CAPAS DE ABALONE
William Lagos, 9 set
2010
CAPAS DE ABALONE I
Tenho uma lua guardada
só pra mim,
que eu coloco na
testa, se me apraz:
roubei a Lua do céu,
quando rapaz,
nem lembro mais como é
que fiz assim.
Guardo essa lua no meu
quarto, enfim,
e quando falta luz,
ela desfaz
a escuridão em que
minhalma jaz
e assim posso
trabalhar no meu jardim.
Ou onde mais eu
queira. Ela recobre
os fios de meus
cabelos, um a um,
com essa seda que até
parece prata.
E quando o sino de
finados dobre,
meu ataúde não será
comum,
pois essa luz minha
vida ainda dilata.
CAPAS DE ABALONE II
A lua eu guardo dentro
de meu quarto,
bem enrolada, no fundo
da gaveta:
ela me serve de
inspiração secreta,
de seu fulgor
argentino não me farto.
Essa lua é que me
assiste em todo o parto,
quando a musa que
inspirou a mais dileta
canção -- já se
afastou, deixando aberta a greta
e se erguendo em seu
voo como esparto. (*)
Pois sai da cópula
incólume essa musa,
enquanto deixa em mim
a sua semente,
na breve gestação de
um sonho ardente.
À luz brota o poema,
sem recusa,
mas me encontro
sozinho, em pleno escuro,
enquanto nasce o
verso, em brilho puro.
(*) Planta medicinal,
usada antigamente no parto e de cujas fibras
fabricavam cestinhas
para bebês.
CAPAS DE ABALONE III
Quando saio a
enfrentar os meus perigos,
eu prendo a lua à
testa, sem receio;
seja o que for que me
venha de permeio,
não combato no negror
meus inimigos.
A luz da lua afasta os
meus castigos,
meu corpo explora o
cintilante veio,
sobre os espaços
vazios encontro esteio
e alcanço amor através
de mil postigos.
Sou espectro da lua e
rouxinol,
que só de noite sai a
cantar verso,
porém a lua me ilumina
o coração,
que ela me acende e eu
mesmo sou farol,
projetado além de mim
e assim disperso
por onde quer que alcance
tão clarão!
CAPAS DE ABALONE IV
A lua é diadema e não
tem pena
de conservar-se presa
a uma tiara;
a lua é verde e azul,
a lua é amara,
nas mil nuances que a
centelha encena.
E sendo gema, a lua me
condena
a sempre perlustrar
estrada clara;
o preço é alto e a
recompensa é cara,
o prêmio é rico e a
maldição amena.
A lua é alfanje e
corta-me a garganta,
num talho a degolar o
malefício:
um raio de luar é
minha comenda,
que a lua é rósea e a
negridão espanta,
acidulada em doce
sacrifício,
em lanho puro que a
mente não ofenda.
CAPAS DE ABALONE V
Enrolo a lua nos
dedos, como anel:
são dois quartos
crescentes enlaçados,
em cor de lua nova
encastoados,
enquanto os dedos
acutela em ouropel.
Só em tal engaste se
agita um menestrel,
quartos minguantes de
amantes abraçados,
cem plenilúnios em
feltros engastados,
feito de poeira
zodiacal o meu burel.
Porém meus anos
possuem treze meses,
vivendo em mim esse
ancestral ano lunar,
no qual um mês existe
só pra mim;
roubei da lua, que
devoro às vezes
e de prata eu rebrilho
em dia solar,
quando essa ama, a
lua, se torna serva enfim.
CAPAS DE ABALONE VI
Essa lua que eu no
antanho capturei
não é a Lua de hoje,
certamente,
essa que aos outros se
mostra tão frequente,
rosto marcado pelas
rugas que lhe dei.
Essa Lua tem mil furos
em sua grei,
fez-se Lua maltratada
de indigente,
a triste Lua que se
expõe a toda a gente,
jamais a lua que para
mim guardei.
Essa tem a feição pura
e o dorso liso,
nunca sofreu com
vulcões ou meteoro,
embora guarde cometas
em cavernas
e é com estes que
ilumina o chão que piso,
são as luzes em meu
rosto quando coro,
ao desfrutar das
afeições externas...
CAPAS DE ABALONE VII
Essa lua se encontra
pendurada
de um longo colar que
trago ao peito;
sobre o esterno me
protege do despeito,
sobre as costelas toda
inveja é desviada.
Do coração toda
malícia é afastada,
em que procuro, sem
achar, qualquer defeito;
que lá no fundo sou
puro então suspeito,
mas me esforço por
fingir suspeitar nada.
O ódio e a mágoa torno
em contas e botão
e ambos perfuro com
gotas de veneno,
faço um rosário com as
linhas do rancor
reflito assim qualquer
e toda a maldição;
na própria sombra que
resta me condeno
a esquecer que em meu
passado tive amor.
CAPAS DE ABALONE VIII
Mas como tenho uma lua
que é só minha,
quase não durmo à
noite e larga é a hora
em que me posso
recordar de meu outrora
e pôr em versos as mil
coisas que ontem tinha.
O que não tenho mais é
a ladainha
dessas coisas que a
vida leva embora
ou daquelas que não
tive, por demora,
mas que inda espero
ter sob minha vinha.
E guardo sempre a lua
dessa tarde
em que ascendi até o
topo da colina
e a luz prendi em uma
rede de filó...
Ainda era claro e sob
o sol que arde,
nem perceberam a falta
da menina
que apenas brilha para
mim quando estou só.
CAPAS DE ABALONE IX
Somente o Sol lhe
percebeu a falta,
certo crepúsculo,
quando já cansado
entrava a descansar e,
do outro lado,
do firmamento só
contemplava a malta
de mil pontos de luz,
que a vista assalta
e percebeu então,
horrorizado,
que sua substituta havia
falhado,
sem Lua Cheia a
mostrar-se na ribalta;
deu um suspiro e de
nuvens revestiu
o lado oposto ao
ocidente manso,
para que nada
percebessem os humanos;
e nessa noite o Sol
sequer dormiu,
forjando uma outra lua
em seu descanso,
que suspendeu no céu
desde esses anos...
CAPAS DE ABALONE X
O que o povo notou, já
no outro dia,
é que o Sol se
revestiu de manto;
até os pássaros
hesitaram em seu canto,
ao ver que a luz
celeste não surgia...
Pelos buracos das
nuvens não se via:
os olhares curiosos
nesse espanto,
os olhares langorosos
de seu pranto,
não mais que estrelas
a lhes servir de guia.
Mas como não havia
tempestade
e até o Sol precise
assinar ponto,
ele afastou seu manto,
finalmente.
Não houve aurora em
tal dia, é bem verdade;
só ao meio-dia levantou-se,
pronto
para queimar os
homens, inclemente.
CAPAS DE ABALONE XI
Um astrônomo que outro
comentou
que a Lua não se
achava mais no céu:
em qualquer ponto se
perdera ao léu,
pois desde a Terra sua
órbita deixou.
Mas nessa tarde,
quando a hora chegou,
estava uma outra lua,
envolta em véu,
como uma foice,
cortante igual arpéu,
e nos astrônomos
ninguém acreditou.
Talvez o Sol seja hoje
mais magrinho,
desde esse dia em que
nova lua criou,
talvez o clima esteja
menos quente;
quem sabe até esteja
mais mansinho,
que a velha Lua não
mais procurou
e nem faz falta para
tanta gente!...
CAPAS DE ABALONE XII
Guardo assim para mim
a lua antiga,
como uma concha
multicor, no meu carinho,
oca por dentro, um
arco-íris pequeninho,
triste destino de uma
lua rapariga...
Esta lua é só minha, é
minha amiga,
meu amor ela aceita,
comezinho,
mas mais sincero que
esse amor mesquinho
que dessa gente toda
ela consiga...
Pois que nada lhe
peço, senão luz,
que meu quarto
reveste, em pura prata,
de vez em quando,
nesse raro ensejo
em que sua perfeição
mais me seduz
e a bela concha o meu
amor dilata,
até que pouse na minha
testa um beijo...
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