HARMATAN – Duodecaneto
de William Lagos, 26/9/2010
HARMATAN I (vento quente do deserto)
Abeberei-me de ti. E me iludia
que me ajudasses no
alvo que buscava,
de ti chegasse a chave que chiava
no ferrolho enferrujado
em que vivia.
Abandonei-me a ti. Nessa elegia,
cada fibra de meu ser
se desmanchava
e novamente em novelo
se anelava
e em ti somente então
se entretecia.
Tudo por que? Porque te amei um dia
e nada foi-me igual à
fantasia:
adaptei-me, enfim, ao
teu pendor.
Que os acordes da guitarra
que ponteia
são fios macios da
mesma e imensa teia
que minhalma escolheu
chamar de amor.
HARMATAN II
A espera longa por quem
deveria
estar à espreita de meu
passo largo,
esse intervalo de tempo
tão amargo,
vou dedicando ao gelo
da poesia.
Emprego assim a hora
mais vazia,
no exercício vago deste
embargo:
de certo modo, sinto
que recargo,
no tempo inútil, a
inútil bateria.
Porém me sinto vivo. Quando lia,
nesses momentos de
sabor bizarro,
eu era os outros e nada
mais sentia,
salvo nas traduções, em que sou barro,
moldado pelos mortos,
em que narro
tão apenas o que o
sopro me dizia.
HARMATAN III
E que me diz o sopro
neste dia?
Que essa bebida no meu
sangue fez-se,
que o abandono a ti à
alma desce
e permanece mesclado de
embolia;
o quanto resta só meu,
envolto em prece,
contempla essa mistura
que se alia
ao que de ti procede e
ao que se via
longe de mim na
ausência que se esquece.
Houve uma mescla, sim,
bem mais que pele
e carne e sangue: a
mescla de vontades,
mais do que artéria e veia,
uma emulsão
nessa homogênea mistura
que nos sele
no mesmo lacre de
iguais identidades:
dois endereços para
igual paixão.
HARMATAN IV
Talvez possa parecer
até tolice
dessa temática tão
velha a repetência,
dizer guardar de ti
tanta insistência
que busquei descrever,
porém não disse.
É vã a tentativa e,
mesmo, ri-se
da descrença de amor a
quintessência,
que amor é essa
mistura, ambivalência
de pertencer àquilo que
mais quis-se.
Não existe uma
centrífuga que agite
amor nos corações por
separá-los:
é demasiada homogênea
essa mistura,
quando um na outra sem
querer habite
e a outra anseie por
apenas conservá-los
nos componentes mil da
essência impura.
HARMATAN V
Quando o harmatan
assopra, toda a areia
se ergue em turbilhão,
nuvem espessa;
o vento faz que
impressionante cresça,
enquanto a alma inerme
se incendeia;
sobe a capa do deserto
e forma a ameia
desse forte
imponderável, sem que meça
qualquer limite, por
mais que a alma o peça
e a nuvem sobe além do
que se creia.
A areia sobe do
deserto, duna e praias
e desce dos penhascos e
montanhas,
em seu inquieto e
permanente giro
e escorre assim, sem
muros e sem baias,
cobrindo firme
vastidões tamanhas,
enquanto o coração
morre em suspiro.
HARMATAN VI
E como a areia escorre
pelo vento,
vinda das fráguas e das
sepulturas,
a areia de meu sonho,
em tais misturas,
é levada pelo sopro ao
desalento;
vai-se minha vida nesse
sopro lento,
os ares trazem males e
suas curas,
levam os sonhos,
devolvendo agruras,
roubam a alma de mim,
se me apresento.
Mas os ventos que de
mim tiraram tanto
te envolveram também em
seu abraço
e furtaram de ti, na
mesma teia,
o riso, o beijo, as
lágrimas de pranto,
até reunirem em seu
vórtice de espaço
a poeira tua nos giros
de minha areia.
HARMATAN VII
É fato que essa areia de
meus dias
escorre lentamente e
assim nem sinto
que me pesem os
anos. Só pressinto
sentir-me o mesmo
nestas cercanias,
qual fui no
outrora. As minhas energias
são as mesmas de antes
e não minto;
talvez penas maiores
que não pinto
em imagem ilusória ou fantasias...
E ao mesmo tempo,
apesar de quanto fiz,
quanto alcancei em meu
dever sagrado
de esculpir a mim mesmo
pelo vida,
nunca atingi aquilo que
mais quis
e permaneço ainda
inadequado
para colher os frutos
dessa lida.
HARMATAN VIII
E quem me ler, se ler,
compreenderá
o que quero dizer
nestas sentenças?
Ou ao contrário, cada
um, em suas sabenças,
só o quanto lhe
interessa entenderá?
À luz dos próprios
sonhos, tomará
as minhas alusões e as
tais querenças
que um dia eu tive,
curtas ou extensas
sob sua própria medida
enxergará...
Por isso, é tão inútil
que a esses versos
ainda me dedique. É um tempo morno,
em que a alma se acende
e apaga o coração;
que os versos não são
meus, nem são perversos,
apertados anseios nesse
torno
que cada um aperta à
sua feição.
HARMATAN IX
Mas eu misturo tua
poeira com meu sangue
e dela faço um barro
iniludível,
barro de aurora em
pedra imperceptível,
barro de amor em
irrequieto mangue;
e nessa argila em que
minhalma enlangue,
dorme também tua alma
imarcescível,
nessa dança irrequieta
e imperecível,
a poeira tua com minha
poeira exangue.
E dessa terra batida eu
faço imagem,
estátua exótica em capa
de quimera
e a terra e o barro se
fazem esmeralda,
os dois reunidos numa
mesma calda,
vivificada ao sopro
dessa espera,
concreta sombra de
idêntica miragem!
HARMATAN X
Se te assombro ou
comovo já nem sei;
um mesmo sopro
transmitido em barro,
um mesmo barro
transmutado em sarro,
gólem de Eva abduzido
sob a lei
que me levou a
acolher-me à mesma grei,
mesma costela a que meu
peito amarro,
do mesmo leite que me
preencha o tarro,
mesma vasilha de que
teu seio é o rei;
nessa bilha de argila
eu me converto,
metade de meu pó,
metade a poeira
que o vento trouxe e
retirou de ti;
que não haja para nós
maior acerto
que essa mística mistura
derradeira,
no estranho amálgama em
que me derreti.
HARMATAN XI
Correndo o risco de
expandir demais
esta corrente azul que
me consola,
a imageria falsa que me
enrola,
a inspiração debruçada
no ademais;
correndo o risco de já
não saber mais
o que dizer no verso
que me esfola,
em que imaginação quiçá
se evola
nessa ilusão de imagens
materiais;
e me abalanço a
escrever outro poema,
sem mais metáforas a
escorar-me a pena,
sem mais oximoros que
te possam surpreender,
feito somente dessa
ansiedade plena
de partilharmos da
imaculada cena
em que teu beijo irá me
proteger!...
HARMATAN XII
Quer seja o vento o
acorde permanente,
lançando algures o
nosso violão
e que se multiplique
essa canção,
levando nossa poeira a
toda a gente;
que seja cornucópia
esse presente
de amor de barro em
cada coração,
que se estilha
facilmente pelo chão,
mas recompõe-se num
suflar fremente;
que tenha nosso amor
sabor bizarro
que embriague àquele
que nos via,
moldado pela poeira e
pó em jarro,
porém contendo néctar e
ambrosia,
que todo verso, no
final, é apenas barro,
calcado aos pés por
quem não o entendia.
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