RIOS DE FLORES – 09 SET 2010
Duodecaneto de William Lagos
RIOS DE FLORES I
O que pretendem me falar as
flores?
Você não espera, certamente,
meu amigo,
que eu retorne a um tema tão
antigo,
para falar de beleza e
resplendores...
Que vá falar sequer de meus
ardores,
da cobertura sobre o meu
jazigo,
como pretenda decorar o abrigo
ou revelar qualquer de meus
pendores.
Se vou falar de flores,
deixarei
que assim me corra à solta a
redação,
esperando que algo saia
diferente.
E para assim aduzir à velha
lei,
não brotará daqui perfume
quente,
que lhe possa encantar o
coração.
RIOS DE FLORES II
Vou preferir falar de que elas
pensam,
por não poder pensar, serem
pensadas
por quem nas tardes as vê,
ensolaradas,
quando os calores nas pétalas
se adensam.
Porque as flores que os jardins
assim incensam,
em suas vidas naturais e
compassadas,
submetidas ao pendor das
madrugadas
ou quando sob o orvalho mais se
tensam,
não conseguem pensar no seu
destino,
são alheias ao tempo e, quanto
à morte,
dela não fazem a menor ideia...
Apenas vivem, em canteiro
pequenino,
ate que sejam vitimas de um
corte,
sem realizarem périplo ou
epopeia...
RIOS DE FLORES III
E o que diriam, se falar
pudessem?
Quais os segredos que têm a
partilhar?
Arcanos do nascer e rebrotar?
Mistérios da maneira como
crescem?
Teriam algo a dizer, como
padecem
as suas irmãs, frios vasos a
enfeitar
ou por acaso, sabem que alegrar
faz parte do destino em que se
aquecem?
Quando a flor é cortada e a
seiva corre
pelo talinho, recém
decapitadas,
soltam lágrimas, como tantos já
disseram?
Ou é tal sangue verde que assim
morre
e deixa o chão somente
respingado,
enquanto os cortes fecham e se
encerram?
RIOS DE FLORES IV
Quando há flores suficientes
num jardim
e seu perfume provoca o teu
langor,
evanescente entre as nuvens de
calor,
até conseguem te hipnotizar
assim...
Talvez desejem até mesmo tal
festim:
em ti manter a modorra em teu
pendor,
para que as regues sempre, com
fervor,
quando sua seiva já estiver sem
palanquim.
Talvez elas te supliquem,
mansamente,
e num instante fugaz te
influenciem;
talvez não seja mesmo a tua
intenção
nas tardes mornas, mas
inconscientemente
surja em tua alma a imagem que
assim criem,
que até pareça te brotar do
coração...
RIOS DE FLORES V
Mas caso isso ainda resulte
insuficiente,
se o calor não te desperta a
compaixão
e preferires a tua rede no
galpão,
ao invés de lhes dar rega
frequente,
talvez com tal desculpa
indiferente
de que faz mal, durante o sol,
a regação,
que pode até lhes ressecar a
brotação
e que é melhor esperar que o
Sol se ausente,
quem sabe empreguem sua mente
coletiva
e te consigam convocar à tal
tarefa,
mesmo através de todos os
calores;
ou empreguem do artifício a
recidiva
de murchar sob o postigo da
sanefa,
para chamar sua serva a seus labores...
RIOS DE FLORES VI
Até que ponto as pobres flores
temem
ou ao invés, apreciam ser
colhidas?
Por suas raízes sempre são
tolhidas;
quando são muitas, por mudanças
gemem...
Até que ponto de vontade
queimem
para serem transplantadas a
guaridas
em que possam dar início a
novas vidas?
E os passarinhos, quais
barqueiros, remem
para quem soltem noutro ponto
suas sementes
que essas entranhas não puderam
digerir,
sem perceber que lhes fazem a
vontade?
Em parte bem diversa, em outros
entes,
touceiras formarão, mil
arbustos a florir,
do chão brotando com
naturalidade...
RIOS DE FLORES VII
Do mesmo modo, até que ponto
vêm abelhas
empós somente do néctar floral?
Por certo, esse perfume é seu
fanal,
polispermia reluzente em tais
centelhas...
A espécie já aprendeu, nas eras
velhas
esses comandos para o viver
virtual;
são as abelhas que as buscam,
afinal,
ou são as flores que se
espalham em corbelhas
justamente a praticar o seu
ritual,
favor constante para a
polinização,
chamando pássaros que as levem
bem distante,
escaravelhos e joaninhas, cada
qual
mais dominado por tal
mesmerização,
que talvez possa até afetar um
elefante?
RIOS DE FLORES VIII
Porque é preciso tomar a sério
a ideia:
até que ponto domina o animal
a plenitude do reino vegetal
ou até que ponto é inversa essa
epopeia?
Mesmo em efeito de prosopopeia,
já que as plantas dominaram,
sem igual,
muito mais tempo sobre o mundo
natural
do que os bichos iniciassem sua
odisseia...
Quem sabe, era difícil
espalhar-se
e sua consciência coletiva se acionasse
para criar os novos seres
animados?
Visto que presas somente em
seus tropismos,
ou dependendo tão somente de
nastismos,
não conquistavam os terrenos
desejados?
RIOS DE FLORES IX
E embora lhe pareça um
contrassenso,
ao ver como o animal devora a
grama,
como o pássaro transforma a
palha em cama
ou como o bem-te-vi, de bico
tenso,
bebe o néctar para si, em gole
extenso,
como o leão nas touceiras se
recama,
como os rebanhos convertem
verde em lama
e até pareçam possuir domínio
intenso...
Mas onde passam, deixam as suas
fezes
e a sua urina por igual se
dissemina,
umedecendo e fecundando a
areia;
e tais sementes que na mão bem
leve peses
rebrotam mansamente em tal
sentina
e assim de flores o deserto se
incendeia...
RIOS DE FLORES X
E cedo ou tarde, todos os
animais
também falecem, devolvendo à
terra
os elementos que seu corpo
encerra,
a dissolver-se em processos
naturais;
e desse modo, por serem
individuais
e partilharem de uma eterna
guerra,
não ficam presos numa só
encerra,
mas distribuem por aí restos
mortais,
dos quais as plantas se servem,
de imediato.
Não são os animais que as
exterminam,
são nada mais que obedientes
condutores
e a vida assim se expande, em
claro fato:
o mundo inteiro os vegetais
dominam,
mantendo os animais quais servidores.
RIOS DE FLORES XI
Mas surge o ser humano e pensa
ser,
mais uma vez, o senhor da
criação,
só por ter dos animais
dominação
e o poder dos vegetais não
perceber;
porém depressa aprende a
obedecer,
sem lhe passar pela imaginação
que essa semente que produz
milho e feijão
vai espalhar, muito mais que
recolher.
Onde há uma árvore só ou só
capim,
ondulam hastes de trigo, arroz
e aveia,
são vidas aos milhões que eles
cultivam;
e a cada flor que plantam em
seu jardim,
nessa intenção de alegrar sua vida
feia,
obedecem com prazer e não se
esquivam...
RIOS DE FLORES XII
Pois “toda carne é erva” e ao
chão retorna;
o mundo inteiro é como um verde
mar;
domina a planta assim, a
controlar
esse que pensa que só dela se
adorna.
E dá-lhe seu calor a carne morna,
nos dias de frio buscando-a
abrigar
e dá-lhe o seu suor para regar
nos dias quentes, quando à
terra torna.
Porque, afinal, a nossa
hemoglobina
pouco difere da sua clorofila,
por isso o verde é esperança
até de amores;
órgãos sexuais que adornam a festa
fina,
todas as flores... e dos
funerais na longa fila,
participamos no fluir dos rios
de flores...
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