segunda-feira, 12 de setembro de 2016





DISRITMIA OLÍMPICA
Duodecaneto de William Lagos (2008)

DISRITMIA OLÍMPICA I    (2008)

Contemplo o tempo e o tempo me contempla:
eu só imagino que esse tempo exista,
embora o tempo de existir insista
e me consuma, enquanto me destempla...

Retemplo o tempo e o tempo me retempla:
existe aqui, fato comum... Me avista,
como um retalhador; e o tempo enlista
quem tempo entelha e tempo assim entempla.

Na proteção do templo, assento as telhas,
na negação do tempo, assento as cinzas
e o templo me protege contra o tempo.

A vida passa e as telhas quedam velhas:
as cinzas brilham com estranhas luzes,
quando o tempo me contempla o contratempo.

DISRITMIA OLÍMPICA II

O contratempo do tempo é para-vento;
o para-vento do tempo é um bastidor,
que me separa das franjas de um andor,
mantido longe do olor do sacramento.

Perante o templo vestido me apresento;
trajo completo em tempo de calor,
a igreja até condena o meu candor
por esse templo que, afinal, sustento,

pelo temor do completo contratempo,
que me fará dormir por sob as cruzes:
perante as campas me apresento nu,

nesse momento em que me acaba o tempo
e meus olhos se fecham para as luzes,
e vejo que por mim ainda aguardas tu.

DISRITMIA OLÍMPICA III

Às vezes, eu me escondo em gemebundo luto
e então me refugio em moribundo nada,
os dias a perder-se em tremebundo cada
e as vozes do silêncio meditabundo escuto,

não mais que as vibrações de platibundo ducto,
que a recordar me levam a pundibunda fada,
às vezes pouco mais que vagabunda alada
em silvos que me tornam em furibundo bruto.

Eu mesmo em vida abundo a manejar a pá
que em leve curva abunda de cem palavras vãs
e recolhe, gentilbunda, as menos ofensivas,

por mais que pluribunda escorra a ideia má,
ainda é artibunda a solércia de minhas cãs,
disritibunda e olímpica às ilações lascivas...

DISRITMIA OLÍMPICA IV

Voltando imundo ao tempo moribundo,
não me cabe insistir em tantos neologismos,
no tema rubicundo de meus farisaísmos:
somente o coração escuto, ainda iracundo.

No ralo deste verso de empolgação jocundo,
não me cabe insistir em meus solipsismos,
meus versos deveriam, enfim, ser socialismos,
mas só em metáforas de mim os aprofundo.

São versos comunistas, tão só por ser comuns,
sem nada de esquecidos, porém sendo esquecíveis,
são versos socialistas que à sociedade entrego,

são versos nacional-socialistas como alguns,
são versos que perecem, alimentos perecíveis
que com todos eu divido e que a ninguém sonego.

DISRITMIA OLÍMPICA V

Algumas vezes, porém, me quedo a imaginar
se olho para o tempo ou é o tempo que me olha,
se cada dia espelha o que o tempo me desfolha,
ou se me fiz a imagem do primeiro contemplar.

Eu me olho no tempo, meu tempo a relembrar,
minha imagem antiga me foge e se me antolha,
do tempo leio o livro que lê-me em cada folha
de cinza-amarelado, de ouro falso a me pintar.

Será que em algum tempo no tempo, realmente,
eu fui a imagem crente que me recorda a mente
na imagem que me crês eu creio no talvez,

daquela que meus órgãos um dia se orgulharam
ou que tiveram nojo e no tempo a descartaram,
deixando no passado cada tempo por sua vez...

DISRITMIA OLÍMPICA VI

O tempo velho, penso, não passa de um espelho
distorcedor de imagem, tal qual esses de feira,
imagem de lisonja a espelhar-me lisonjeira,
imagens mais louçãs a apresentar-me velho!...

Não sei se o tempo vem ou ao tempo me destelho
ou se de um maneirismo o tempo me maneira,
se a pele descascou-me o tempo que se abeira,
se a vida descascou o tempo, qual um relho!...

Talvez, opostamente ao que teve Dorian Gray
o tempo me envelheça ao conservar-se moço,
o tempo fortaleça enquanto eu enfraqueço,

impondo-me a confiança em sua antiga lei,
pela qual pague um albor pelos dias de alvoroço,
o tempo a me aguardar na cova em que adormeço.

DISRITMIA OLÍMPICA VII

Mas afinal, por que tenho tal certeza?
árvore velha permanece em pé,
mesmo engrossando os galhos de sapé,
ergue-se o tronco com maior firmeza.

As tartarugas, ao sabor da natureza,
durante a longa vida crescem e até
seu casco engrossa a protegê-las, pela fé
de que perdure para sempre tal grandeza.

É de notar-se que as aves e animais
quando envelhecem, bem poucos sinais
demonstram de sua lenta decadência;

tombam as árvores com galhos ainda fortes,
os cães e gatos a mostrar-nos iguais sortes:
só dormem mais e perdem sua potência.

DISRITMIA OLÍMPICA VIII

Por que, então, precisamos, nós, humanos,
demonstrar tantos traços de velhice?
Há tanto velho que esquece até o que disse
e só se lembra de seus mais tenros anos.

Mas de que modo decifrar estes arcanos,
estes desgastes, a fraqueza e até tolice,
esse abandono da graça e da ledice,
mesmo daqueles que já foram os mais lhanos?

Será somente porque vivemos mais
que os animais que junto a nós criamos?
Ou porque já não moramos mais no mar,

no qual, dizem, ninguém morre jamais,
senão por acidente, enquanto nós ficamos
cá fora, diariamente a absorvermos ar?

DISRITMIA OLÍMPICA IX

Eu bem compreendo que há alguns fatores
que em nós influenciam toda a decadência:
expor-se ao sol, com excesso de frequência,
quando a pele desidrata e traz-nos dores.

Doenças temos, com seu séquito de horrores,
falta-nos paz ou não gozamos de prudência;
vento no rosto, a sombra da impotência,
influenciam também nossos pendores...

Contudo me parece que nossa senescência
é mais questão de culpa e até de escolha:
nós assumimos o dever de envelhecer,

quando os mais velhos, em nossa adolescência
furam, mordazes, do entusiasmo a bolha,
profetizando-nos igual desgaste e perecer.

DISRITMIA OLÍMPICA X

Talvez por isso, também, é que morremos,
não que essa morte nos seja obrigatória;
é mais questão de fé, na desultória
afirmação de que igualmente envelhecemos.

Quando bem jovens, até nos conteremos,
sem aceitar tal decisão peremptória,
mas corre o tempo nessa luta inglória:
mudanças vemos naqueles que escolhemos.

E não se livra nunca a sociedade
desse seu feio costume de morrer:
“Fui como és e serás como hoje sou”,

nos afirmam, com um sorriso de impiedade
e irá o próprio fim nossa mente conceber
a cada vez que nossa alma se enlutou.

DISRITMIA OLÍMPICA XI

Porém será isso mesmo necessário?
Será que a morte e sua irmã, a senectude
são algo mais que uma simples atitude
de aceitação desse mal atrabiliário?

Será que existe algum desejo perdulário,
sem esperança que conosco a coisa mude?
Será que existe algum grimório que se estude (*)
e nos ensine a nos furtar a tal ideário?
(*) Livro de Feitiçaria.

Todos os povos, afinal, têm as suas lendas
sobre os antigos de vidas imortais,
que ainda habitam no alto das montanhas,

ou que percorrem, disfarçados, nossas sendas,
pretendendo partilhar fados iguais ,
no desempenho de ardilosas artimanhas?

DISRITMIA OLÍMPICA XII

Seres olímpicos seriam assim, de fato,
que conseguem esconder a disritmia,
enquanto fingem ter a mesma desvalia,
a pretender uma doença, um desacato

articular; então escutam o sopro de um boato
e logo partem, até no próprio dia,
para um local em que ninguém os conhecia,
vida nova a iniciar com grande tato...

Algumas vezes simulando a própria morte,
deixando a herança à nova identidade,
que se apresenta então, qual neto ou filho

ou então filha, dependendo de seu porte
e assim prosseguem, através da sociedade,
dando início, facilmente, a um novo trilho!

DISRITMIA OLÍMPICA XIII

Porém suas vidas também passam por percalços;
É difícil se casar, uma vez que a companheira
ou o companheiro de sua vida inteira
perceberiam velozmente os sinais falsos,

que é muito raro descobrirem seus iguais
ou se os acharem, gostar deles. Assim, após
uns trinta anos, necessitam viajar sós
e então pretendem sofrer mortes naturais

em um lugar distante e dentro em urna
cinzas anônimas remetam para o lar
ou finjam um naufrágio em pleno mar,

ou um acidente no fundo de uma furna...
e logo após, cada um empreenderia
a nova vida, onde ninguém suspeitaria...

DISRITMIA OLÍMPICA XIV

Alguns pintam o cabelo, em precaução,
de branco, é claro; ou de certo tom grisalho;
raspando entradas, a pretender que é falho
seu pelo capilar, para melhor enganação.

Assim conseguem que o povo de onde estão
sinais descubram do tempo com seu malho
nos traços de seu rosto, sempre algum talho
de rugas leves a simular com perfeição.

Mas se têm filhos com mulher comum
dificilmente lhes darão essa vantagem,
embora saibam que não é impossível;

se por acaso os perceberem em algum,
o levarão em sua mudança de paragem,
tão logo aceitem sua disritmia como crível.

DISRITMIA OLÍMPICA XV

Porém não vão pensar sejam vampiros
os entes de que falo.  São seres humanos,
iguais que tu ou eu, porém sem sofrer danos,
seja da idade, da doença ou dos suspiros.

Nada os afeta, a exceção de faca ou tiros,
ou acidentes fatais, golpes insanos,
um veneno, quem sabe?  Ou mesmo arcanos
segredos que os perturbem em seus giros.

Mas certamente se protegem dos assaltos;
vivem modestamente, ainda que viajem
bem mais do que é comum. Assim, a olho nu

é difícil percebê-los, nem belos, nem mais altos
que a maioria, nos locais em que se engajem.
Talvez eu seja um deles... Ou antes... serás tu?

William Lagos
Tradutor e Poeta
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com
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