GAROFAGIA E MAIS
William Lagos – 07-16 set 15
GAROFAGIA [beber salmoura] I – 6 jun 2007
Podado o coração, levei as veias,
em mortalhas de plástico, à calçada,
na aguardança da coleta já esperada
do caminhão que engole as coisas feias
que a humanidade lança, sem cuidados,
às ruas perturbadas pela história:
as belas coisas guardando na memória,
enquanto expõe ao mundo seus fundilhos,
como safra de véus esfacelados,
nesses recifes, de seus sonhos filhos...
Mas abriram os sacos, essa gente
que coleta garrafas e latinhas
e até vive de rendas tão mesquinhas,
na reciclagem feroz de ilusões mortas,
que tomou minhas artérias, complacente,
conglomerados dessas veias tortas...
Pensando fossem fios, meus capilares,
na cor de cobre de meus sentimentos,
no azinhavrado de meus pensamentos,
deixando os fios de sangue nas calçadas
ou a escorrer pelas vestes, alamares
da cor sofrida das vidas acabadas...
GAROFAGIA II – 07 SET 15
Não podei hoje, é claro, foi em Junho.
um dos meses sem erre, a seiva fraca,
que na ponta dos galhos já se empaca
e no meu coração fez igual cunho.
Choveu bastante nesse mês, fez frio,
o frio do Sul, não o do centro do país,
friozinho fraco, que algum gaúcho diz
enfrentar de calção e camiseta...
Não digo tanto, mas não me tira o brio,
nem me rola o coração pela sarjeta...
porém ficou lavado e bem menor,
veias podadas, podados capilares;
deixou o sangue de atingir vários lugares,
pois, realmente, o podei até demais
e o esforço das artérias foi maior,
minha pressão em alpinismos anormais...
Assim levaram meu sangue os catadores,
talvez pensando em fazer dele sarrabulho,
igual que ao da galinha faz-se esbulho
ou uma sopa, com trabalho recolhida,
em seu orgulho de trabalhadores,
que não dependem de uma bolsa garantida...
GAROFAGIA III
Ao perceberem que não eram fios de cobre,
como os tais da fiação elétrica roubados
e nem tampouco de plástico formados,
minhas veias mastigou tal gente pobre...
Tinham gosto de sal, gosto de ferro
e os infindáveis caprichos da memória,
lavados pelo sangue, vaza inglória,
a cada vez que a mente percorriam,
em privativo, calcificado enterro,
de tal forma que jamais se escreveriam...
E de repente, após tal refeição,
tornaram-se poetas catadores,
vendo no lixo os ódios e os amores
desperdiçados por rancor ou por inveja,
na indiferença da população
pelos dejetos em que mau cheiro adeja...
Pois quanta coisa absurda há nesse lixo!
Cartas de amor, CDs abandonados,
os plásticos, após serem descartados,
que até crianças confundem com balões,
que nutrição fornecem a algum bicho,
no pouco-caso de tantas relações!...
GAROFAGIA IV
Meus capilares brotam de seus olhos,
veias das faces e das bocas em protestos,
nesse lamento por forçados gestos
das “vidas secas” lançadas contra escolhos! (*)
(*) Hommage a
Graciliano Ramos.
Mas não existe mercado para versos,
mesmo naqueles que chegaram a estudar,
que a sociedade desprezou em seu forçar
a tais trabalhos que outrem não queria;
meus pensamentos, assim, tão só dispersos,
mesmo que um sonho ali despertaria!
Os sentimentos postos em salmoura,
igual que livros de versos descartados,
em reciclagem de papel aproveitados,
palavras moucas em tal absorção,
que nem sequer uma saudade doura,
por mais que tenham rasgado um coração!
Portanto, essa salmoura beberei,
sempre que os possa achar abandonados;
seus julgamentos destarte repudiados,
em fragmentos, pescarei de minha janela,
que em artérias de poemas mudarei,
na ilimitada eclosão dessa procela!... (*)
(*) Descascar da
tempestade.
RESSARCIMENTO I – 15 jun 07
ora, a vida não consiste em amealhar
o que aos outros parece puro e nobre,
mas em selar o vento, que recobre
a vasta multidão
da brisa e do tufão,
que nos envolve, invisível como um deus,
e transforma em aristocratas os plebeus,
capazes de sonhar,
ao se esforçar,
contra a força de tantas circunstâncias,
por ser bordada tão só de irrelevâncias
a vida alheia,
que nos meneia,
só de passagem, a cabeça em cortesia,
sem ver que estrela em nossa testa reluzia;
porém, ao vê-la,
como revela
esse rancor mortal quem não a tem!...
porque eu nasci com o dom da profecia,
mas nem eu mesmo ouvi quanto dizia...
RESSARCIMENTO II – 08 SET 15
minha profecia lembra assim a de Cassandra:
não dom de Apollo, porém de Dionyso,
no gargalhar constante de meu riso
contra a ironia
da troça e zombaria
que ainda me envolve, embora diluída
e que tanto desgastou minha longa vida,
sempre prevendo,
não me atendendo
os que pensavam saberem mais que eu
e quando enfim o que eu dizia sucedeu
sempre negaram
que ontem zombaram
de tantas coisas que apenas eu dizia;
bem ao contrário, tal gente afirmaria
ter sempre achado
o meu sonhado,
desprezando meu dom de salamandra,
por que eu nasci no fogo batizado,
sem pelo mundo ter jamais sido crismado!
RESSARCIMENTO III
na verdade, causei sempre desconforto,
antes mesmo das cascatas de poesia:
eram estranhas as coisas em que cria
de quanto lera,
muito aprendera
e surpreendia com minha cultura inútil;
levei décadas a entender como era fútil
mostrar ao mundo
saber profundo
em uma cultura baseada na pecuária,
outros valores de futilidade vária;
entre os que via
não pertencia
não tive terras, não dancei, nem procurei
misturar-me com a gente que encontrei,
nem na política,
coisa mefítica
e nem ao menos gostei de futebol
nasci plebeu, sem trono triunfal,
vendo nas artes coroa mais real.
RESSARCIMENTO IV
o dom de línguas primeiro revelei:
não me ensinaram grego, mas latim
dos rudimentos desenvolvi assim;
reuni museu,
pedido meu
mandei aos reis e demais chefes de estado;
juntei duzentas bandeiras do meu lado
e desfilei,
pequeno rei,
com meus alunos desfraldando pavilhões!
a inveja a despertar em corações;
regi coral,
numeroso e triunfal
e no meu palco vinte peças eu montei,
fui diretor e também participei;
500 mil selos
reuni nos meus apelos
e só depois iniciei composições,
a maior parte das quais virou fumaça
e que me resta senão rir dessa desgraça?
ONIRARQUIA I – 16 jun 07
no poleiro dos sonhos
existe hierarquia:
os pobrezinhos se ajuntam mais embaixo,
os sonhos médios bem no meio encaixo,
como bandeiras em luto permanente.
pois sabem só terão chance infrequente
frequente
frequente
quente quente
ente ente
os sonhos alpha,
que são os mais grandiosos,
se empoleiram no alto da armação
e seus dejetos despejam, sem perdão,
sobre os sonhos menores, inferiores
na hierarquia. quem sabe, superiores.
ulteriores ulteriores
pendores
pendores
predadores predadores
e não são os menores
que mais sofrem.
é sobre os sonhos médios que a sujeira
se acumula. tantas vezes. sorrateira.
os mais pequenos dos médios mal recebem
os seus restolhos, que menos se concebem.
supercebem supercebem
percebem percebem
fedem fedem
melhor, portanto,
apegar-se primeiro ao sonho grande,
por mais que se apresente no impossível:
seu apetite é sempre inexaurível,
pois quando a sonhos menores nos prendemos,
na sombra escusa dos maiores ficaremos.
comentaremos
comentaremos
e
tentaremos e tentaremos
não nos
prendermos não nos prendermos
ONIRARQUIA II – 09 SET 15
sonho no sono,
igual que os animais:
que fico a observar, sempre enroscados,
as ilusões dançando dos seus lados;
algumas vezes seus pelos se remexem
e sob as pálpebras as pupilas mexem
em sonhos REM
em sonhos REM
cientistas veem
cientistas veem
eles também
eles também.
sonho no sono,
acordo com frequência,
dos meus estranhos passeios a lembrar,
embora outros mal consiga recordar,
no manto envolto de outras realidades
em que percorro mil campos ou cidades
em meus desvelos em meus desvelos
sem pesadelos
sem pesadelos
tê-los tê-los
sonho acordado
no devaneio
em que planejo o transcorrer do dia,
vendo, porém, para minha desvalia,
que nem sempre conclusão alcanço régia
em resultado de tal estratégia.
o mais frequente
o mais frequente
é que outra gente
é que outra gente
meu dia assente
meu dia assente
mas sonho ainda,
quando acordado,
não mais buscando fugitivas glórias,
mas satisfeito com minúsculas vitórias,
que em versomemórias possa registrar,
antes que a vida venha a terminar
e sobrevivo e sobrevivo
no vasto crivo no vasto crivo
do verso altivo do verso altivo
ONIRARQUIA III
e destes sonhos
não partilham animais,
que se contentam em esperar a refeição
nessa morada em que criados são,
a não ser que dali percam os carinhos
e se percam então por descaminhos
em novas rotas
em novas rotas
buscando quotas
buscando quotas
se não adotas
se não adotas
a maioria
dessas mascotes
não sobrevive na ausência dos humanos;
devorarão uns aos outros, sem enganos,
especialmente os criados em sacrários,
bem atendidos por veterinários
por triste fato
por triste fato
com carrapato
com carrapato
terão contato
terão contato
e nem tampouco
as rezes e outro gado,
por mais que encontrem fácil o capim;
sem os humanos, surgirão assim
os seus antigos e contidos predadores,
mesmo matilhas de cães, novos senhores.
xucros apenas
xucros apenas
de tantas penas
de tantas penas
restam nas cenas
restam nas cenas
já os cavalos,
nobres crioulos,
provavelmente formarão as suas manadas,
nas pradarias sem cerca aquerenciadas,
sem precisarem, de fato, ser montados,
a dominar o pampa destinados,
pois sonhos têm
pois sonhos têm
e neles creem e
neles creem
também também
ONIRARQUIA IV
e caso exista
real metempsicose,
por animais nós somos responsáveis
que em nossos lares sejam encontráveis:
talvez um dia se transformem em nenês
com várias índoles (não sei se nisso crês),
pois só cogito
pois só cogito
um tanto aflito
um tanto aflito
o antigo rito o
antigo rito
que a mim promete
reencarnação,
mas retornar qual animal não acredito,
porém meus versos, em seu estranho grito,
talvez retornem como pequenas vidas,
na minha mente inteiras concebidas:
voltem quais flores
voltem quais flores
novos pendores
novos pendores
belos odores
belos odores
ou possam mesmo
retornar como animais,
concebidos que foram em meus sonhos,
sejam sensatos, terríveis ou bisonhos;
se forem lidos por olhar frequente,
quiçá retornem até mesmo como gente!
versos sonhados
versos sonhados
ressuscitados ressuscitados
seres alados
seres alados
só dependendo
de sua onirarquia
de qual a fonte que dentro em mim brotaram:
sonhos sem dono se materializaram
ou fui em que os sonhei inteiramente
e ao soltá-los no mundo, tão frequente,
sou condenado
sou condenado
desnaturado
desnaturado
a um triste fado
a um triste fado
AIODIA I [canto poético] – 16 jun 07
(Aiode,
Melene e Mnema eram três irmãs, mães das musas por
intervenção
de Apollo. Aiodia é um termo grego para
a ode dedicada
a
Aiode, mãe das musas da poesia; as três
chamadas Camenas pelos romanos.
Os
termos Melenia e Mnemia foram usados muito raramente.)
Tornei-me aedo, não por vontade própria
quis ser quis ter
não ser não
ter
esse talento, que em vate me tornou;
mas se algum deus assim me aquinhoou,
vou
ter vou ser
não
ter não
ser
obrigação de voltar-me para a imprópria
vida de quem vaticamente age;
pena de quem aedamente reage.
O que eu tenho, recebi da Providência:
não sou não tenho
eu
sou eu tenho
o gênio do poeta; sou maldito
com o dever que para outros é bendito
pois
escrever é meu
dever
sem antever o que escrever
o quanto os homens trazem na consciência,
porque sou vate:
por ser aedo.
AIODIA II (10 SET 15)
Mas não posso afirmar que não queria
não de fato
simples fato
até
brinquei e versejei
e assim abri esse cofre de Pandora,
cujos sonhos me acometem nesta hora:
só a esperança
só a esperança
e a irmã bonança e a irmã bonança
permaneceram no cofre do tesouro.
assim causei em mim mesmo tal borrasca
que a ponta de meus dedos hoje masca.
O quanto tenho, ganhei do atrevimento
Epimeteu titã e ateu (*)
o sonho
meu é que me deu
minha cisma perpétua de martírio,
despetalando diariamente o lírio
em frases
sem crases
em fases
sem bases
e foi assim que me tornei no que sou hoje
numa poética
feita de estética.
(*)
Epimeteu, irmão de Prometeu, Pandora convenceu a abrir o cofre.
AIODIA III
O que eu escrevo vem violentamente
abre caminho
caminho abre
com faca e
espinho com espinho e faca
a ode aos ais que já não cabe em mim,
ara terrestre em sacrifício assim
a meus
irmãos que humanos são
que humanos
são os meus irmãos
e só a eles se destina esta enxurrada.
e não à busca de dinheiro, glória ou fama:
é um sacrifício que o dia a dia proclama.
Em que não busco afirmar só o que acredito,
porém
dizer sem nem saber
sem mal saber o que dizer
o quanto o espírito dentro de mim denota:
se me recuso, sofrerei uma derrota
e novamente
o som ardente
faz-se aparente canto frequente
e se espalha pelo mundo, em majestade,
na cibernética
que não tem ética.
AIODIA IV
Mas nesse meio que tanta coisa aceita
a vida canto e louvo
tanto
o triste pranto e o salmo
santo
tendo esperança de algum bem fazer ao mundo
em contraposição ao fado imundo
que hoje poreja e a mente
aleija,
o verso adeja e a vida beija
uma mensagem trazendo a cada mente.
e se preciso escrever o que não sinto,
à mente que o precisa unguento pinto.
E a cada alma pingarei minha aiodia:
algo de frio algo de cio
algo de brio algo de rio
e a cada um que nela enxerga o que acredita
não se destina a palavra a ser bonita
nem a ofender nem
convencer
porém a ler para viver
pois para isso, enfim, tenho missão
sou picareta
da arca secreta
EM
PROJEÇÃO HOLÍSTICA I – 17 jun 07
Cateteres
percorrem os fractais
empós os
golpes sorridentes do martelo.
Não há
universo surpreendente e belo,
mas
multiversos presos no jamais.
A
quântica mecânica, em suas cabais (*)
demonstrações
nos indica esse modelo.
Mas estes
mundos, por todo o meu desvelo,
dificilmente
avistarei, são mais
(*) Exatas,
precisas.
os
artefatos da ciência. Ou filosóficos...
Sou
forçado a viver em plena Maya, (*)
que a
visão do real sempre me corta.
(*) O mundo
material, considerado uma ilusão.
E me
encadeia em reflexos utópicos,
em que
minha vida a iterar recaia,
na sombra
verde que estertora morta.
EM PROJEÇÃO HOLÍSTICA II – 11 SET 15
Cada mente constitui seu universo,
Enquanto forja faiscantes pensamentos,
no exterior só encontrando detrimentos,
qual latrocínio de predador adverso.
Na atmosfera cada qual disperso,
em contramundos, para seus abatimentos;
de seu domínio resultarão lamentos,
numa cloaca seu espírito converso.
E quando falam em tudo absorver
ou que “tudo que é humano lhes pertence”,
não têm em si a benevolência de Aretino, (*)
(*) Filósofo
italiano, autor dessa frase.
mas autocomplacência a demonstrar,
sob cada influência que os convence
a praticar mais outra vez um desatino.
EM PROJEÇÃO HOLÍSTICA III
Bem que queria conhecer mundos diversos...
Quando criança, acreditei que a ciência,
meio século depois, em sua sapiência,
permitiria na realidade ver conversos
sonhos utópicos de escritores, que adversos
consideraram infantis e de impotência...
Pois hoje vejo que alguma presciência
se comprovou, mas por motivos bem inversos.
A ânsia do lucro hoje nos impõe tecnologia,
mas até hoje não assisti a colonização
de outros mundos... nem sequer da Deusa Lua,
que já no século Vinte e Um esperaria...
Mas é tão tola essa vasta multidão
Que apenas busca a satisfação mais crua!...
EM
PROJEÇÃO HOLÍSTICA IV
Hoje
acredito que políticos intervieram,
logo
acabada a feroz competição
da Guerra
Fria... E com pesada mão,
contra a
NASA novos programas impuseram.
Alguns
satélites e telescópios concederam,
simples
brinquedos ante o ideal da geração
que do
cosmos desvendar a vastidão
tanto
esperou depois que à Lua desceram!
E ao
mesmo tempo corrompem o planeta
e o
superlotam com mais população,
sem conseguir
as consequências enfrentar;
talvez,
no fundo, com a ambição secreta
de uma
guerra de longa duração,
com que
seus cofres irão locupletar!...
ROSÁCEAS
MUTILADAS I – 12 SET 15
Palavras
raras em meus títulos emprego,
porém não
as inventei como heresia:
são
termos técnicos, em sua maioria;
não os
conhecem, porém não me arrenego.
Há
algumas que criei e isso não nego:
“sexor”
foi uma que frequente empregaria
por uma
fase de minha obra, em fantasia,
oposição
a “amor”, que ao mundo eu lego.
Talvez
mesmo a tenha visto em qualquer parte.
Por certo
“aiodia” já vi e “garofagia”,
embora
poucos há a beber salmoura...
Mas é
grega a mãe das musas e seu descante
parece
bem menor que o merecia
e em sua
memória de novo a pena a doura...
ROSÁCEAS
MUTILADAS II
Amo as
palavras de sabor arcaico
e também
estas que cientistas inventaram;
novos
fenômenos assim denominaram,
desconhecidos
para o público mais laico;
palavras
vivas, na cor do arco voltaico,
que novos
choques nas mentes provocaram;
não me
desgasto no que tantos já empregaram
e busco
termos no latim e até no hebraico.
Porque as
palavras de sutilezas plenas
que os
gregos inventaram a granel
são para
mim recamadas de poesia,
as quais
retomo, em renovadas cenas,
que
retirei uma por uma de um farnel,
cujo peso
assim mais me aliviaria...
ROSÁCEAS
MUTILADAS III
Pouco me
importa que recusem tal modismo,
porque
nos colos que as merecem cairão,
recostadas
bem perto ao coração,
para
legar-lhes um certo preciosismo...
Pois vivo
em tempos de analfabetismo,
em que
esse inglês de total mutilação
é
pronunciado pela jovem multidão,
do
português sem sentir o saudosismo,
em suas
rosáceas de explodidas catedrais
pelo
estridor de um rompante vandalismo,
seus
fragmentos rebrilhando nos caixilhos,
como as
palavras olvidadas no jamais,
substituídas
pelos termos de cinismo
que
facilmente pronunciam nossos filhos!...
areia dos
assombros I – 13 set 15
eu nunca
tive medo do futuro;
bem ao
contrário, sentia pertencer
mais ao
vindouro tempo do viver
do que ao
presente tido por seguro,
nem nunca
tive medo de morrer,
por mais
que o outro lado fosse escuro;
nunca o
tomei como um destino duro
o que,
afinal, precisa acontecer.
hoje
conservo a esperança ainda
de que as
cenas a que não assisti
melhores sejam
que cinzas do passado,
até o
momento em que a vida seja finda
hei de
querer esse fado que não vi
de
preferência ao velho tempo acumulado!
areia dos
assombros II
assim me
deixo escorrer pela ampulheta
passivo
servo da curiosidade
por novo
dia, em magnanimidade
ou luz
perversa a desvelar secreta;
maior que
seja a dor que o dia excreta
esse
porvir não traz em si maldade,
mostra
somente a indefectibilidade
que pouco
a pouco a areia desconecta,
nessas
mil lantejoulas espantadas
com que
me assombra, tésseras de vida,
caleidoscópio
ou dédalo em mosaico,
que não
prevejo, pela vida gotejadas,
uma por
uma, em sua calma despedida
a
desmentir todo profeta mais arcaico.
areia dos
assombros III
mas que
graça encontrar eu poderia
em um futuro
previsto inteiramente?
quero o
filme assistir completamente,
pois
levantar da plateia eu não queria;
a vida é
bela em toda a sua magia;
até
quando a moléstia nos assente,
quando a
dor se conhece frente a frente
tem mais
valor que o dom da fantasia;
assim
acordo cada dia a planejar:
algum
projeto talvez seja consumado,
a maioria
nunca a ser levada a sério;
por isso,
nunca comprei um celular,
o que tem
nele inteiro programado,
sem me
trazer uma só gota de mistério.
VERME DO VENTO I – 14 SET 2015
Não é que eu tenha cessado de te amar.
mas simplesmente que me
resguardo mais;
pois já me expus em sonhos
imortais
em que a vida não me quis coadjuvar...
Mas acredito que cessei de desejar
que fosses minha e que,
talvez, jamais
eu retorne a tais desejos
naturais
um certo grau de veemência dedicar...
Na verdade, até mesmo a inspiração,
de ti brotando em antigos
borbotões,
vi nas palmas de minhas mãos esmaecer...
De certo modo, esvaziei meu coração
e apenas busco nas
elocubrações
descobrir onde o desejo fui perder...
VERME DO VENTO II
Talvez o vento o meu sonho desbotou,
com um golpe de saraiva que
rugiu
contra o toldo de minhalma e
então luziu
em tal corisco que a ilusão queimou...
Talvez o vento minha quimera desposou
e para o seu refúgio a
conduziu;
posso dizer que meu amor
assim fluiu
e nessas fráguas de geada se alentou...
Muito maior que eu será esse amante,
furioso em seus desejos de
tormenta:
será um amor de chispas doravante...
Amor que a mente humana arrasa avante
e que, no entanto, de mim
brotou constante,
sugado aos poucos, enquanto a brisa
venta...
VERME DO VENTO III
E assim posso supor, em minha loucura,
que, desta forma, ao vento
fecundei;
pequenos zéfiros na ventania
gerei:
línguas de fogo de minha pena obscura...
Só posso desejar que a formosura
desse amor que em outro dia
desfrutei
e que durante o antanho já
gozei,
na atmosfera tenha plena investidura...
E lá se encontre meu amor transfigurado,
verme do vento, sal de cada
maresia,
olor da chuva temporã e serodia...
Numa ciranda pelos ares, qual tornado,
tempestade que inda no ar
tremeluzia,
por mais que a mim deixasse desolado!
ALMAS GEMEBUNDAS I – 15 SET 15
Vou colocar minha alma num cabide,
pendurada junto ao fraque e a meu
roupão;
por uns tempos, quero andar sem coração,
dar um descanso ao amor que em mim
reside.
Sem coração e sem alma só me incide
esse conjunto a que chamam de razão,
amálgama de memória e condução,
a criatura intangível com que lide...
É bem mais fácil supor que o sentimento
no coração se encontre pelo choque
ou calidez de seu consentimento;
descrente estímulo, veloz em passo
lento,
na obediência da consciência em seu
remoque,
que mais que o crime nos traz
padecimento.
ALMAS GEMEBUNDAS II
Assim ofensas realizadas em criança,
por remorso condenadas na ocasião,
foram marcadas pela força da emoção
ou por razão a nos ferir com abastança?
A quem pertence tal remorso, então?
Será que vem de um sentimento em
esquivança
ou é a consciência conduzida, sem
tardança,
por tribunais e meirinhos da razão?
O fato é que esse mal nos incomoda,
o coração agitado, em falcatrua,
por travessura mais ou menos inocente,
mas que da mente permanece à roda,
a nos ferir a calma, espada nua,
culpa sonora, que não dá descanso à
gente!
ALMAS GEMEBUNDAS III
E até que ponto causa tem esse gemido?
Algo passado pelo qual nunca perdoamos
a nós mesmos e sem parar nos acusamos,
nessa tormenta de um coração ferido.
Ou tal remorso na mente está escondido:
redes neurais nas quais nos envolvamos,
severo júri em que a nos mesmos
condenamos,
por superego por demais desenvolvido?
Ou o remoque é uma forma de prazer
que não queremos a nós próprios
confessar,
por termos violado algum dever
a nós imposto por alheia ordenação,
sob esse jugo o coração a rebelar
ou a mente a buscar sua afirmação?
VERME DA VIDA
I – 16 SET 15
Como é
difícil o real discernimento
entre aquilo
que requer nossa razão
e o
sentimento que provém do coração,
nessa batalha
sem compadecimento!
Porque ou
damos à emoção consentimento,
permeio às
brumas e falhas da ilusão
ou acedemos
ao raciocínio sem paixão,
régulo fero
do vital comportamento.
E qual dos
dois mostra dolo na disputa (*)
e qual dos
dois tem maior sinceridade,
qual será o
mais honesto em outrossins?
(*)
Malícia,falsidade.
E assim
oscilas no redemoinho da conduta,
em decisão
que dará oportunidade
à ilustre e
antiga saga dos sem-fins...?
VERME DA VIDA
II
Montamos
sempre em tal feroz dragão
que exige de
nós subserviência;
quantos
dilemas perpassam a consciência,
quantas dúvidas
em sua vasta oscilação!
Não obstante,
quem não sofre essa opressão
é quem mais
tem por si mesmo complacência;
sem
autocrítica, sem réstia de paciência,
encara ambos
com desprezo e sem paixão.
Algum
pretende ser apenas racional,
sem compaixão
e frígido no amor,
buscando
apenas o interesse material
porém a outro
a paixão conserva cego,
qualquer que
seja, gentil ou de rancor,
sem permitir
à razão qualquer emprego.
VERME DA VIDA
III
Quando a
razão te leva de vencida
as rédeas
dás-lhe, qual sensato condutor,
do teu
destino tornando-se o senhor:
talvez ao
abismo, em marcha desabrida!
Ou dás as
rédeas à emoção, razão perdida,
asas batendo
em seu voo furtacor,
empós desejo
que parece sedutor,
a ti mostrado
por tal verme da vida...?
São a razão e
a emoção bens corrediços
que
facilmente conseguem-te iludir,
mesclados
sempre, bizarros ou castiços,
enquanto
escamas chamadas de consciência
rasgam tua
alma, o vento a te zurzir,
nessa
inconstância a que chamaste inteligência!
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