sábado, 1 de agosto de 2015




ABSORÇÃO – 13 set 2010
Duodecaneto de William Lagos

ABSORÇÃO I

Tirei das rodas de um carro que passava
as mil volutas de sua velocidade,
deixadas para trás.   É bem verdade
que nesse gesto incúrio eu me arriscava

a perder alguns dedos.  Ela rodava
muito depressa, com personalidade,
qual se tivesse até mentalidade:
a dura roda que veloz se rodopiava.

Por isso precisei, por um instante
parar o tempo, que toda a rapidez,
do mesmo modo que toda a lentidão

são filhas gêmeas de Chronos delirante;
e tudo passa assim nessa dobrez
de que apenas os humanos têm noção.

ABSORÇÃO II

O meu espírito eu projetei, destarte,
contra o moinho do tempo, que está em mim:
por um instante, conservou-se assim,
a areia congelada em malazarte.

Os dedos estendi, sem mais descarte
e segurei o vento, como um brim,
apenas pela ponta e pude, enfim,
desenrolar da roda só uma parte.

E repuxei o resto, que deixara
atrás de si, nas pedras de minha rua.
Deixei que o tempo retomasse a sua

passagem inconsútil, transitória,
enquanto meu novelo, em pura glória,
eu enrolava na minha sombra nua. 

ABSORÇÃO III

Mas vejam bem por que, nesta equação,
não é o tempo que se busca puramente;
ele faz parte dos termos, certamente,
mas se resume em sutil aparição,

porque ele é rápido, de feroz degustação,
contra a inércia que no mundo está presente;
pois tempo e espaço reduzem-se, somente,
ao polvorinho da final decantação.

Não quero o tempo, guardo ainda bastante
nas minhas entranhas e no côncavo da mão,
nem quero reservar-me mais espaço

de quanto é necessário ao corpo arfante;
eu só desejo é a energia da fricção
que escorre para traz em sutil traço...

ABSORÇÃO IV

Pois apenas se dissipa, em seu calor,
no combustível que o motor encerra,
as entranhas arrancando desde a Terra,
sem grande esforço e sem qualquer pudor.

E tudo queima à toa, em multicor
reflexo do espectro, quando emperra,
em brando arco-íris que a imagem ferra
em poça de óleo derramada em desamor.

Tampouco busco esse anel de sete cores,
que se refrata em graxa ou gasolina;
o que eu quero é mais a vida pequenina

que circula pela roda, em estertores
e depressa se dissipa, em triste sina,
ignorada pela ação dos condutores...

ABSORÇÃO V

O que eu desejo é a energia pura
que movimenta a roda em seu correr;
roubar não quero o seu locomover,
pois certamente ela a girar perdura.

Tão logo à pausa do tempo, presta cura,
o veículo volta a rua a percorrer;
talvez nunca esse pneu eu volte a ver,
nem sei se a câmara desgasta ou um dia fura.

O que eu tomo é o rastro abandonado,
esse fio de vapor mal condensado,
fina película sobre o calçamento

e enrolo esse barbante a meu contento,
magro novelo nos dedos de minha mão,
melífluo sonho de que ninguém mais tem noção.

ABSORÇÃO VI

Quem me vê, não entende isso que faço,
por que me movo ao longo desta rua,
qual é o invisível que enrolo na mão nua,
o que busco guardar em meu regaço;

ninguém percebe que do tempo esse pedaço
que arranco firmemente, como grua,
de energia temporal assim estua,
nessa incansável captação do espaço;

e se ninguém, além de mim, percebe,
não o estou despojando de ninguém
esse bem que ninguém sabe que tem,

que para mim concede ardor bizarro,
cuja ponta em uma cunha firme amarro,
para cravar no coração o que sustém.

ABSORÇÃO VII

Esse ardor invisível, bem depressa
é enxergado por mim e ninguém mais,
absorvido e diluído em sais
a percorrer-me o corpo em senda espessa.

Por minhas artérias de fluir não cessa,
perpassando as mil veias naturais,
encapsulado nas redes minhas neurais,
em que ao estado de energia assim regressa.

E eu, que marcho bem mais devagar
do que me acostumara em outros anos,
bebo e mastigo tal velocidade,

que assim me nutre e afasta o meu penar,
a despertar em mim sonhos arcanos,
qual o restauro da perdida mocidade!...

ABSORÇÃO VIII

Se te parece ser tão só imaginação,
para um momento em qualquer esquina,
onde os veículos derrapam em sua sina,
sem ter descanso, sem ter satisfação;

repara como gira o furacão
e deixa atrás de si a nuvem fina
dessa energia sutil e cristalina,
que se derrama sem qualquer ostentação.

E embora não te esforces, meu irmão,
um pouco dessa luz de abstração
te penetra, também, pelas narinas

e podes perceber que a absorção,
mesmo quando para ela não te inclinas,
se deposita entre os alvéolos do pulmão.

ABSORÇÃO IX

E então dirás: mas isso é a poluição,
provocada no queimor da gasolina!
É muito mais que isso a pluma fina
que te penetra até o coração!...

Talvez nem saibas o que te faz, então,
mas o teu corpo sabe a que destina
e de que modo essa energia se inclina
a renovar teus anseios e emoção.

Porém se a rejeitares, ao contrário,
te queimará por dentro, no abstrato
corpo inconsútil que hoje envolve o teu

e que de ti, sutil, faz um retrato,
em suas cores refletindo o teu fadário
e tudo quanto contigo já viveu...

ABSORÇÃO X

Se não quiseres me crer, pouco me importa,
pois recolho para mim os meus novelos,
o combustível de todos os meus desvelos
que me serve de alambique e de retorta;

são mais sutis do que a matéria morta
e assim os moldo com mágicos martelos,
matéria viva de que esculpo sonhos belos,
em fantasia que o concreto não me corta.

Assim me encho de energia na alvorada,
expando o tempo através da madrugada,
expando o espaço para meu farnel

e me acompanham em qualquer momento:
quando percebo meu enfraquecimento,
eu os devoro como o pão e o mel...

ABSORÇÃO XI

Nem todos podem sorver tal alimento,
tal qual o prana, flutuando pelo ar, (*)
mas tenho gula dele em meu cantar
e assim o busco, não só no firmamento;
(*) Força mística que mantém a vida em movimento.

em corpo nu pelas calçadas me apresento,
aberto inteiramente ao meu penar:
que essa energia me possa atravessar
e me servir para total renovamento!...

E é só por isso que consigo produzir
bem mais que a maioria em meu labor,
minha mente a revolver-se nesse ardor,

sempre ansiosa por tarefas concluir,
a empregar essa energia abandonada
no combate da entropia amaldiçoada! (*)
(*) Tendência a espalhar a energia por igual pelo Universo.

ABSORÇÃO XII

E assim devoro, com voracidade,
essa magia que nas ruas morre
a cada vez que rápido as percorre
qualquer veículo com velocidade.

Deixam os outros que se perca, na verdade,
indiferentes se a energia forre
nosso planeta ou se no ar escorre
por dissolver-se pela imensidade.

Eu ao menos a entesouro, com certeza;
desejo em húmus transformar o lodo
e de vitualhas encher-me, assim, até

que a possa distribuir com mais nobreza,
neste poema que, de certo modo,
sempre é uma forma de profissão de fé!...

William Lagos
Tradutor e Poeta
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com


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