terça-feira, 12 de maio de 2015





JARDIM DE CRISTAL & MAIS
William Lagos

JARDIM DE CRISTAL I – 30 ABR 2015

PORQUE EU ESPERO, O TEMPO NÃO ME ESPERA,
PORÉM PASSA E MINHA ESPERA SE DILUI;
TODA A MINHA VIDA NESSA ESPERA FLUI,
ENQUANTO ESPERO O FUTURO QUE ME OPERA.

LEVO O PRESENTE ENVOLTO NESSA ESFERA
EM QUE REMONTA O TEMPO, EM QUE REFLUI,
NO TURBILHÃO VAZIO COM QUE ME ALUI,
ENQUANTO OS REMOS IMPULSIONO DA GALERA.

DO PASSADO NADA ESPERO E MAL RECORDO
BREVES MOMENTOS DE MAIOR SATISFAÇÃO,
QUE A MAIOR PARTE NEM QUERO RELEMBRAR;

VEJO O PRESENTE MEUS DEDOS A LAVAR,
PELO FUTURO SONHO E QUANDO ACORDO
TUDO SE FOI NA MESMA DIREÇÃO...

JARDIM DE CRISTAL II

MAS AFINAL, POR QUE ME ESPERARIA
O TEMPO, QUANDO AS ONDAS NÃO ESPERAM?
SÃO AS MARÉS DOS ANOS QUE ME DERAM
O BRANDO IMPULSO COM QUE ME MOVERIA.

E AFINAL, POR QUE ME AGUARDARIA
O VENTO, SE OS CICLONES NÃO SE ALTERAM?
SÃO TORNADOS DE LUZ QUE OS ARES GERAM,
AS TROMBAS D’ÁGUA COM QUE ME ILUDIRIA.

SÃO AS MARÉS FORMADAS PELA LUA,
MAS SÃO AS MINHAS GERADAS PELO MAL:
NÃO CHEGAREI AOS ASTROS NESSA GRUA,

O VENTO E O TEMPO IRMANADOS, AFINAL,
NO MESMO ORDÁLIO COM QUE MEU CORPO SUA,
ACETINADO POR MIL CORTES DE CRISTAL.

JARDIM DE CRISTAL III

POR TODA A VIDA PROSSEGUI SEM PRESSA,
CADA MOMENTO FAZENDO PERDURAR,
CADA SEGUNDO NOS DEDOS A AVALIAR,
NÃO MAIS O TEMPO QUE MELODIA ESPESSA,

UM CALDO DE PAIXÃO QUE NUNCA CESSA,
MAS SEM QUERER CRIAR MEU BEM-ESTAR,
NAS ARTIMANHAS DE SEU CRISTALIZAR,
EM DORES BRANCAS MEU JARDIM SE ENGESSA.

E ASSIM ESPERO PELO TEMPO, SÓ,
QUE PARA OS OUTROS CORRE DIFERENTE,
A AMPULHETA CHEIA COM MEU PÓ,

NA VENTANIA, MINHA FÉ EM TURBILHÃO,
CRISTAL PARTIDO PELO TEMPO ONISCIENTE,
EM QUE SIBILA O VENTO SEM RAZÃO.

LIVRE DESEJO I – 01 MAI 2015

Que seja para mim o verde tempo,
Verde de pasmo como verde vento,
Verde que gira para o meu lamento,
Vento que gira pelo azul mais lento...

Que segue o vento amarelo como poeira,
Que vai o tempo em brisa derradeira,
Que seja o azul do vento peregrino,
A me deixar vento verde em desatino...

Na carícia do vento que me esmaga,
No término do tempo que me traga,
Apenas mais um vento, vento verde,

Na carícia do tempo que me cria,
No término do vento que ainda havia,
Apenas vento azul que o tempo herde...

LIVRE DESEJO II

Que seja para mim tempo encarnado,
Que seja o vento sempre encordoado,
Vermelho o tempo como o sangue em nós,
Rubro o meu vento quando estamos sós.

Que seja para mim tempo amarelo,
Que seja o vento do invisível o castelo,
Jalde esse tempo como flor de outono,
Jalde esse vento igual ao cardamomo.

Na carícia do tempo faço o ninho,
Na carícia do vento hoje me alinho,
No doce aguardo de poder voar...

Na tristeza do tempo brando pranto,
Na tristeza do vento silva o canto,
Enquanto deixo na terra o meu pesar...

LIVRE DESEJO III

Que seja o vento um canto purpurino,
Que seja o tempo um trono solferino,
Feltro empapado em coração magenta,
Que o corpo invade e que a memória tenta...

Que seja o tempo de um roxo triunfal,
Que seja o vento cianótico e irreal,
Nuvem de prata, heptacromo espanto,
Apenas cinzas sobre um fogo brando.

Na carícia da areia na ampulheta,
Arcano seja esse veloz que excreta
O tempo enquanto nos expõe ao vento...

No catavento que gira meu destino,
Na poeira azul do sonho pequenino,
O vento passa a se ocultar do tempo...

TERRAS I – 02 MAI 2015

Amor da morte a ressonar no escuro,
velhos amantes solitários no estendal,
não mais têm roupas estendidas no varal,
as mesmas vestes mofando no descuro...

Cada qual no emitir de seu sussurro,
por entre as finas paredes do pombal,
outros ouvidos atingindo mal e mal,
em seu murmúrio de teor tão obscuro...

Que nem se sabe se dormem em paz
ou se perdem na gosma do azedume
por qualquer um que passe indiferente;

e destarte esse cochicho se desfaz
no desprezível cheiro do ciúme
que firme abraça o resto dalma dessa gente...

TERRAS II

Antigamente, era bem mais individual
seu descanso conferido permanente
por quem sobrevivia à pobre gente,
maior respeito por cada um ancestral,

dentro da terra, em sudário natural,
alguns presentes, em depósito frequente,
algo que em vida o deixaria contente,
sem grande perda para os vivos, afinal.

Mas cada um perfeitamente acompanhado
por sua pesada lápide, em garantia
de que o defunto nunca mais se erguia

e com rezas constantes do sagrado,
nesse terreno abençoado pela igreja,
um campo santo aonde quer que esteja.

TERRAS III

Ou então, em jazigos familiares,
já incluídas ali as tais gavetas,
portas de bronze, nas intenções secretas
de conservá-los ali, sem mais andares...

O medo aos mortos tem origens seculares,
criado pelas névoas com que excretas,
ó terra fria! cem mil formas incompletas,
mas que lembravam superstições e azares...

Por mais que possa o amor então sentido,
nesse momento cruel do passamento,
bem lá no fundo, soava uma vozinha,

em gratidão por haver sobrevivido,
nessa urdefesa superposta ao sentimento, (*)
com que o remorso juntamente se avizinha...
(*) Defesa primitiva, como a ilusão do Servo Onipotente.

TERRAS IV

Estou no fim do Inferno desse Dante,
cuja leitura empreendo há muitos meses:
quantas eu paro, recomeço de outras vezes,
porque a leitura, na real, é bem maçante!

Mais que nos túmulos, em sonho delirante,
ali estão presas as almas dos fregueses
que mais odeias ou de quem medo sopesas:
nem catecismo traz terror assim vibrante!

Os corpos veem-se na gravura mais dileta
de Gustave Doré para esse Inferno:
músculos firmes de permeio a tais castigos...

Mas sem dúvida, esta é a prova mais completa
de que o abismo desse castigo eterno
foi só criado para os nossos inimigos!...

TERRAS V

Os indo-europeus tais costumes renegavam:
em altas piras cada um era cremado,
em monumentos somente preservado
o que sobrara das cinzas que guardavam.

Era, sem dúvida, difícil esperar
que esses pós reassumissem o corporal
e aos vivos, em seu aspecto natural,
durante as noites viessem a assombrar!

Só era diferentes nas pastagens
em que a madeira bem mais escasseia
e as piras só se erguiam raramente;

mas mesmo ali, corriam as paragens
com cavalhadas a marchar sem peia,
compactada a terra firmemente!...

TERRAS VI

Da Ressurreição dos Corpos vem temor,
que no Credo repetimos firmemente,
sem entender a mensagem, claramente
de São Paulo a descrever seu esplendor.

Não são os corpos materiais e a dor
que ressuscitam na ocasião premente,
como de fato, não vem à luz semente,
após que a lance no eito o semeador...

Porém são corpos por Deus glorificados;
na realidade, corpos espirituais
e não aqueles que foram descartados,

sem mais razão para temores e ademais,
que então se cremem os restos materiais
e os cemitérios se tornem despovoados!

RESPONSOS I — 01 mar 2007

"Não fales hoje das horas, das mudanças,
nem me menciones os lírios e as andanças...
— Só quero  fales do ser-em-si contigo,
só quero que menciones ser nós e ser comigo.”

"Então  te falarei dos seres mais ocultos,
dessas palavras vagas, que soam como insultos.
Porque pronta não estou ainda a escutar-te,
exceto em termos neutros, termos de arte..."

Pois, ao contrário, eu queria que escutasses,
bem no teu coração, o quanto não me atrevo
a te dizer agora, sequer, por meu soneto...

E, se algo mais queria, é então que me falasses
o que eu queria dizer...  E que mal sei se devo,
porque, se não falares, percebo que é incompleto.

RESPONSOS II – 03 MAI 15

“Então eu falarei dos Devas, dos Asuras,
na carícia imortal das velhas escrituras,
que até nós sobrevivem, com ampla fortaleza,
ao roçagar do tempo polidas em pureza...”

“E só então me indagarás dos Avatares,
permeio às eras, em lentos deslizares,
ante a Sansara em perfeito desafio, (*)
do amplo tempo a comandar o rio...”

Hoje a palavra já se vulgarizou:
são figurinhas em videoguêimes digitais,
que qualquer jogador pode possuir,

enquanto Vishnu só se materializou
da humanidade nos dias mais fatais,
a integridade do Universo a restituir...
(*) A roda das encarnações.

RESPONSOS III

E mesmo no universo cinemático,
de inevitável sabor hollywoodiano,
os avatares surgiram noutro plano,
sem nada de divino ou de catártico,

seres azuis vivendo nesse enfático
interligar-se com caudas, num insano
imitar desses fios, que cada humano
os periféricos prende ao sorumbático

receptáculo da digital memória;
a conotação por certo já fizeste,
por mais que o filme despertasse tua emoção,

desvirtuando desta forma a pura história
e rebaixando esse teor que recebeste
a pouco mais do que conexão!...

RESPONSOS IV

Assim querias uma conversa  filosófica
neste mundo de velocíssima mudança,
mas só aparente, pois sei, desde criança
das previsões tecnológicas, sob a ótica

dos antigos escritores da estrambótica
Ficção Científica, como a crítica a abalança,
naqueles tempos a desprezar, até que a dança
literária a aceitasse, em nova semiótica. (*)

E hoje apregoam como novidades
isso que há oito décadas previam...
Mas para mim seria melhor tema

contigo partilhar de amenidades
que nossos lábios nunca permitiam,
só registradas em formato de poema...
(*) Parâmetros de significado.

ANO ANCESTRAL I – 02 MAR 2007

TÃO BREVE O SONHO
DESFRUTADO UM DIA
LONGA A ELEGIA
QUE POR TI COMPONHO

TÃO BREVE A GLÓRIA
FEITA DE ESPERANÇA
GUARDADOS NA LEMBRANÇA
RETALHOS DE TUA HISTÓRIA

A MEU REDOR O POVO
RECEBE O ANO NOVO
COM ALEGRIA E PRESSA

PORÉM EU AGRADEÇO
AO VELHO E AINDA PEÇO
COMIGO PERMANEÇA

ANO ANCESTRAL II – 4 MAIO 15

POR QUE SOBREVOAR
A BREVE ESFERA ANUAL
SE UM VASTO CABEDAL
NOS TEM A DEMONSTRAR?

POR QUE SOBRENADAR
AO TEMPO NATURAL
SE A LUZ DESSE FANAL
NOS PODE CONFORTAR?

QUE HOUVE MUITO DIA
NO QUAL EU FICARIA
POR BEM MAIS LONGA HORA

MAS ZOMBA DE MINHA FÉ
O TEMPO E EM PONTAPÉ
ME EXPULSA SEM DEMORA

ANO ANCESTRAL III

BUSQUEI NÃO SER SOMENTE
O ÚNICO A FICAR
NA ESPERA SINGULAR
DO TEMPO INDIFERENTE

PORÉM HÁ TANTA GENTE
QUE BUSCA SE APRESSAR
À PRAIA DE OUTRO MAR
REMANDO DE IMPACIENTE

O TEMPO NÃO AVANÇA
MAS É IMPULSIONADO
POR DOIDIVANAS BRAÇO

E NESSA LARGA TRANÇA
ARRANCAM-ME O PASSADO
E LANÇAM-ME NO ESPAÇO

ANO ANCESTRAL Iv

JÁ TIVE MINHAS ESPERAS
E TU TAMBÉM TIVESTE
A MÁGOA SUPORTASTE
NO AGUARDO DAS ESFERAS

ASSIM O TEMPO GERAS
QUE TU MESMA APRESSASTE
E OS PORVIRES QUE CONFIASTE
SÃO DADIVOSAS FERAS

TAMBÉM PENSEI UM DIA
QUE TUDO MUDARIA
DEPOIS DO QUE ESPEREI

MAS SE A CORTINA AFASTO
BALANÇO DESSE GASTO
SÓ O TEMPO DESGASTEI

SIAGONAGRA [nevralgia do trigêmeo] I – 03 JAN 07

e a questão é bem esta: Pressinto se enciume
porque lhe fiz amor no tempo em que ocupava
seu ventre alguma outra.  E quando se orgasmava,
era a outra que sentia prazer feito azedume.

por não saber quem amo... Se ela, ou sua parceira,
de coração e corpo...  E a quem então amava?
tanta vez eu lhe disse quão grande o amor que amava
que engloba as que se alternam na mente sorrateira.

será que confabulam?   Que falam entre si
do harém as odaliscas do mestre do serralho?...
e que dirão de mim, permeio a seus segredos?

pois quase um adultério a praticar-me vi,
com minha própria esposa; e quando enfim me espalho,
nem sei qual a presença que tive entre meus dedos...

SIAGONAGRA II – 05 MAI 15

três nervos nos percorrem por um forâmen só
e assim a dor que causam percebes triplamente:
difícil é saber se a origem é algum dente
ou se provém do ouvido o cepilhar do enxó.

e quando a atmosfera se carrega, sem mais dó,
a dura sensação tortura-te amplamente,
nessa pressão que esmaga e torna a dor potente,
espalhada pelo rosto, chegando até o gogó!

quem sofre dessa dor a amarga nevralgia,
depende muita vez de fortes analgésicos:
por sorte eu a domino mais por concentração

ou faço os exercícios que em alfarrábios via,
certos deles impossíveis aos pobre hemiplégicos,
forçados desta forma a maior meditação...

SIAGONAGRA III

porém a minha amada tem muitas companheiras
que se alternam, potentes, o corpo dominando;
algumas para mim em seu ardor se alçando,
enquanto outras a mim recusam suas esteiras...

um corpo só, porém tantas seresteiras...
é difícil saber sequer quem está olhando
do fundo dessas órbitas, tão só analisando
se dará aceitação a minhas ânsias parelheiras...

e quando isso descrevo, parece-me loucura
que beije a mesma boca num ato de ternura,
mas sem saber de fato qual seja a que estiver

a me esperar ardente em seu ideal complexo,
se quer só meu carinho ou se deseja sexo:
nem sei quantas habitam tal corpo de mulher!

SIAGONAGRA IV

de fato, do trigêmeo até prefiro a nevralgia
que já conheço bem e posso controlar
do que essa mutação em súbito oscilar,
quando à tona me surge outra irmã da confraria!

porém se alguma aceita o amor que me iludia,
como posso saber a qual estou a beijar,
qual delas corresponde a meu terno abraçar,
na troca multicor dessa esquizofrenia?...

pressinto no final que amei caleidoscópio,
composto por mil tésseras em agitar constante
ou antes ampulheta, num lento deslizar

e outras vezes penso que por um periscópio
contemplam lá do fundo, em ciúme delirante,
o prazer de sua irmã, seu corpo a me entregar!...

AMOR DE CÂMARA VII – SCHUMANN – 3 jan 07

Bate forte essa música e entorpece
e durmo e só desperto ao dia seguinte.
sensual o sono que o sonho teu me pinte:
queria que meu sonho então se desse...

Queria que Morfeu trouxesse, alado,
o sonho bom que tive: e foi contigo;
e que igual sonho tivesses tu comigo:
quisesses despertar e ver-me de teu lado.

Que fosse tudo novo nesse sonho.
Que fosses meu ideal e eu fosse o teu,
por entre as ondas que no sonho espumam.

Que fosse um sonho límpido e risonho:.
que nos fundíssemos em cristais de breu,
para fazer amor ao som de Schumann...

AMOR DE CÂMARA VIII – Berlioz – 03 jan 07

Fecha a janela durante a tempestade,
palpitante dos dias que anjos voam,
falando mudos das noites que se escoam,
enquanto acorda, presa da saudade

de seu amor antigo e já afastado:
amor que foi de lâmia e feiticeira,
amor que foi de fada alvissareira,
amor de um coração semicerrado...

Mas para mim que abrir essa janela,
de par em par, sem hesitar, quisesse
e eu lhe entregasse o meu desejo atroz,

de que me pertencesse, toda ela,
e que inteira e pronta já estivesse
a amor fazer, ao som de Berlioz... 

QUEIMA DE VERSOS I – 03 jan 07

Não sei dizer se foi corpo sem voz,
ou voz sem corpo feita num sussurro,
nessa eletrônica comutação de nós
que explode em versos que ao teclado empurro.

Não sei dizer se foi a voz sem corpo,
ou o corpo sem voz da tempestade,
que te chegou ao ouvido, se foi cor po- (*)
derosa com que o relâmpago te invade.

Só sei que me juraste ter prazer
na dor-corisco que o corpo te atravessa,
por sobre o pelourinho do trovão.

Enquanto os bytes murmuram, sem poder
mais que cegar teus olhos, quando cessa,
na luz do raio, o pulso da emoção. 
(*) Aqui empreguei a Grande Sinafia.


QUEIMA DE VERSOS II – 6 MAI 15

Talvez escute a voz da profecia
nesse relâmpago azul da tempestade,
nesse clarão que os olhos nos invade
e que talvez cremar-nos poderia...

Sei de pessoas que um raio atingiria,
em carne negra encolhida na verdade,
algum vapor tão só que sobrenade
esse restolho a partir sem homilia...

É bem diversa dessa ansiada cremação
sobre uma pira, como em Bhârat ainda fazem (*)
esses milhões de brâmanes devotos

ou em um forno de eletrizante combustão
que a carne e ossos em fina poeira trazem,
não mais que urna sobrando para ex-votos.
(*) Nome oficial da República da Índia.

QUEIMA DE VERSOS III

Somente penso que talvez uma faísca,
um asteroide, quem sabe, ou meteoro,
os satélites queimaria, em triste choro
por tantos versos que a memória cisca

ou os servidores servindo como isca
os atraíssem, em acidente que deploro,
por qualquer magnetismo que ignoro
e ali cremassem cada frase que se risca,

desses que julgam serem digitalmente
conservadas de forma permanente,
como um aceno para gerações futuras,

igual que versos foram, porém materialmente,
em pergaminhos de duração ingente,
durante as eras até mais obscuras..

QUEIMA DE VERSOS IV

Já no passado pensei queimar os versos
que me esmagavam tanto o coração:
quando dormia, seu peso em multidão
tornava meus ofegos mais opressos...

Mas hoje, que já os tenho tão dispersos,
com liberdade para a reprodução,
perdi o controle dessa ampla gestação:
somente posso comentar os contraversos

que em escaninhos guardo ainda neurais,
mas que esqueci em sua grande maioria
e já nem posso no analógico encontrar,

mas lá se escondem, em casulos naturais
e apenas posso temer, em nostalgia,
sejam queimados pela luz do teu olhar.

A FILHA DE APOLLO XII – 5 jan 07

Que coisa mais estranha, que se passa,
quando lanço um olhar e vejo em torno,
qual um solipsista, que essa raça
que me rodeia, que esse povo morno,

é como se não fosse bem real.
Caricaturas são, como uma gráfica
computação inserindo essa virtual
reunião de táticas na memória sáfica.

Tal como escasso fora o orçamento
desse mundo consútil que rodeia
meu corpo inerme em fímbrias de paixão.

E então me apego a ti, nesse momento,
em que teu beijo abrasa e me incendeia
e me derreto em ti, nessa ilusão... 

AS JOVENS DE ROMA LV – 5 jan 07
PYXIA

COM SURPRESA, DESCOBRI QUE ELA TEMIA
LER OS MEUS VERSOS DE ESPLENDOR FUNESTO:
QUE UM OMINOSO FUTURO PRESSENTIA
A CADA VEZ QUE SUSPEITAVA O INCESTO

CONTIDO NESSAS LINHAS ASSANHADAS,
QUE UMAS ÀS OUTRAS FREQUENTES FECUNDAVAM,
TAL COMO, SE AO FUTURO AMEAÇADAS
TORNASSEM EMOÇÕES QUE A ENSIMESMAVAM.

OU TALVEZ, SIMPLESMENTE NÃO QUISESSE
LER MEUS POEMAS, PORQUE COMOVERIA
SEU MEIGO CORAÇÃO, QUE INDISPUSERA

PELA SUA AUSÊNCIA A QUE MAIS ME APROXIMASSE.
ATÉ QUE AMOR POR MIM CONFESSARIA,
NA ANGÚSTIA PURA DA EMOÇÃO SINCERA.

A EPIFANIA DA ESTRELA I – 5 JAN 07 

 

A tradição quis preservar o mito

dos Três Reis Magos, de sabor sassânida; (*)

um trouxe a mirra, em seu olor balsâmida,

outro o incenso, para um deus bendito. 

 

Puseram-se a caminho os três astrólogos,

guardados por escolta bem armada,

em proteção do ouro, a bem-amada

e eloquente moeda em seus monólogos.

 

Pois dormiam de dia; e à noite, viajavam,

para seguir da estrela a orientação,

a supernova esplêndida e azulada,

 

que os céus marcava em plena exaltação,

essa estrela impossível que enxergavam,

no fulgor pleno da ilusão sagrada...

(*) De fato, o Império Sassânida se iniciou no século terceiro de nossa era,

conhecido por seus habitantes com Eranshar ou Eran.


A EPIFANIA DA ESTRELA II – 07 MAI 15

Li, certa vez, um melancólico relato (*)
de astronautas chegados a um planeta,
sua vida extinta por razão secreta,
sua arte ainda preservada sem recato.

E assim chegaram a descobrir, em desacato,
que uma estrela sua radiação excreta,
toda a vida destruída por completa,
conservada a arquitetura, triste fato!...

Bomba de nêutrons de natural fulgor,
feitos os cálculos, à conclusão chegaram,
por mais quisessem negá-la também,

que essa supernova de pavor
(que os astrônomos chineses registraram)
fora essa própria Estrela de Belém!...
(*) O famoso conto THE STAR de Arthur C. Clarke.

A EPIFANIA DA ESTRELA III

Porém Giotto de Halley o cometa
nos céus da Itália pôde contemplar,
para então em seus quadros conservar
essa passagem que toda a Terra afeta,

para o grande pintor, dourada seta
dos Três Magos o caminho a indicar:
sobre Jerusalém vai se ocultar,
sobre Belém de novo se projeta!...

Desde então, foi mantida a alegoria,
não de uma estrela, mas incêndio sideral
que o céu transmuda com a luz da profecia,

igual que o Velho Testamento nos dizia
que “do distrito a pequena capital
o seu Messias triunfal receberia!...”

A EPIFANIA DA ESTRELA IV 

 

Por Halley esperei, por muitos anos,

e então sofri belo desapontamento,

pois não foi, nem de longe, tal portento

descrito em tantos versos soberanos.

 

Dizem adeptos de mistérios mais arcanos

que pela cauda do cometa o passamento

de toda a Terra provou, nesse momento,

a loucura coletiva dos humanos!...

 

Por isso os genocídios, tantas guerras

como jamais o mundo vira dantes...

Assim cometa mais pálido prefiro

 

sem do conflito atômico nas esperas:

mas seu retorno não verei, em fulgurantes

réstias de luz, trazendo a morte em giro!...


KLIEG LIGHTS [REFLETORES] I – 4 JAN 07

a vida é uma ironia: são palhaços,
que ao invés de pulular no picadeiro,
fazem momices nas arquibancadas
e inda se julgam no centro do terreiro...

a vida é uma comédia: nesses traços,
talvez uma tragédia, ao derradeiro
piscar das luzes antes espocadas,
que só iluminavam por inteiro

aquele palco falso da consciência,
em que nos enxergávamos, falidos
em nossa imageria, que outros seres

percorriam na maior inconsequência,
enquanto nos mantinham, iludidos,
reflexos a gozar como prazeres...

KLIEG LIGHTS II – 8 MAI 15

e, ainda assim, pagamos para tê-los!
esses prazeres baços de outras vidas,
que nos mostram as telas, nas contidas
aspirações por vicariais desvelos...

pois eu não quero mais viver fantasma!
quero sofrer a dor que me entretece;
quero o prazer que aos poucos me envelhece
nesse concreto que a mim mesmo orgasma.

nesse mundo gentil e sibarítico,
que coalesce em torno, em sifilítico
contaminar impudico de emoções...

não quero mais esse prazer aidético,
de fazer versos apenas, no morfético (*)
despedaçar, em gangrena de ilusões...
(*) Referente à lepra.

KLIEG LIGHTS III

a vida de hoje está envolta nesse véu:
televisores e redes digitais,
só os estranhos percebendo no ademais
das cores falsas sob o mesmo céu,

que nos faz pressentir que existe, ao léu,
um outro mundo de vidas materiais,
porém que aqui não divisamos mais,
todo o analógico perdido nesse arpéu...

aqui as pessoas se limitam a mostrar
seja seus selfies ou alheia imagem,
sem ir nas ruas apertar as mãos,

só em eventos falsos beijos dar,
sem realmente inserir-se na paisagem,
nem entregar-se a outros corações!

KLIEG LIGHTS IV

presas assim nessa moderna zombaria
dos pixels, em constante renovar,
não são os mesmos rostos a mostrar,
porém novas imagens que se cria,

tão diferente de quando a gente ia,
nos fins das tardes de verão, passear,
com os amigos indo conversar,
nessa luz crepuscular que os alumia.

indiferentes mesmo, a pisotear
os milhares de negros cascudinhos,
em suicídio ao redor dos refletores,

para depois às casas retornar,
dos mosquiteiros a se esconder nos ninhos,
na breve fuga de seus perseguidores...

QUANDO O AEDO MENTE I – 04 jan 07

Assim me vejo, imaculado a medo,
por trás dos véus do aroma e do segredo,
no jogo das palavras, no penedo
das emoções arrojadas, no arremedo

da substância real, em que concedo
não saber exatamente em que degredo
se encontra meu destino, nesse azedo
perscrutar das estrelas, no levedo

que reflui dentro da taça de minha mente,
um reflexo de céu, sempre presente
nessa revolta quase onijacente,

que perpassa meus sonhos, inclemente
percepção de que a luz circunjacente
nunca revela o que o sonho meu pressente.

QUANDO O AEDO MENTE II – 09 MAI 15

Sempre que o aedo mente, é a verdade
Que transpira em seus versos: ele vê,
Contra o véu da mentira, a realidade
Que o mundo enxerga e, todavia, não crê.

Sempre que o aedo diz falar mentira,
é porque nele a verdade é manifesta:
na plena fantasia é que se estira
a única verdade que nos resta.

Pois quando o aedo peneira esse universo,
em que mente a verdade mais real,
na verdadeira metáfora nos diz,

que é na mentira que alcança o mais diverso
descrever desse mundo natural,
que só existe nos sonhos que ele quis.

QUANDO O AEDO MENTE III

Porque o Universo é farsa desconforme,
criada apenas por nossos sentidos:
não vemos o que existe e, nos ouvidos,
o som do sangue permanente dorme.

O nosso tato se arrepia ante o disforme,
o paladar e o olfato compelidos:
nossos suores os têm comprometidos,
cada sentido ao imaginar conforme.

Mas o aedo tem a sua intuição
e assim revela o que os outros negam,
por mais que estes afirmem ser mentira

e mesmo sem saber, traz à razão
o irracional, perante o qual se cegam
os que acreditam saber que o mundo gira.

QUANDO O AEDO MENTE IV

Já muita vez cruzei essa cortina,
minha pegada deixei sobre sua alfombra, (*)
abaixado, enrolei a própria sombra
e a enovelei no carretel da sina.

Dos sonhos desvendei a vasta mina,
pesadelo nenhum nela me assombra,
a minha própria verdade ali ressumbra,
quimeras passam por peneira fina.

Assim eu minto, como um bom aedo,
a criar e a decorar as epopeias,
os mitos, pouco a pouco, a transformar,

nas fantasias que para o mundo cedo,
no burlar multicor dessas ideias
que nem sei de qual abismo fui buscar!
(*) Tapete.

William Lagos
Tradutor e Poeta
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com


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