ABSORÇÃO – 13 set 2010
Duodecaneto de William Lagos
ABSORÇÃO I
Tirei das rodas de um
carro que passava
as mil volutas de sua
velocidade,
deixadas para
trás. É bem verdade
que nesse gesto
incúrio eu me arriscava
a perder alguns
dedos. Ela rodava
muito depressa, com
personalidade,
qual se tivesse até
mentalidade:
a dura roda que veloz
se rodopiava.
Por isso precisei, por
um instante
parar o tempo, que
toda a rapidez,
do mesmo modo que toda
a lentidão
são filhas gêmeas
de Chronos delirante;
e tudo passa assim
nessa dobrez
de que apenas os
humanos têm noção.
ABSORÇÃO II
O meu espírito eu
projetei, destarte,
contra o moinho do
tempo, que está em mim:
por um instante,
conservou-se assim,
a areia congelada em
malazarte.
Os dedos estendi, sem mais
descarte
e segurei o vento,
como um brim,
apenas pela ponta e
pude, enfim,
desenrolar da roda só
uma parte.
E repuxei o resto, que
deixara
atrás de si, nas
pedras de minha rua.
Deixei que o tempo
retomasse a sua
passagem inconsútil,
transitória,
enquanto meu novelo,
em pura glória,
eu enrolava na
minha sombra nua.
ABSORÇÃO III
Mas vejam bem por que,
nesta equação,
não é o tempo que se
busca puramente;
ele faz parte dos
termos, certamente,
mas se resume em sutil
aparição,
porque ele é rápido, de
feroz degustação,
contra a inércia que
no mundo está presente;
pois tempo e espaço
reduzem-se, somente,
ao polvorinho da final
decantação.
Não quero o tempo,
guardo ainda bastante
nas minhas entranhas e
no côncavo da mão,
nem quero reservar-me
mais espaço
de quanto é necessário
ao corpo arfante;
eu só desejo é a
energia da fricção
que escorre para traz
em sutil traço...
ABSORÇÃO IV
Pois apenas se
dissipa, em seu calor,
no combustível que o
motor encerra,
as entranhas
arrancando desde a Terra,
sem grande esforço e
sem qualquer pudor.
E tudo queima à toa,
em multicor
reflexo do espectro,
quando emperra,
em brando arco-íris
que a imagem ferra
em poça de óleo
derramada em desamor.
Tampouco busco esse
anel de sete cores,
que se refrata em
graxa ou gasolina;
o que eu quero é mais
a vida pequenina
que circula pela roda,
em estertores
e depressa se dissipa,
em triste sina,
ignorada pela ação dos
condutores...
ABSORÇÃO V
O que eu desejo é a
energia pura
que movimenta a roda
em seu correr;
roubar não quero o seu
locomover,
pois certamente ela a
girar perdura.
Tão logo à pausa do
tempo, presta cura,
o veículo volta a rua
a percorrer;
talvez nunca esse pneu
eu volte a ver,
nem sei se a câmara
desgasta ou um dia fura.
O que eu tomo é o
rastro abandonado,
esse fio de vapor mal
condensado,
fina película sobre o
calçamento
e enrolo esse barbante
a meu contento,
magro novelo nos dedos
de minha mão,
melífluo sonho de que
ninguém mais tem noção.
ABSORÇÃO VI
Quem me vê, não
entende isso que faço,
por que me movo ao
longo desta rua,
qual é o invisível que
enrolo na mão nua,
o que busco guardar em
meu regaço;
ninguém percebe que do
tempo esse pedaço
que arranco
firmemente, como grua,
de energia temporal
assim estua,
nessa incansável
captação do espaço;
e se ninguém, além de
mim, percebe,
não o estou despojando
de ninguém
esse bem que ninguém
sabe que tem,
que para mim concede
ardor bizarro,
cuja ponta em uma
cunha firme amarro,
para cravar no coração
o que sustém.
ABSORÇÃO VII
Esse ardor invisível,
bem depressa
é enxergado por mim e
ninguém mais,
absorvido e diluído em
sais
a percorrer-me o corpo
em senda espessa.
Por minhas artérias de
fluir não cessa,
perpassando as mil
veias naturais,
encapsulado nas redes
minhas neurais,
em que ao estado de
energia assim regressa.
E eu, que marcho bem
mais devagar
do que me acostumara
em outros anos,
bebo e mastigo tal
velocidade,
que assim me nutre e
afasta o meu penar,
a despertar em mim
sonhos arcanos,
qual o restauro da
perdida mocidade!...
ABSORÇÃO VIII
Se te parece ser tão
só imaginação,
para um momento em
qualquer esquina,
onde os veículos
derrapam em sua sina,
sem ter descanso, sem
ter satisfação;
repara como gira o
furacão
e deixa atrás de si a
nuvem fina
dessa energia sutil e
cristalina,
que se derrama sem
qualquer ostentação.
E embora não te
esforces, meu irmão,
um pouco dessa luz de
abstração
te penetra, também,
pelas narinas
e podes perceber que a
absorção,
mesmo quando para ela
não te inclinas,
se deposita entre os
alvéolos do pulmão.
ABSORÇÃO IX
E então dirás: mas
isso é a poluição,
provocada no queimor
da gasolina!
É muito mais que isso
a pluma fina
que te penetra até o
coração!...
Talvez nem saibas o
que te faz, então,
mas o teu corpo sabe a
que destina
e de que modo essa
energia se inclina
a renovar teus anseios
e emoção.
Porém se a rejeitares,
ao contrário,
te queimará por
dentro, no abstrato
corpo inconsútil que
hoje envolve o teu
e que de ti, sutil,
faz um retrato,
em suas cores
refletindo o teu fadário
e tudo quanto contigo
já viveu...
ABSORÇÃO X
Se não quiseres me
crer, pouco me importa,
pois recolho para mim
os meus novelos,
o combustível de todos
os meus desvelos
que me serve de
alambique e de retorta;
são mais sutis do que
a matéria morta
e assim os moldo com
mágicos martelos,
matéria viva de que
esculpo sonhos belos,
em fantasia que o
concreto não me corta.
Assim me encho de
energia na alvorada,
expando o tempo
através da madrugada,
expando o espaço para
meu farnel
e me acompanham em
qualquer momento:
quando percebo meu
enfraquecimento,
eu os devoro como o
pão e o mel...
ABSORÇÃO XI
Nem todos podem sorver
tal alimento,
tal qual o prana,
flutuando pelo ar, (*)
mas tenho gula dele em
meu cantar
e assim o busco, não
só no firmamento;
(*) Força mística que
mantém a vida em movimento.
em corpo nu pelas
calçadas me apresento,
aberto inteiramente ao
meu penar:
que essa energia me
possa atravessar
e me servir para total
renovamento!...
E é só por isso que
consigo produzir
bem mais que a maioria
em meu labor,
minha mente a revolver-se
nesse ardor,
sempre ansiosa por
tarefas concluir,
a empregar essa
energia abandonada
no combate da entropia
amaldiçoada! (*)
(*) Tendência a
espalhar a energia por igual pelo Universo.
ABSORÇÃO XII
E assim devoro, com
voracidade,
essa magia que nas
ruas morre
a cada vez que rápido
as percorre
qualquer veículo com
velocidade.
Deixam os outros que
se perca, na verdade,
indiferentes se a
energia forre
nosso planeta ou se no
ar escorre
por dissolver-se pela
imensidade.
Eu ao menos a
entesouro, com certeza;
desejo em húmus
transformar o lodo
e de vitualhas
encher-me, assim, até
que a possa distribuir
com mais nobreza,
neste poema que, de
certo modo,
sempre é uma forma de
profissão de fé!...
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