CASSANDRA & MAIS
Novas Séries de William Lagos, 15-24 AGO 2016
(CASSANDRA, EVELYN DE MORGAN, 1898)
CASSANDRA
I – 30 SET 2007
Três
capacetes na mesa de minha sala,
pares de
luvas três, três precauções
contra os
minuanos de três estações,
três
cervejadas que a prudência cala...
Três imprudências
sob a chuva rala,
temeridades
três, três sensações,
três
aventuras, três enfrentações,
três
obstáculos, enfim, que se resvala...
Três
capacetes em que a boca emboca,
motocicletas
em que a vida invoca,
três
acidentes em que a sina ensina...
Três
sinaleiras que a loucura aloca,
três
derrapadas que a tocaia entoca:
morre o
rapaz e morre sua menina...
CASSANDRA
II – 15 AGO 2016
Três
profecias de uma profetisa,
três
contos tristes para um mau futuro,
três
negativas ante o avisar seguro,
três resvaladas
na rota em que se pisa,
três
cumprimentos daquilo que se avisa,
três
esguichadas de algum sangue puro,
três
imprudências pintalgando o muro,
três
ambulâncias de que já não se precisa,
três
corpos estirados sobre mesas,
três
bisturis as autópsias fazendo,
três
ataúdes para três destinos,
três
gavetas ocupadas sem surpresas,
três
esperanças em nada convertendo,
três
caminhadas de cortejos peregrinos...
CASSANDRA
III
Foi
Cassandra de Tróia uma princesa,
filha de
Príamo, que o reino governava
e de
Hécuba, a Frigia, que aceitava (*)
gravidez
após a outra, com certeza.
(*) Reino indo-europeu da Ásia Menor,
nordeste da atual Turquia.
Levou
Cassandra a Apollo sua beleza,
que no
seu templo a ela visitava,
mas a
corte desse deus não aceitava,
pois mais
que Apollo a buscasse com nobreza.
Um preço
então cobrou por seus favores:
que o Sol
lhe desse o Dom da Profecia,
Hélios
Apollo concedendo um tal clarão;
mas
recusou-lhe os beijos e lavores, (*)
traindo
Apollo que a troco lhe dizia:
“A tuas
profecias nunca crença te darão!”
(*) Curvas delicadas.
CASSANDRA
IV
E foi
assim. Apollo, em seu rancor,
mesmo seu
dom jamais a renegar,
envolveu-o
com um vasto enfumaçar,
sem que
ninguém lhe desse algum valor...
Porque
somente consequências de pavor
podia Cassandra
assim profetizar
e nem ao
menos as podia controlar,
mas
balbuciava em seu momentos de palor. (*)
(*) Palidez, desmaio.
Foi assim
chamada a “Profetisa da Desgraça”,
“por seus
cabelos ululando passa
o anátema
cruel” da incompreensão, (*)
(*) Citação de Castro Alves.
tal qual
se fosse ela mesma a responsável
pelo mal
que então proclama, irreparável,
tal e
qual se o tecesse com sua mão!...
CASSANDRA
V
Também
nós temos o Dom da Profecia:
sempre
podemos dizer, ao fim da tarde,
que irá
se pôr esse astro que nos arde
quando já
contra o horizonte se acharia.
Igual
podemos afirmar que cairia
um copo
contra o chão, com certo alarde,
se nossa
mão se abrir em tal aguarde
e que seu
liquido interior derramaria.
Ou que a
luz diminuiria ao se fecharem
nossas
pálpebras em pleno meio-dia,
para de
novo aumentar caso as abríssemos
ou mesmo
a nota que a seguir se escutaria
em
conhecida canção que nos tocarem
que a
executar nesse momento ouvíssemos...
CASSANDRA
VI
Mas ai de
nós! Certeza não teremos,
só conhecendo
as probabilidades,
muito
mais que as possibilidades
e os
acidentes destarte nós prevemos.
Porem
igual que Cassandra, sofreremos
com a
descrença das potencialidades
com que
incidentes se façam realidades;
por meio
algum os assim impediremos.
Da mesma
forma que é inútil avisar
a nossos
filhos sobre seus perigos,
pois com
sorrisos nos desprezarão...
Três
advertências assim a descartar,
três
consequências a que darão abrigos,
três
acidentes que ainda enfrentarão!
BIOTA I –
30 SET 2007
Amor percebo
qual um simbionte,
que se
alimenta de mim e me sustenta:
o meu
sustento amor sempre alimenta
e bebo
tal amor qual pura fonte...
De
natural beleza, no horizonte,
aberto
frente a mim, amor contenta
a alma
faminta que a emoção aguenta,
em
invisível passagem por tal ponte...
Entre o
concreto e a sombra, essa visão
que não
se vê e o coração preenche,
que não
se escuta e assoberba a mente...
Pois nos
devolve o quanto, em sua paixão
tirou de
nós primeiro; e que nos enche
desse
alimento vital e onipresente...
BIOTA II
– 16 AGO 2016
Entre o
concreto e a sombra existe o amor,
que não
se toca, por mais que nos abrace;
que muito
faltaria,se alguém abandonasse
esse
fluido de som sem estridor...
Todos
sentimos consequências do calor,
que nos corrompe
a alma em seu enlace,
interstícios
mil por que perpasse
e nos
penetre com impiedoso ardor...
Mas essa
sombra que nos cobre em véu
disfarça
a realidade e as ilusões,
bem mais
forte que o fragor das estações,
nesse
tumulto de culpa, qual de um réu,
quando te
vês do sentimento prisioneiro
e ao
mesmo tempo és dele hospitaleiro.
BIOTA III
Se afirma
ter a matéria três estados,
sendo o
sólido, o líquido e o gasoso,
mas entre
o sólido e o líquido há o pastoso
e são os
fluidos entre a água e o ar achados.
Se esvai
a cânfora pelos ares inspirados,
igual que
as velas ante o fogo luminoso
de seus
pavios contra momento tenebroso,
em
fluidos gases os círios transformados,
ainda que
parte em volutas permaneça
e sendo
os pingos derramados sobre espelho
ali erguerão
duplas figuras de cetim,
aqui um
castelo, mais além um escaravelho
e mesmo
um rosto que tua mente não esqueça,
mais
certo olor que o nariz penetre assim...
BIOTA IV
Biota é o
nome que se dá à totalidade
dos seres
vivos a recobrir a Terra,
flutuando
esses que o oceano encerra,
imensa
massa de total diversidade.
A gente
pensa ser a humanidade
preponderante
sobre vale e serra,
mas na
verdade só o orgulho nos emperra
de
perceber essa triunfalidade
da massa
imensa dos micro-organismos,
que compõem
noventa por cento do biota,
insetos e
aracnídeos nove mais,
enquanto
ao homem, com todos seus modismos,
só um
décimo por cento se denota,
muito
menos que às plantas e animais.
BIOTA V
Jamais
assaz no antanho numerosos
fomos nós
em nossas múltiplas plateias:
mesmo
entre nós combatendo as alcateias
e entre
si a digladiar-se os poderosos,
nossos
números de expandem, vigorosos,
sacrificando
embora as assembleias
das
árvores e das plantas de mil veias
ou de
animais e de aves desditosos.
Ainda
assim, somos nós anfitriões
de
bilhões de bactérias simbiotas
e outros
trilhões de gulosos comensais,
que nos
habitam em vastas multidões,
dos
alimentos a reservar-se quotas,
(mas para
nós metabolizam muito mais...)
BIOTA VI
Mas em
que parte da matéria é que avistamos
os
sentimentos em que se embasam os amores,
as
emoções que alimentam os rancores
e as mil
ideias que da mente retiramos?
Não
possuem sólidos nem líquidos reclamos
e nem são
feitos de gases constritores;
serão
pastosas as calorias dos vigores
ou serão
fluidas as quimeras que sonhamos?
Um outro
estado então partilharemos,
muito
mais vasto que o biota material,
formando
traços e atributos dos humanos;
e neste
mundo igualmente nós vivemos
em cada
instante de um certo amor real
ou quando
as próprias mágoas lastimamos.
CIMITARRAS
I – 05 OUT 2007
Eu vejo
nisto apenas frustração:
não saber
como querer o que se pode
nesta
vida; ou talvez, do que incomode,
como
livrar-se, em curta duração.
Eu vejo a
busca da velocidade,
por esses
jovens, como apenas medo
de se
inserirem mal em tal enredo
que
complexiza a vida em sociedade.
Somente
querem as máquinas do vento,
movidas a
cerveja, num portento
de
combustível de grande aceitação.
Em tudo
sendo apenas a zoada
da
vampiresca e inútil revoada
que só conduz
a maior desilusão...
CIMITARRAS
II – 17 AGO 2016
Confesso
até pensei na mocidade
em ter um
dia qualquer motocicleta
ou
‘motociclo’, palavra que se aquieta
nos
arcaísmos da antiga sociedade...
Mas nunca
foi verdadeira esta ansiedade:
por
outras coisas meu coração se inquieta,
só o
imaginou com intenção pouco dileta,
quando
apreciei foi a arte, na verdade.
Sempre
escutei uma voz dentro do peito
a me
dizer:”Não vai!” ante o perigo,
pois
dei-me mal quando a não obedeci,
Por toda
vida a tal proteção tive o direito,
sem de
fato saber por que consigo
ainda
guardar a proteção que garanti.
CIMITARRAS
III
Talvez me
tenham, realmente, preservado
para
cumprir esta missão de agora,
que de
meu peito se tornou senhora,
há bem
uns trinta anos de contado...
Para
outras vocações vi-me inclinado:
compus
centenas de canções no meu outrora,
dediquei-me
ao teatro e, em breve aurora,
tendo de
orquestras também participado.
Nelas
tocava diversos instrumentos,
sem que
chegasse nunca a ser solista,
sendo
intérprete apenas de conjunto,
menos
poéticos tão empreendimentos,
que
abandonei após terrível pista
de um
incêndio em que o passado foi defunto!
CIMITARRAS
IV
Presumo
agora que o terrível incidente
que minha
vida cerceou pela metade,
levando
quanto havia reunido até essa idade,
mas que
meu corpo preservou inteiramente,
foi então
prova da proteção fremente
que
projetasse a anterior atividade
tão só no
mundo da poetividade,
que antes
disso não era assim potente.
Em duas
metades me cortou a cimitarra,
mas pouco
a pouco refiz o material,
na mente
e carne sem sofrer o mal,
privado
assim de minha antiga amarra,
reconheço
que então muito lastimei,
porém de
fato libertou quanto eu guardei.
CIMITARRAS
V
Mas ao
redor percebo, não escutam
suas
vozes interiores muitos mais
e assim
se portam pior do que animais
que
contra seus instintos nunca lutam.
E a
despeito de seus erros, jamais mutam
seus
procederes mantendo artificiais,
sem
aprenderem as consequências naturais:
apenas
bebem e após, grosseiros, esternutam.
E nessas
máquinas se julgam os senhores
da vida e
estrada, jovens imortais:
somente
aos outros podem males advir,
até
cessarem finalmente seus motores,
inconscientes
suicidas em fatais
fugas da
vida, mas sem poder fugir.
CIMITARRAS
VI
São
ginetes de modernas cimitarras,
os ventos
a cortar com exultação,
adrenalinando
suas veias de emoção,
o mundo a
desprezar, em longas farras,
até o dia
em que encontram barras,
subitamente,
num instante sem noção,
perdida a
aposta da vida em exaltação,
enquanto,
Morte, sobre os tais escarras...
Muito
mais vale o azedo da cerveja
do que o
suor que do trabalho escorre
e a
cimitarra se abate, incontinenti,
quando
sua face o pavimento beija
e até a
imprudência dentro deles morre,
de
responsabilidades isentos, finalmente!...
RETORNO A
SÍBARIS I – 5 OUT 2007
Eu me
surpreendo a pensar como os antigos:
"Antigamente,
havia mais respeito..."
É a
contragosto que o ditado aceito,
que em
torno olho e vejo seus perigos...
Pois,
realmente, esta nova geração
foi
criada ao sabor de um estatuto
em que
direitos tem o seu reduto,
porém
deveres são lançados de roldão.
E fica
assim: uns se tornam delinquentes,
outros
drogados, ou bêbados frequentes.
E, se
algo tem em comum a juventude
é a
irresponsabilidade mais completa,
que a sociedade
por inteiro afeta,
sem que
ninguém sequer trabalhe ou estude.
RETORNO A
SÍBARIS II – 18 AGO 2016
Cidade
grega da Grécia Maior,
que na
Itália de hoje se acharia,
um rico
porto em que comércio se fazia,
com
grandes lucros para quem era senhor.
Muitos
escravos a sofrer o seu fragor,
já que a
nobreza de tudo usufruía,
no maior
luxo que esse tempo permitia,
gozando o
sexo e olvidando o amor.
Por isso
existe hoje o termo “sibarita”
para quem
procura apenas seu prazer
e se
limita em tal satisfação,
nessa
atitude infeliz que ainda visita
quem
nunca teve realmente de sofrer,
os bens
da vida derramados em sua mão.
RETORNO A
SÍBARIS III
Mas a
verdade é que estão insatisfeitos
esses
tais que são felizes na aparência
e que se
podem entregar à incontinência,
aristocratas
a afirmar os seus direitos...
Dificilmente
compreendem tais conceitos
como
igualdade,divisão e persistência
e se
desgastam até perder toda a potência,
tratamentos
a lhes surtir poucos efeitos.
Caso
inventário um dia façam do passado,
em nada
notam a marca que deixaram,
salvo
naquilo de que se aproveitaram
nesse
mundo por eles dominado
por seu
desprezo e tediosa crueldade
sobre os
que os servem com honestidade.
RETORNO A
SÍBARIS IV
Não me
refiro ao ricos, tão somente,
são mais
os filhos de gentes abastadas
ou que
roubam de seus pais pequenos nadas
para
gozar de qualquer vício conveniente,
usufruindo
da sociedade complacente
e
permissiva pelas longas madrugadas,
nessas
baladas tardiamente começadas,
que até
lhes trazem surdez em dom frequente.
E que
lhes resta, caso um dia a sociedade
se
revoltar perante tantos parasitas
a
consumir o que os demais produzem?
Acostumados
a essa longa ociosidade,
com que
preenchem assim horas malditas
da mesma
forma que os animais que rugem?
RETORNO A
SÍBARIS V
E qual é
o certo “estatuto” a que refiro?
Naturalmente,
é “o grande monstro ECA”,
que por
sua aplicação horrível peca,
os mil
valores da moral lançando em giro.
Esse
“Estatuto da Criança” aplica um tiro
sobre os
deveres – sobre os quais defeca!
A
Adolescentes de direitos leva a meca,
quando
adultos insistindo igual respiro.
Tal qual
tivesse realmente a sociedade
de ainda
tratar com a maior benevolência
esse que
estupra, espanca e mesmo mata,
acostumados
nesta triste negociata
de em toda
sua infração achar leniência
enquanto
rouba e a todos desacata!...
RETORNO A
SÍBARIS VI
De fato,
em breve, Síbaris sofreu
o que
seria um destino bem terrível,
sendo
atacada por vizinho irresistível
a quem
com pouca resistência se rendeu.
E o que
então aos sibaritas ocorreu?
Quem
vivera a gozar de luxo incrível –
foi
lançada à escravidão mais indizível,
essa
gente que da virtude se esqueceu.
Hoje há
ruínas que podem ser mostradas
aos
turistas, do Adriático nas praias
e nada
resta de seu máximo esplendor,
nem
restará das gerações sibaritadas,
após
sujeitas às portentosas vaias
desses
pobres que demonstram mais valor!
AMOR
DE CÂMARA XIII – 5 OUT 16
Eu
sinto a solidão como a palpável
parede
de sorrisos de indulgência
com
que encaro o mundo, essa paciência
de
longanimidade imponderável...
E
vejo o mundo assim, tal qual miragem
de
demiurgo, talvez... Em que me insiro
como
observador... Em que me inspiro,
ao
descrever dos outros a passagem.
Nesse
favor com que a mim mesmo acorro
e
beijo a própria imagem, que me beija,
nos
permanentes amores transitórios...
Que
então me levam a buscar certo socorro
nos
braços de quem sei que me deseja,
amor
fazendo aos acordes de Praetorius...
JARDIM
DO ESPANTO III (2006)
A
ARTEMÍSIA I
Não
me interessa provar desse absinto,
Que
de tantos poetas tristes vidas
Destruiu,
em miragens incontidas,
Nas
visões verdes de pavor retinto;
Nem
preciso da Erva de São João
Para
tratar meus males e minhas dores:
O
que preciso é do elixir de amores,
Que
mais feliz me tornasse o coração...
Porque
esta grande família de singelas
Flores
inclui o hipérico brilhante,
Traduz
remédio e licor alucinante;
Pois
dentro em mim, outro palor se estígia:
Cura
a si mesmo; e mostra. em frases belas,
O
amargo coração, tal que a Artemísia...
A
ARTEMÍSIA II – 19 AGO 2016
Jamais
eu precisei de me drogar
E
só única vez me embriaguei,
Pois
realmente de mim mesmo desgostei,
Sem
muito álcool novamente experimentar.
Sequer
tabaco algum dia fui tragar,
Salvo
uma vez no palco, em que mostrei,
Dado
o papel que então interpretei
Que
um cachimbo saberia preparar...
Pois
muito menos a Dama Maria Joana,
Que
hoje a esquerda tanto quer legalizar
E
que a direita só pretende condenar
E
mesmo o coro dos poetas que se irmana
Não
me induziu a orgias cerebrais,
Que
em alpha entro por meus meios naturais...
A
ARTEMÍSIA III
Não
necessito de outro combustível
Que
esse que me envia a embriaguez
Dionisíaca
– ou o dos beijos que me dês,
Querida
musa, de desejo inexaurível,
Tua
presença, mesmo sendo imperceptível;
Sobre
meus ombros as palavras lês,
Suavidade
e frescor contra minha tês,
Por
mais que sejas aos abraços intangível.
Porém
me assopras dos sonhos o vigor,
Possivelmente
bem tangível nesse plano
Onírico,
planejando o meu porvir...
E
no teu leito de plumas, com calor,
Tu
me recebes em teu amor arcano,
Que
no acordar ainda posso pressentir...
A
ARTEMÍSIA IV
Pois
é somente no teu seio envolto
Que
me sinto totalmente libertado,
Com
tuas cadeias a vogar em sonho alado,
No
qual despejo meu coração revolto,
De
sua gaiola de costelas enfim solto
Para
volver aos montes do passado,
Para
compor meu futuro atribulado,
Nessa
leve atribuição do seu indulto...
Por
que, então, deveria me drogar,
Mesmo
em planície de absinto verdigris,
Se
já me drogas nessa pura exaltação,
Quando
meus dedos permites deslizar
Bem
mais além do que esperava ou quis,
No
esmerilar perpétuo da emoção...?
JARDIM
DO ESPANTO IV – (2006)
A
TRADESCÂNCIA I
O
que eu sinto por ti, dia após incerto dia,
É
inquietação tranquila e vaga insegurança,
De
não saber quem és, na simples esquivança
De
quem mostrar-se bela deseja e nem sabia
Como
manter seu bem, a quem, trocando açoites
De
más palavras, ferozes, como pérolas
De
maus amores, ardentes como férulas,
Conservando
bem aceso o interesse e às noites,
Depois
de um dia de atroz digladiação,
De
ser uma mulher cruel e depois meiga,
Mostrar-se
dadivosa e ardente, nessa instância
De
uma incerteza certa, em pálida emoção,
Que
me converte a alma, na religião mais leiga,
Pacientemente
inquieta, tal como a Tradescância.
A
TRADESCÂNCIA II – 20 AGO 2016
A
tradescância não é mais que forração
A
preencher os espaços dos canteiros,
Os
seus vigores, contudo, interesseiros,
Logo
a cobrir assaz vasta extensão,
Se
a deixares livre nessa ação,
Sem
ser podada pelos jardineiros,
Mas
tendo a liberdade dos terreiros
Numa
conquista de bem fácil brotação.
Trapoeraba
também alguns a chamam,
Longas
lianas de pura suavidade,
Tão
fáceis de quebrar, na realidade!...
Porém
“se plantam” no lugar em que as derramam,
Bastando
um pouco de solo e de umidade
E
outras touceiras ali em breve se recamam...
A
TRADESCÂNCIA III
Mesmo
gentil, sabe bem ser persistente
E
assim se impõe, aos poucos, às rivais,
Reveste
as rosas de abraços maternais
E
as azaleias em conchegar frequente;
Mas
não afoga as outras, malquerente,
Apenas
as protege em seus ramais,
A
umidade conservando muito mais
Que
o solo aberto ao sol indiferente.
Alguma
é verde, sendo outra bicolor;
Existe
uma que chamam “fluminense”,
Em
tons pálidos de verde e de amarelo,
Doces
guirlandas tecendo para o amor,
Simples
tiaras que uma testa adense,
Do
que o loureiro num coroar mais belo.
A
TRADESCÂNCIA IV
De
modo idêntico, toda a inspiração
Que
à alma chega, qual doce torrente,
Nunca
me afoga, por mais seja frequente,
Só
me protege da excessiva trovação.
Em
titilares controla minha ilusão
E
me previne, qual faz bardo imprudente,
De
defender ideologia ingente
Ou
de expandir algum pendor de religião.
Mas
essa tradescância que me forra,
Cruel
às vezes, depois cheia de meiguice,
Controla
o fluxo e o gesto determina,
Embora
o sangue por meus dedos corra,
Seguem
tais versos a converter tolice
Em
doce canto para a dona de minha sina!
REGRAS DA VIDA XL (40) – 6 OUT 06
Retorne às
suas origens, vez em quando,
a retomar
contato com suas bases...
A vida te
demonstra tantas fases,
que é
importante se furtar ao bando
de tais
solicitações... Um meio brando
é voltar ao
lugar que foi o oásis,
em que você
cresceu, onde as diástoles
do coração vão
as sístoles calmando...
Retorne à
calma e pense em seu futuro:
quais as
coisas que, realmente, tem valor
e como irá
planejar o seu destino...
Nas ondas
mansas do porto mais seguro,
renove suas
raízes... nesse odor
alcandorado
dos tempos de menino...
[diástoles
são as dilatações do coração depois que as sístoles o contraíram.]
AMOR DE
CÂMARA XI (11) – 6 OUT 06
Eu nem me
esforço por teu amor concreto.
Abstrata,
és mais real... Posso forjar-te
segundo a
síntese de meu ideal secreto,
enquanto
a substância, ao contemplar-te
se escapa
a tal prazer, sob as pupilas...
E, no
entretanto, quando enfim te abraço
e, nesse
teu ardor, por mim cintilas,
teu dom
carnal preenche todo o espaço...
Como
endorfinas então o meu marasmo!
Tal como
a música, teu corpo me consola,
durante
os dias bons e os dias maus...
Pois me
renovo em ti, a cada orgasmo:
Sempre é
um antídoto, nesta vida tola,
fazer
amor com a música de Strauss...
JARDIM DO ESPANTO VI (2006) - A
PASSIFLORA I
Não busco minha vantagem: sempre faço
Quanto me pedem em favor dos outros;
Esqueço a recompensa e até estoutros
Prêmios do esforço com que me desfaço;
E o resultado, maugrado meu, é aziago:
Tal se esperasse o que pedir não peço;
Que adivinhem o quanto mais mereço,
Sem perpassar-lhes pela mente qualquer
pago.
Porque, se não cobrei, por que deviam
Retribuir-me em qualquer dote
monetário?...
"Obrigados" eu granjeio e me
devora
A expectativa do que talvez me
atribuiriam;
E só me resta tornar, em gozo
perdulário,
Mais complexas as flores, tal qual a
passiflora.
A PASSIFLORA II – 21 AGO 16
Meus sentimentos percebendo assim
complexos,
Como posso esperar que alguém me entenda
E que me possa partilhar dessa prebenda
Em que tantos dos demais encontram
nexos?
Se de emoções participo nos amplexos,
Sem que algo material a tais atenda,
Devo lançar sobre mim mesmo a reprimenda
Do sofrimento por mais terríveis vexos.
(*)
(*) Vergonhas, embaraços.
Da passiflora proclamam ser calmante
E apresentar os elementos da Paixão
Que foi imposta a Jesus, Nosso Senhor;
Mas nela vejo mais desenho delirante
De simetria radial, em profusão
Que nos deslumbra, na singeleza do
esplendor.
A PASSIFLORA III
Também a chamam alguns Maracujá,
Dos GuaranIs a seguir nomenclatura;
“Mburucuyá” é mais o nome que perdura
Nesses registros ameríndios que ainda
há.
Sendo servida em infusão ou em chá,
É apresentada como defesa pura
Da cefaleia, do nervosismo a cura
E se olhares nas farmácias, ali está,
Embora digam que sendo ressequida
Um pouco perca da inicial virtude,
Que deveria ser colhida desde o pé;
Mas outros dizem melhor seja consumida
Com Eritrina e Cratégus, menos rude
Que numa purga purificada até.
A PASSIFLORA IV
Mas é assim que age a passiflora,
Em seu desmanche a conferir virtude;
Que algo ganhe em troca, não se ilude:
Perecem flor e esperança nessa hora.
Não surgirá seu fruto após demora,
Nem semente lançará ao mundo rude,
Sem ter o fruto que em outra liana mude,
Em tudo igual à raiz do seu outrora.
Assim ela é colhida... e quem recorda
De agradecer à humilde trepadeira
Em qualquer cerca ou galho pendurada?
E quem ao dom da vida um dia aborda
Em gratidão pelos dotes de sua esteira,
Por mais se banhe em sua bênção
derramada?
JARDIM DO ESPANTO VII -- A AVENCA I
(2006)
Minha alma é forte e tem a resistência
De quem se acostumou a esperar nada;
E mesmo assim, esperou pela alvorada,
Que só lhe pode surgir por
persistência...
Retorna a cada dia; a vida é zombeteira:
Pendula a reluzir promessas transitórias
E a palpitar oscila, em seu pendor
de glórias;
Porém a permanência é muito mais
certeira
Nos dois pontos extremos que o pêndulo
completa;
A cada oscilação, assim, no mesmo
instante,
Logo suspende e hesita; e ao outro
se despenca...
A glória só reluz no centro dessa
inquieta
Fascinação fugaz, que me enche,
delirante,
De frágeis emoções, tremendo como a
avenca...
A AVENCA II – 22 AGO 16
Prospera a avenca em zona mais escura,
Frágil demais para o esplendor solar:
Sob essa luz é bem fácil seu murchar,
Em acastanhada e rápida loucura...
Por forte fora, nesse estado pouco dura,
Cessando em breve seu meigo tremular,
Somente ramos finíssimos a mostrar,
Sem sua ramada de folhagem pura.
Mas mesmo estando morta em aparência,
Se para a sombra transportares o seu
vaso
E lhe deres a umidade suficiente,
Muitas vez se renova essa potência
De planta humilde, reverente ao ocaso,
Em que tremula, límpida e inocente...
A AVENCA III
Contudo, se nenhuma luz houver,
Não sobrevive à plena escuridão:
Logo enegrece, sem maior pendão,
Nem exerce a oscilação de seu mister.
A doce avenca só o meio termo quer,
Nem muito escuro, nem ardência de
clarão,
Que suas folhinhas verde-claras são,
Gentis e meigas como unhas de mulher,
Quando se sente amada e protegida,
Sem se deixar destruir pelo ciúme,
Que então se fazem bastante pontiagudas!
Mas fica a avenca em seu umbral contida,
Sem nos mostrar trescalância de perfume,
Nem excesso de ambição para suas
mudas...
A AVENCA IV
Tal qual a avenca, minha vida conformei
No meio termo fiel de uma balança;
Peso demais de prestígio já me cansa,
Peso demais de desprezo lamentei.
Fica no meio o caminho que tomei,
Sem de uma esquerda enristar a lança,
Sem da direita conformar-me à dança
E sem tomar quaisquer partidos, viverei.
Meus versos mesmo nem publicarei;
Caso o fizesse, seria obra servil,
Não sua dedicação ao Criador,
Que não sou eu, tal qual sempre direi,
Não sendo mais que o escriba mais
gentil,
Tal qual avenca nas mãos do plantador.
VIVEIRO VIII -- A CACATUA I (2006)
A quem compararei o meu amor?
À pluma multicor da cacatua,
De olhar tão reluzente, em seu olor,
Que evoca a mágoa da promessa nua.
Porque é bela essa ave e quase fala:
Sua voz é rouca, estrídula, potente,
Não tem muito a dizer mas, persistente,
Repete a mesma frase e não se cala...
Quisera ouvir, que sempre repetisse,
Envolvido no encanto da plumagem,
No bico adunco, o verso que reclama
Meu coração, que mais queria ouvisse,
Esgotado o rigor da parolagem,
Que apenas reiterasse que me ama...
A CACATUA II – 23 AGO 16
Surgiu na Polinésia a Cacatua,
Das Filipinas e Molucas às Salomão,
Alegres pássaros de gentil coloração,
Porém cinzentos quando vistos sob a
Lua...
“Todos os gatos são pardos”, quando flua
Sobre eles de um lunar a esprateação;
Ficam as cores em perene mutação,
Sempre que expostas ao solar da rua.
Na maioria, são brancas essas aves,
Mas coroadas por variegadas cristas,
Iguais que velas de imponentes naves.
Psitacídeos sendo, aprendem fácil
A imitar da voz humana as pistas:
Grasnido rouco, mas de algum modo grácil.
A CACATUA III
Por sua beleza a ser muito apreciadas
Em mil viveiros à roda do planeta,
Cada zoológico com ambição secreta
De exemplares numerosos das aladas,
Pequenas maravilhas, quase fadas,
Surgidas no Pacífico, em que as afeta
Um clima favorável e refeição dileta,
Embora sejam pelo mundo cobiçadas.
Bem variadas as espécies que apresentam,
Com o mesmo bico preto ou acinzentado
(Das Licmetas a ser característico).
Algumas delas raramente se sustentam,
Pela frequência com que o pássaro é caçado,
Por seu aspecto vistoso e nobilístico...
A CACATUA IV
Descritas foram em mil setecentos e
noventa,
Por Brisson, um ornitólogo francês
Que a “Cacatua alba” como o tipo fez,
Porém Cuvier padrão diverso atenta,
Ao concluir que como tipo se apresenta
A Cacatua que em vermelho como grês
Mostra seu ânus, (ou outro nome que lhe
dês)
E com chamá-los de “Kakatoes” se
contenta.
Algumas se acham bem ameaçadas,
Tal como a Cacatua de Olho Azul
E a Cacatua de Crista em Parassol...
As Cacatuas de Cristas Amareladas
Já são bem raras nos Mares do Sul,
As Cristas Roxas conservando mais
farol...
A CACATUA V
Não tenho cacatuas no jardim,
Nem tampouco papagaio ou periquito,
Com alpiste a manter pássaro aflito
Da liberdade em privação assim.
Prefiro as fotos de tais aves-arlequim
E se as quiser, as gravações do grito
Que só com boa-vontade acho bonito:
Antes venha um rouxinol cantar pra
mim!...
Ainda que seja de um negror sem jaça
E que do olhar a atenção não prenda...
Há tanta gente que só em cor encontra
graça!
Porém Natura mostra a singular prebenda
De impedir que qualquer canto melhor
faça
O lindo pássaro que gerou já tanta
lenda!
A CACATUA VI
Destarte eu, tal como a cacatua,
Tenho a tendência de repetir
sobremaneira
Versos de amor, em emoção ligeira,
Que se enfileira junto à palavra nua,
Mas que em cada coração humano estua,
Amor de sonho ou pobre amor de feira,
Favor mesquinho ou emoção hospitaleira,
Que fere a alma com seu ferrão de
pua!...
E assim descrevo só o mesmo sentimento
Por tantos outros descrito antes de mim;
E de algum modo os termos surgem novos,
Em sua noção de embaralhar o pensamento,
Em sua loucura doce de carmim
Que sempre a mente demarcou de tantos
povos...
ECOS NA NEBLINA I – 24 AGO 16
O MEU PENSAR NA CACATUA AINDA ME INSPIRA.
SOBRE AS PALMEIRAS AS QUERO VER POUSAR,
PARTINDO COCOS DE PERMEIO AO CROCITAR,
IGUAL A AMOR QUE NO MEU PEITO GIRA.
POUCO ME IMPORTA QUE A PRÓPRIA ALMA FIRA.
ESSA EMOÇÃO PERENE HÁ DE FICAR,
CEM MIL ECOS NA NEBLINA A DESPERTAR,
QUE ESCONDE AS ILHAS EM VOLUTA E ESPIRA.
E PERMANEÇA DENTRO EM MIM A GOTEJAR,
NESSES TERMOS DE BATIDAS DESGASTADAS
SOBRE O VENENO DE POTÊNCIA E AGITAÇÃO
QUE AINDA ENCONTRO EM MEU VAGO CAMINHAR,
EM TANTAS VIDAS POR ELE ACORRENTADAS
NA NOSTALGIA DE TOTAL DECANTAÇÃO!...
ECOS NA NEBLINA II
É DOR PACIENTE, TAL COMO UM BISTURI
O DOCE ENGODO DA LINDA FALCATRUA;
PERCORRE A ALMA QUAL ADAGA NUA
E ACORDA A DOR QUE JÁ SE ACHAVA ALI.
AS DUAS SE ANINHAM, CADA QUAL POR SI,
BUSCANDO PERPETUAR SUA VIDA CRUA;
EM MELÍFLUA INSTIGAÇÃO A MÁGOA ESTUA
NESSA OUTRA DOR EM QUE JAMAIS EU CRI.
QUE DILACERA E RESSECA, DE IMPOTENTE;
FICA ESSA PENA AGREGADA À DOR MAIS
FORTE,
AGLUTINANDO-SE À OUTRA INTENSAMENTE,
FAGOCITANDO-A, EM PERMANENTE CORTE,
NOVO FRACTAL DE REPETIÇÃO IMPENITENTE
A GERENCIAR-ME TODA A FUTURA SORTE.
ECOS NA NEBLINA Iii
QUE ALGUM DISTANTE PARAÍSO PROCURASSE
PARA VIVER SÓ CONTIGO E TE ROUBASSE,
QUE ALGUM ANTIGO VELEIRO REFORMASSE
E PARA OS MARES DO SUL TE TRANSPORTASSE,
MESMO QUE TAL PARAÍSO LÁ EXISTISSE,
FORA DA ROTA DOS TUFÕES O DESCOBRISSE,
SEM TSUNAMI QUE MINHA ILHA RECOBRISSE
E ESSA VIAGEM SÓ CONTIGO EU CONCLUISSE,
AINDA SERIA TAL CENÁRIO UMA ILUSÃO.
NÃO É ASSIM QUE SE EFETUA A CRIAÇÃO
DENTRE A NEBLINA DE ALGUM LUGAR QUALQUER.
PORQUE NÃO BASTA SE AMAR EM VÃ PAIXÃO,
MAS OS ECOS ESCUTAR DE UM CORAÇÃO,
QUE UM PARAÍSO SÓ SE ENCONTRA NA MULHER!...
RECORDAÇÃO XX
Ela esfregou em mim negros cabelos,
Feitos de chuva e noite, tantos fios,
Que me varriam inerme em seus desvelos
E o corpo estremeciam, como frios
Dedos de geada; e recobriu-me todo,
Enquanto o ventre firme me envolvia,
Como um torno macio, como um engodo,
No perdurar do amor, em que sentia
Sua carne a palpitar, até forçar-me,
Na derradeira excitação do alarme,
A derramar-me inteiro, um alazão,
Que essa amazona firme cavalgava,
E um brado de prazer então soltava,
Quando meu sêmen chegou-lhe ao coração.
RECORDAÇÃO XXI
Este fato se passou no Canadá:
Era uma índia algonquina e hoje seu nome
Me surge na memória e depois some;
Nem faço ideia mais de onde ela está.
Foi em Yellowknife, no meio de um
inverno,
Cinquenta negativos... eu passeava
Com um grupo de amigos, só andava
Mesmo em turismo, nesse frio de inferno
Escandinavo, "Fimbulwinter"; e
a mulher
Encontrou-me num bar e me levou
Para uns momentos simples de paixão.
Nada pediu, nem um colar sequer:
Apenas me tomou consigo e se entregou,
Numa fugaz e meiga exaltação...
Recanto das Letras > Autores > William Lagos
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