios diferentes, de
corpos em botão,
de outros que até mesmo
no cemitério estão:
amores líquidos em meu
seco pergaminho!
Não posso me queixar,
foi longa e dadivosa
a série desses beijos, a
luta dos prazeres,
mil fósforos acesos em
feminis fogueiras!
Constante o repetir da
dádiva amorosa,
dos nomes que não digo,
por honra e por deveres,
que talvez nunca
suspeitem as gentes faladeiras...
MAJÓLICA IV
Jamais eu revelei,
mulher, quanto te amei,
por mais que o coração
não se envolvesse em nada;
foi coisa mais de corpo,
te achei amargurada,
porém não fui hipócrita
e de ti me apaixonei.
Mas sem poder dizer,
mulher: eu me calei,
era mais o calor da
tarde avermelhada,
aquela busca louca,
tantas vezes consumada,
cem luzes dentro em ti,
ardente, eu apaguei!
Porém quando te vejo,
fantasma do passado,
que para algures foste e
segui o meu caminho,
de tudo ainda recordo,
na ânsia de esquecer;
talvez seja este último
o verso atribulado,
em que te manifesto um
resto de carinho,
pois lembro o que senti
e só quero te perder!
NECRÓPOLE I – 08 DEZ 2002
Ela é minha vida, é
certo: quantos dias
permaneci solerte, nada
querendo, inerme,
fugindo até de mim,
este inefável verme
despido de paixões, nas
vastidões vazias
das tarefas inúteis, que
tanto me perseguem...
Satisfeito em comer,
dormir, escutar música,
qual animal, enfim,
longe da esfúsica
verberação, que as
ilusões me entreguem...
E então ela me chega,
sua voz me enche a alma...
Eu volto à vida, sofro,
ofego, sou humano
e os minutos se escoam
de novo na ampulheta...
E lá se vai o tédio que
me velava a calma
e me endorfina o peito,
reajo ao novo dano,
que de entusiasmo o
corpo e a mente me completa.
NECRÓPOLE II – 28 JAN 15
Por mais que ela me
afaste, fingindo indiferença,
eu sei que ainda me
quer, ao menos de relance;
deseja apenas ter-me dos
dedos ao alcance:
no fundo de meu peito
palpita a mesma crença;
diversas são as linhas,
implícita a valença;
já muitas vezes disse,
em inesperado lance,
que a sua rocha eu era,
sem que nunca me canse
de seus retornos breves,
de sua ausência densa...
Mas hoje não há tédio, a
mim mesmo completo
e me perco nos dedos que
correm sem parar,
a tinta azul escoa, a
caneta a falquejar,
tal qual se lhe cortasse
os ramos em secreto,
pois quantas já
morreram, à força do cantar,
nas cigarras de verso, a
morte de um inseto!
NECRÓPOLE III
E como fui ingrato! Nenhuma das canetas
que gastei no passado,
que se deram de amor,
guardei numa gaveta,
perdido o seu vigor!
(Algumas tampas, talvez,
a serviço de outras tretas.)
E como fui ingrato! Tantas paixões secretas,
consumadas há anos,
então de grande ardor,
tampouco conservei,
temendo até expor
a olhares de terceiras,
mulheres tão diletas!
Mas deveria conservar as
lembranças isoladas,
os gostos, os perfumes,
as explosões finais,
quais quadros sobre
tela, em longa galeria...
Mas a memória
engana! Estão todas misturadas
e não consigo separar os
orgasmos mais totais
que em lembrança me
envolvem de pura nostalgia!
NECRÓPOLE IV
Morreram, afinal, os mil
beijos do passado
e os sabores se
misturam, em ínclito amargor,
por mais que em seu
instante, fossem doces de calor
a aspereza da língua e o
lábio acetinado!...
Morreram as salivas de
cada beijo amado,
os dedos faleceram dos
caminhos desse amor,
os hálitos perdidos,
vasta nuvem incolor...
como posso recordar, se
por tantas fui tocado!
Recordo bem mais firme,
talvez, preliminares
e muito em especial se
foi doutra a iniciativa;
o coração a palpitar na
surpresa do momento!
Tal qual vinho bebido de
centenas de lagares...
Contudo, ainda espero
que retorne, rediviva,
tal mágoa ou alegria de
um novo sentimento...
nébula I – 29 jan 15
mulheres, em geral, são desordeiras,
envoltas em confusos sentimentos;
perseguem uns aos outros pensamentos
e nem há tempo para verdadeiros
raciocínios se formarem por inteiros;
as conclusões já brotam em momentos,
são intuídas, sem raciocínios lentos
e já o consciente atende a novos mensageiros
das espirais internas, rodopiantes...
por isso ao homem é difícil abraçar
o que elas pensam, sequer a acompanhar
as suas velozes falas cintilantes,
pois há mil portas nesse labirinto
em que mil monstros a espreitar pressinto...
nébula II
não que despreze a lógica que têm:
para os problemas rapidez de solução,
para um incêndio de veloz propagação,
para atadura que o sangue assim contém;
é outro raciocínio que aqui vem,
desenvolvido pela evolução,
para dar a seus nenês a proteção,
qualquer febre a diminuir para seu bem;
mas elas mesmas explicar não sabem
como chegaram a essa conclusão,
enquanto o homem ficava atarantado,
perseguindo os raciocínios que lhe cabem,
sem ter tempo para igual resolução,
nesse processo sem dedução achado.
nébula III
porém na vida diária, o sentimento
à intuição supera sem cuidado;
torna o ciúme o coração gelado,
origem dando a malicioso pensamento;
mais do que tudo, se confunde o julgamento
quando se trata de qualquer ser amado;
ver-lhe os defeitos se torna qual pecado
e a si mesmas se convencem, num momento,
de que avaliaram exatamente a situação,
tal qual o fazem ao avaliar estranhos,
sua intuição dissolvida em nebulosa,
submetidas assim a qualquer manipulação
desse ser por quem carinhos são tamanhos
que só em perdoá-lo sua vida é mais ditosa!
nébula IV
não cabe a mim entender o que se passa,
nem mesmo sendo o alvo do perigo;
empatizar apenas eu consigo:
vou-me afastando, à espera de outra graça;
nem sempre é fácil relevar o que perpassa
na tortuosa mente desse abrigo,
difícil é separar o joio e o trigo,
quando diz o que não quer e descompassa,
porque pensa uma coisa e o raciocínio
não acompanha a marcha da linguagem,
que honestamente recordar nem pode
e então deseja, nesse avesso lenocínio,
que se entendesse o contrário nessa aragem,
que só do amor a compreensão acode!
MAL GENEROSO I – 30 JAN 15
Sempre foi um estupro que me fez,
tornando o meu caminho sem ajuda,
o meu caráter submetendo a muda:
tomou-me a carnação, roubou-me a tez,
invadiu-me o coração de uma só vez,
assenhoreou-se da defesa que me escuda
e nada deu-me em troca que me aluda:
tomou conta de mim, sem mais talvez!
E depois que me tirou quanto queria,
fingindo não quer, mas só induzindo,
partiu tranquila, sem olhar atrás
e eu tive de curar minha nostalgia,
como se o sexo estivera-me ferindo,
apenas por mostrar que era capaz!
MAL GENEROSO II
Não prometeu, mas sugeriu-me tanto!
E depois se transmutou, gota de luz
transtornada numa sombra, fera cruz,
construída sobre os cravos de meu pranto.
Durante meses derramou-se o canto
e eu aguardando, na espera que seduz,
em mel a transformar todo esse pus
que me escorria da mente, em triste manto!
Deu no que deu. Só sugeriu ser carinhosa,
em intervalos longos de silêncio
e eu escutando, poupando meu alento,
nesse aguardo de enxergar de novo a rosa,
de uma distância e num vácuo tão intenso
que nem eu mesmo escutei o meu lamento!
MAL GENEROSO III
Embora exista a Delegacia da Mulher,
à qual um homem comparece raramente,
pela vergonha de ter sido, realmente,
agredido por aquela a quem mais quer,
não há repartição a ouvir sequer
o
lamento do estuprado mentalmente;
não há um corpo de delito independente
para avaliar tais injúrias em seu ser.
E que fazer, senão sorrir, apenas,
encontrando o clangor dessa ironia
e da injuriante tão só beijar a mão?
Mais carinho a dar em troca dessas penas,
em um gesto de pura galhardia,
que menospreza a toda a humilhação?
SONHO DE FEZES I – 31 JAN 15
Na mortalha da manhã, sopra-me o vento,
a recordar o bem que me fugiu...
Durante a noite, a ironia me sorriu,
consegui rir, com todo o meu alento!...
Mas tive sonhos de inquietador portento,
cujo teor geral já me sumiu...
Quiçá foi lâmia que comigo hoje dormiu
e me furtou a semente em tal momento!
Sonhos de súcubo a gente mal recorda:
seu beijo impuro nos faz tudo esquecer
e rouba a vida para a algum íncubo doar!
Somente uma vaga sensação, quando se acorda:
que algo de imundo acabou de transcorrer
e nosso esforço é por não querer lembrar!
SONHO DE FEZES II
Resta somente esse enlanguescimento
e uma dor difusa nos quadris,
em resultado de movimentos vis,
executados em isenção de julgamento!
É de pensar, nesse enfraquecimento,
na proteção de meiga flor-de-lis:
roubo da alma permitir não quis,
só se perdeu a energia de um momento!
É de esperar, em tal constipação,
se fosse o estro!?... Se a musa, temerosa,
nesse contato, fugisse da entidade!...
Não obstante, aqui está a inspiração,
sem ópio, sem narcótico, bondosa,
a descrever como real a irrealidade!...
SONHO DE FEZES III
Pois mesmo que me tenha exsanguinado
a criatura maliciosa desta noite,
mesmo que os rins sugasse em seu açoite,
o meu espírito soergue-se, intocado!
Por mais que sinta que fui contaminado,
na solidão da casa, sem acoite
de mais ninguém, passado este pernoite,
tão só meu corpo é que sinto conspurcado!
Pouco me importa o sangue ali vertido
ou que me tenha furtado minha semente,
algumas coisas amo mais que o coração!
Mesmo que tenha assim me desnutrido,
prossegue em mim o tesouro mais potente,
pois que faria, caso perdesse a inspiração?
CALENDÁRIOS I – 1º FEV 15
Embora um mês já tenha transcorrido
desde que o ano iniciou a sua cascata,
ainda há algo em mim que não desata
seu longo afeto ao ano falecido...
A cada data em que escrevo, compelido
sou do Quatorze conservar a nata;
ao ano morto minha vida se relata,
o ano novo me parece mal vivido...
Tal e qual se não fora ainda concreto,
apesar de registrá-lo diariamente,
em cada série de surpresa ou mágoa;
e nesse calendário há algo secreto,
que ainda me encara zombeteiramente,
qual um buraco perfurado nágua!...
CALENDÁRIOS II
Cada dia é nova gota que me atinge,
no escorreito deslizar da aurora,
na mortidão da derradeira hora
desse crepúsculo que, trêmulo, me tinge!
Cada dia é uma ilusão que apenas finge
um começo inexistente e vai embora,
pois certamente pertence já ao outrora
cada porvir que sobre mim se impinge!
Não é de admirar que desfaleça
entre meus dedos a novel certeza,
pequeno arauto e minúsculo clarim,
que da alvorada a requinta então esqueça,
ainda perdido nas trevas da altiveza,
cujo veludo na manhã o envolve assim...
CALENDÁRIOS III
Sendo uma gota de água cada dia,
ao me envolver, em gesto arrependido,
ao meio se divide, de sofrido
desgastar líquido da luz que me trazia...
E cada pingo que na testa me luzia,
talvez do dia ou do suor vertido,
durante os sonhos por que fui perseguido,
era outro rosto na plateia que sorria...
E enquanto me revolvo nesse banho
que tão depressa sobre mim perpassa,
como posso acreditar na permanência
de qualquer calendário, qualquer lanho
que meu sangue me sugue nessa caça
que mal consigo entender com coerência?...
Nuvem Recurva 1 – 2 fev 15
Quando voltares, já maduras as romãs
Estarão à tua espera, nos seus galhos...
As minhas saudades, tristes atos falhos,
Não serão mais que uvas temporãs,
Que poderás partir, em rataplãs;
Teus dentes de marfim serão os malhos,
O estalar da língua leves ralhos,
Ao ver que não branquearam mais minhas cãs...
Talvez quisesses, em arremedo de ternura,
Cobrar de mim as contas da traição,
Quais as mulheres que deitei sobre teu
leito...
Mas que fazer, se nesta minha loucura,
Sinto apenas um arremedo de emoção,
Que nem sequer chegou a ser despeito?
Nuvem Recurva 2
Quando voltares, maçãs te comprarei
E as deixarei repousando na fruteira,
Observando se haverá gula ligeira,
Um longo olhar sobre elas pousarei...
Quando voltares, as emoções que te deixei,
Durante a ausência, a pender da cabeceira,
De longe eu cuidarei, da minha esteira,
Sem saber se aceitarás o que eu te dei...
Por certo que manipulo a solidão,
Envolta nas mortalhas da harmonia,
Quando me perco nos acordes imortais...
E assim me basto, na fineza da ilusão
Dessas mil páginas que em tua ausência lia,
Enquanto a alma dormitava no jamais...
Nuvem Recurva 3
Quando Juno no Olimpo enganou Zeus,
Deixou uma nuvem em formato de mulher
E deu-a ao esposo que traí-la quer:
Como era fácil iludir então a um deus!
Porém eu tomo os retalhos que são teus
E os moldo em feitio de malmequer;
Recurva é a nuvem que a solidão requer,
Feita de sonhos que são apenas meus!
Assim, no teu retorno, já nem sei
Se poderei reconhecer as tuas feições,
Que idealizei nessa nuvem passageira
E com olhos seculares te olharei,
A mastigar minhas antigas orações,
Com que te conquistei por vez primeira...
Nuvem Recurva 4
Ou foste tu que a mim me conquistaste
E hoje nem sei o que notaste assim;
Vejo teus olhos a repousar em mim
E não percebo mais o olhar que me lançaste...
Quando foi que realmente te afastaste,
Com teu sabor de manjerona e de alecrim,
Estando juntos no meio do festim,
Quando balas de festim me disparaste?
Na tua ausência, até me sinto menos só
Que nesses dias em que sentia o teu perfume,
Mais para os outros, em vaga sedução,
Algumas vezes com certo olhar de dó,
Numa carícia de agridoce lume,
Que mais fazia me doer o coração!...
EXPLORADORES I – 3 FEV 15
Como eu queria a brancura cintilante
dessa mulher, a se abraçar comigo!
Mesmo que esteja a um passo do jazigo
e ela rebrilhe em juventude deslumbrante!
Como eu queria a sua boca acidulante
colada à minha, para meu perigo!
Olhos nefastos, ninfa do inimigo,
a seduzir-me para o orgasmo cintilante!
Sabendo embora que tanta perfeição
pertence apenas a uma estátua de resina,
bravo o modelo oriundo do Japão;
Pele perfeita assim não vi em menina
e apenas olho a inexorável sedução,
capaz de transformar toda a minha sina!
EXPLORADORES II
Sem dúvida, idealizou-a o escultor...
Ou terá mesmo gozado a imensa dita
de contemplar essa visão bendita,
que à habilidade comunicou tanto vigor?
Mas eu, que só de letras sou pintor,
somente penso nessa visão que agita
e que a tanto entusiasmo me concita,
por ver a luz que ilumina tal primor!...
Nunca por certo terei dela um bem,
mas certamente jamais me fará mal,
pois nem sequer um suspiro me dará...
Mas sua beleza me extasia mais além
que mulher viva, em sua forma natural,
que me sorriu, mas nunca beijará!...
EXPLORADORES III
Nós, os artistas, somos exploradores,
mesmo presos nos confins de nosso quarto;
ao mundo nossos olhos darão parto,
a cada vez que percorrermos esplendores,
sejam de fotografias ou de pendores,
quais concebidos por Andrea del Sarto;
meu cérebro do real já tenho farto,
mesmo das joias imaginadas por pintores.
E assim o mundo exploro quando o crio:
a estátua nua, eu a contemplo viva
e encontro olhar nas órbitas cerradas
e no fundo dos meus, vejo com brio
esses braços que me estende, rediviva,
suas formosuras só para mim votadas!...
EXPLORADORES IV
Ali vejo a pele pura de marfim,
com certo róseo de pórfiro entranhado;
é de alabastro o corpo desenhado:
do chão se ergue em folhas de jasmim...
Procuro em vão o óleo em tal cetim,
é fosco o brilho sobre ela derramado;
de ébano os cabelos e o anelado
brinco de Vênus que me chama assim...
Qual alvaiade entrou nessa resina?
Ou foi a luz da lua a se espalhar
sobre a epiderme que tanto me fascina?
Será que vejo suas pupilas a explorar
meu próprio corpo, em ternura fescenina
ou só minhas vistas que furtaram esse olhar?
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