domingo, 24 de maio de 2015





CAPAS DE ABALONE
William Lagos, 9 set 2010

CAPAS DE ABALONE I

Tenho uma lua guardada só pra mim,
que eu coloco na testa, se me apraz:
roubei a Lua do céu, quando rapaz,
nem lembro mais como é que fiz assim.

Guardo essa lua no meu quarto, enfim,
e quando falta luz, ela desfaz
a escuridão em que minhalma jaz
e assim posso trabalhar no meu jardim.

Ou onde mais eu queira.  Ela recobre
os fios de meus cabelos, um a um,
com essa seda que até parece prata.

E quando o sino de finados dobre,
meu ataúde não será comum,
pois essa luz minha vida ainda dilata.

CAPAS DE ABALONE II

A lua eu guardo dentro de meu quarto,
bem enrolada, no fundo da gaveta:
ela me serve de inspiração secreta,
de seu fulgor argentino não me farto.

Essa lua é que me assiste em todo o parto,
quando a musa que inspirou a mais dileta
canção -- já se afastou, deixando aberta a greta
e se erguendo em seu voo como esparto.  (*)

Pois sai da cópula incólume essa musa,
enquanto deixa em mim a sua semente,
na breve gestação de um sonho ardente.

À luz brota o poema, sem recusa,
mas me encontro sozinho, em pleno escuro,
enquanto nasce o verso, em brilho puro.
(*) Planta medicinal, usada antigamente no parto e de cujas fibras
fabricavam cestinhas para bebês.

CAPAS DE ABALONE III

Quando saio a enfrentar os meus perigos,
eu prendo a lua à testa, sem receio;
seja o que for que me venha de permeio,
não combato no negror meus inimigos.

A luz da lua afasta os meus castigos,
meu corpo explora o cintilante veio,
sobre os espaços vazios encontro esteio
e alcanço amor através de mil postigos.

Sou espectro da lua e rouxinol,
que só de noite sai a cantar verso,
porém a lua me ilumina o coração,

que ela me acende e eu mesmo sou farol,
projetado além de mim e assim disperso
por onde quer que alcance tão clarão!

CAPAS DE ABALONE IV

A lua é diadema e não tem pena
de conservar-se presa a uma tiara;
a lua é verde e azul, a lua é amara,
nas mil nuances que a centelha encena.

E sendo gema, a lua me condena
a sempre perlustrar estrada clara;
o preço é alto e a recompensa é cara,
o prêmio é rico e a maldição amena.

A lua é alfanje e corta-me a garganta,
num talho a degolar o malefício:
um raio de luar é minha comenda,

que a lua é rósea e a negridão espanta,
acidulada em doce sacrifício,
em lanho puro que a mente não ofenda.

CAPAS DE ABALONE V

Enrolo a lua nos dedos, como anel:
são dois quartos crescentes enlaçados,
em cor de lua nova encastoados,
enquanto os dedos acutela em ouropel.

Só em tal engaste se agita um menestrel,
quartos minguantes de amantes abraçados,
cem plenilúnios em feltros engastados,
feito de poeira zodiacal o meu burel.

Porém meus anos possuem treze meses,
vivendo em mim esse ancestral ano lunar,
no qual um mês existe só pra mim;

roubei da lua, que devoro às vezes
e de prata eu rebrilho em dia solar,
quando essa ama, a lua, se torna serva enfim.

CAPAS DE ABALONE VI

Essa lua que eu no antanho capturei
não é a Lua de hoje, certamente,
essa que aos outros se mostra tão frequente,
rosto marcado pelas rugas que lhe dei.

Essa Lua tem mil furos em sua grei,
fez-se Lua maltratada de indigente,
a triste Lua que se expõe a toda a gente,
jamais a lua que para mim guardei.

Essa tem a feição pura e o dorso liso,
nunca sofreu com vulcões ou meteoro,
embora guarde cometas em cavernas

e é com estes que ilumina o chão que piso,
são as luzes em meu rosto quando coro,
ao desfrutar das afeições externas...

CAPAS DE ABALONE VII

Essa lua se encontra pendurada
de um longo colar que trago ao peito;
sobre o esterno me protege do despeito,
sobre as costelas toda inveja é desviada.

Do coração toda malícia é afastada,
em que procuro, sem achar, qualquer defeito;
que lá no fundo sou puro então suspeito,
mas me esforço por fingir suspeitar nada.

O ódio e a mágoa torno em contas e botão
e ambos perfuro com gotas de veneno,
faço um rosário com as linhas do rancor

reflito assim qualquer e toda a maldição;
na própria sombra que resta me condeno
a esquecer que em meu passado tive amor.

CAPAS DE ABALONE VIII

Mas como tenho uma lua que é só minha,
quase não durmo à noite e larga é a hora
em que me posso recordar de meu outrora
e pôr em versos as mil coisas que ontem tinha.

O que não tenho mais é a ladainha
dessas coisas que a vida leva embora
ou daquelas que não tive, por demora,
mas que inda espero ter sob minha vinha.

E guardo sempre a lua dessa tarde
em que ascendi até o topo da colina
e a luz prendi em uma rede de filó...

Ainda era claro e sob o sol que arde,
nem perceberam a falta da menina
que apenas brilha para mim quando estou só.

CAPAS DE ABALONE IX

Somente o Sol lhe percebeu a falta,
certo crepúsculo, quando já cansado
entrava a descansar e, do outro lado,
do firmamento só contemplava a malta

de mil pontos de luz, que a vista assalta
e percebeu então, horrorizado,
que sua substituta havia falhado,
sem Lua Cheia a mostrar-se na ribalta;

deu um suspiro e de nuvens revestiu
o lado oposto ao ocidente manso,
para que nada percebessem os humanos;

e nessa noite o Sol sequer dormiu,
forjando uma outra lua em seu descanso,
que suspendeu no céu desde esses anos...

CAPAS DE ABALONE X

O que o povo notou, já no outro dia,
é que o Sol se revestiu de manto;
até os pássaros hesitaram em seu canto,
ao ver que a luz celeste não surgia...

Pelos buracos das nuvens não se via:
os olhares curiosos nesse espanto,
os olhares langorosos de seu pranto,
não mais que estrelas a lhes servir de guia.

Mas como não havia tempestade
e até o Sol precise assinar ponto,
ele afastou seu manto, finalmente.

Não houve aurora em tal dia, é bem verdade;
só ao meio-dia levantou-se, pronto
para queimar os homens, inclemente.

CAPAS DE ABALONE XI

Um astrônomo que outro comentou
que a Lua não se achava mais no céu:
em qualquer ponto se perdera ao léu,
pois desde a Terra sua órbita deixou.

Mas nessa tarde, quando a hora chegou,
estava uma outra lua, envolta em véu,
como uma foice, cortante igual arpéu,
e nos astrônomos ninguém acreditou.

Talvez o Sol seja hoje mais magrinho,
desde esse dia em que nova lua criou,
talvez o clima esteja menos quente;

quem sabe até esteja mais mansinho,
que a velha Lua não mais procurou
e nem faz falta para tanta gente!...

CAPAS DE ABALONE XII

Guardo assim para mim a lua antiga,
como uma concha multicor, no meu carinho,
oca por dentro, um arco-íris pequeninho,
triste destino de uma lua rapariga...

Esta lua é só minha, é minha amiga,
meu amor ela aceita, comezinho,
mas mais sincero que esse amor mesquinho
que dessa gente toda ela consiga...

Pois que nada lhe peço, senão luz,
que meu quarto reveste, em pura prata,
de vez em quando, nesse raro ensejo

em que sua perfeição mais me seduz
e a bela concha o meu amor dilata,
até que pouse na minha testa um beijo...


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