RENARD, O RAPOSÃO ESPERTO
(Folclore francês, cinco contos em adaptação de Jean-Marie
Garblass)
(Versão poética em formato de octetos por William Lagos)
Renard e o Lobo
Ysengrin ... ... ... 10/8/2016
Renard e o Galo
... ... ... 11/8/2016
Renard e Chanteclair
... ... ... 12/8/2016
Renard e o
Corvo Tiercelin ... ... 13/8/2016
Renard e os
Peixes ... ... ... 14/8/2016
RENARD E O LOBO YSENGRIN I – 10
AGO 16
Havia em França um esperto
Raposão,
a quem chamavam, é claro, de
Renard. (*)
Tinha sua esposa, Hermeline, no
seu lar
e dois filhotes de grande
agitação!...
(*) Raposa, em francês. Pronuncie “Renar”.
Era ardiloso, mas sem grande
ambição,
contentava-se a nos prados ir
caçar
faisões, tetrazes de excelente
paladar,
que para casa levava na ocasião.
Estava sempre disposto a negociar
e, se possível, aos outros
enganar;
dizer podemos que era um
comerciante.
Mas praticava tantas artimanhas,
nos demais a causar frequentes
lanhas,
que o julgavam bem mais como um
tratante!
Tinha amizade, desde a infância,
com um Lobo
de alta estirpe, entre os bichos
um Barão!
Ysengrin era seu nome e o capitão
(*)
do exército do rei, com grande
arroubo!... (+)
(*) Pronuncie “isangran”. (+)
Valentia, coragem.
Valente e corajoso, porém um
tanto bobo;
tratava-o Renard de “tio” e lhe
pedia bênção.
“Deus te abençoe, sobrinho!” – e
dava a mão
para beijar, em sua vaidade tendo
afobo...
Vivia o Lobo em uma ótima
choupana,
com sua esposa, a bela Dona
Hersent (*)
e três lobinhos alegres e
saudáveis.
(*) Pronuncie “Ersan”.
A visitá-lo ia Renard cada
semana,
qualquer comida filando de
Ysengrin,
os cinco lobos a mostrar-se muito
amáveis...
Ora, um dia, terminavam o seu
jantar:
Ysengrin havia caçado um bom
carneiro
que comeram até o osso derradeiro
e já pensavam em ir ao leito se deitar,
quando à sua porta veio bater
Renard,
rustido o pelo, magro e sem
dinheiro
e Ysengrin o recebeu,
hospitaleiro:
“Caro sobrinho, por que anda a
tropeçar?”
“Meu belo tio, de fato estou
doente...
Se me permite, quero um pouco
descansar,
a minha casa ainda fica a um bom
caminho...”
“Claro que sim. Por favor, aqui se assente.
Quer tomar algo ou apenas
conversar?”
“Quem sabe, apenas, dois dedos de
vinho...”
Dona Hersent serviu-o, bem
depressa.
“Já estou melhor... Desde ontem não consigo
comer nada, meu querido tio e
amigo...”
“Hersent, os rins e o fígado me
aqueça,
que eu ia comer antes de ir à
caça
amanhã pela manhã!” “Basta-me o abrigo,
o meu estômago está de mal
comigo...”
“Nada que um bom alimento não
desfaça!”
E assim, Renard comeu o desjejum
que Dona Hersent reservara a seu
marido
e percebeu numa trave três
presuntos,
mas Ysengrin não mencionara
qualquer um
como presente ao sobrinho tão
querido,
ficando os dois a falar de outros
assuntos...
RENARD E O LOBO YSENGRIN II
Fingiu o Raposo notá-los de
repente:
“Mas que lindos presuntos tem no
teto!”
Ysengrin ergueu os olhos, com
afeto:
“Minha reserva, quando o inverno
se apresente...”
“Mas deixa às vistas assim de
toda a gente?
Devia guardá-los em algum lugar
secreto!
E se algum amigo vem, mais
indiscreto,
e lhe pede alguma lasca, meu
parente...?”
“Ah, não darei! Nem sequer a meus filhotes!”
“Ora, meu tio, tens coração tão
terno...
E se aparece por aqui algum
ladrão?...”
“E a todos rouba, com dois
valentes botes!
Esconda em algum lugar até o
inverno,
em que possa conservar sua
provisão!...”
Logo a seguir, o Raposo
despediu-se
e esperou que a família
adormecesse;
saltou ao telhado, no lugar que
reconhece
estar a trave em que presuntos
viu-se...
Afastou do teto o colmo e
surripiou-se
os três presuntos... E para casa
desce.
A comida a seus filhotes logo
aquece;
de sua esperteza consigo mesmo
riu-se...
Para evitar qualquer possível
desconfiança,
foi visitar, na maior “cara de
pau”
a família cuja comida havia
roubado!
Bem satisfeito, ainda cheia pança,
em resultado de seu feito mau,
fingindo apenas estar passando
desse lado...
Achou os lobos na maior agitação;
foi logo entrando e indagou qual
o motivo.
“Caro Renard, algum ladrão
furtivo
furou-me o teto e me fez
espoliação!...”
“Como assim?” – perguntou o
espertalhão.
“Não está vendo? Meu teto está em crivo!
Roubaram meus presuntos! Algum esquivo
furou-me o teto e me levou a
provisão!...”
“Durante a noite? E vocês não acordaram?”
“Todos caímos num sono bem
pesado,
e já nem sei o que fazer
agora!...”
Os olhos de Renard se
entrecerraram:
“Meu caro tio, muito bem
representado!
Enganaria a qualquer outro, sem
demora!...”
“Como, enganar? Fui roubado, estou dizendo!”
“É assim mesmo que deve
responder!
Mas não me conte em que lugar foi
esconder:
que foi bastante esperto eu já
compreendo...”
“Mas, Renard! O meu telhado, não está vendo?”
“Claro, claro! Justo assim deve dizer,
que enganará a qualquer um seu
parecer,
mas a sua inteligência eu bem
entendo...”
“Quem furaria assim seu próprio
teto?
Escondeu bem, que lhe faça bom
proveito!
Só a mim que não engana! Tenho faro!”
“Os meus respeitos, senhor meu
tio dileto!
Só que o buraco bem menor devia
ter feito!
Desse tamanho, vai o conserto
sair caro!...”
RENARD E O GALO I – 11 AGO 2016
Chegara o inverno e Renard
passava fome;
Hermeline gemia e os filhotes
lamentavam,
o que comer todos em vão
buscavam,
mas era inverno, quando toda a
caça some...
“Vá nos caçar qualquer coisa que
se come.”
mulher e filhos ao Raposão
choravam,
porém nos prados as aves não se
achavam...
“Algo hei de achar que nossa fome
dome!...”
E foi troteando até o final do
mato,
onde sabia existir granja bem
dotada,
com capões, muitos porcos e
galinhas...
Cruzou a cerca no mais fácil
desacato,
mas bem difícil era apanhar a
galinhada,
protegida por aramado e grossas
vinhas...
Por sorte, só ali estava o
camponês,
bastante rico, por ser um
avarento,
mulher e filhos sofrendo algum
tormento:
tudo vendia para o melhor
freguês!...
A esposa fôra à feira desta vez,
para vender o que seria seu
sustento!
O que criavam era vendido num
momento:
mingau comeram e a salada que ela
fez!
Bertoult, que era o nome do
labrego, (*)
só queria mais dinheiro acumular,
porque mais terras pretendia
comprar.
(*) Leia “Bertul”. Labrego = camponês.
Porém, de fato, pelo ouro tinha
apego
e a cada mês aumentava o seu
tesouro,
sua família a tomar sopa de
couro!
Um galo velho atravessara o
aramado,
a que Renard tentou em vão caçar,
gritando o galo o seu cacarejar,
pelas galinhas sendo logo acompanhado!
Bertoult chegou depressa,
desconfiado
e duas redes em seguida foi
buscar,
logo prendendo o coitado do
Renard
e então trazendo um facão bem
afiado!
“Ah, Raposão, vais ser o meu
pelego!
Sobre tua pele meus pés vou
descansar:
tua carne dura vou picar para as
galinhas!...”
Mas quando o foi matar, num golpe
cego,
pôde Renard sua mão direita
abocanhar,
seus dentes firmes como duas
gavinhas!...
Quando Bertoult se tentou
desvencilhar,
para o pescoço a sua mordida
transferiu
e num perigo de morte ele se
viu!...
“Não me mate, por favor, Senhor
Renard!”
“Com teu facão pretendias me
matar!
Pois vou feri-lo igual que me
feriu!...”
“Juro por Deus!” – o labrego lhe
pediu.
“Pago-lhe o preço que decida me
cobrar!...”
“É verdadeiro esse seu
juramento?”
“Pelo Nome de Deus eu lhe jurei!”
–
disse Bertoult, já meio
sufocado...
“Por uma prova do que diz, neste
momento,
abra esta rede na qual eu
tropecei!...”
E de imediato da armadilha foi
livrado!...
RENARD E O GALO II
“Agora solte o meu pescoço! Estou sangrando!”
“Quero que pague sua vida com a
do galo!...”
“É um galo velho, só vai dar-lhe
um caldo ralo;
três galinhas lhe darei, estou
jurando!...”
“Eu quero é o galo que me foi
denunciando!”
“Eu dou, senhor!... Mas já estou
em grave abalo!”
“Se me atacar, eu primeiro irei
matá-lo!...”
“Sim, meu senhor, mas minha goela
vá soltando!”
Renard soltou-lhe o pescoço e,
bem depressa,
saltou bem longe do alcance do
inimigo!
Bertoult, porém, lhe havia jurado
bem sincero.
Mesmo sangrando, de perseguir não
cessa
o tal de galo. Renard saiu de seu abrigo
e o abocanhou, sem fazer mais
lero-lero!...
Assim, enquanto o labrego se
lavava,
escapuliu-se da granja,
velozmente,
o galo preso nos seus dentes,
firmemente,
a debater-se, porém não se
livrava!...
Vendo-se presa, a ave então
chorava!
“Amo Bertoult eu servi tão
fielmente
e ele me entrega, sem pena,
totalmente,
para o Raposo que antes me
caçava!...”
“Mas não percebe que lhe saltou a
vida?
Eu teria sufocado o seu
patrão!...
A sua função, destarte, foi
cumprida!”
“Deve o vassalo morrer por seu
Senhor,
a comprovar sua verdadeira
devoção,
pois só assim demonstrará sua
gratidão!”
“Sinto saudade de minhas pobres
galinhas!...
E quem irá toda a granja, em
clarinada,
despertar ao raiar da
madrugada...?
Não sentes pena dessas
coitadinhas?”
“Tenho pena é de minhas crias,
pobrezinhas!
Sua longa fome por você será
saciada...”
“Termino a vida nesta miséria
desgraçada!
Se o senhor ao menos recitasse
algumas linhas!”
“Qualquer verso que me enchesse
de coragem!”
Renard do triste galo se apiedou,
mas no instante em que a
mandíbula afrouxou,
o galo se escapou, tal qual vento
em aragem!
E sacudindo das asas a plumagem,
num alto galho já se
empoleirou!...
Nesse momento, escutaram uns
latidos
e Renard em cova funda se
escondeu.
Feroz matilha logo ali apareceu,
por alguns caçadores mal
contidos!...
Ficaram estes um instante
confundidos
e com um tiro, ao galo um abateu,
mas não sendo uma perdiz, se
arrependeu,
sendo seus cães, aos berros,
repreendidos!
De fato, andavam era atrás de um
javali...
Renard saiu depois de seu abrigo:
“Tu me enganaste, galo
espertalhão!”
“Mas teu castigo recebeste
aqui...”
E abocanhando, o carregou consigo
para levar à sua família a
refeição!...
RENARD E CHANTECLAIR I – 12 AGO
16
Mas de outra feita, foi vencedor
um galo,
chamado Cantaclaro ou
“Chantecler”,
que de Constant Desnos e sua
mulher (*)
vinte galinhas cuidava com
regalo!...
(*) Leia “Constan Denô”.
Ora, Renard se introduziu por
valo,
por ser de caçador o seu mister;
cruzou a sebe de proteção e dentro
quer
capturar uma das aves, sem
abalo...
Porém o valo havia sido obstruído
por pilha grossa de cem cacos de
telha
e ao cruzá-lo, provocou
estardalhaço!
Entre altas couves se escondeu,
mas percebido
foi bem depressa, por uma galinha
velha,
de Chantecler a mais constante no
regaço...
Seu nome era Pintada – e foi
depressa
prevenir a Chantecler, que se
encontrava
do outro lado do terreiro, em que
ciscava...
“Chantecler, chegue aqui com toda
a pressa!”
“Ora, Pintada, deixa-me em paz,
homessa!” –
Cacarejou, com expressão muito
antiquada.
“Chantecler, uma fera está
emboscada
por entre as couves e de
espreitar não cessa!”
“Cara Pintada, estás confusa ou é
histeria!
Foi nossa sebe recentemente
consertada,
sendo impossível que seja
atravessada!...”
Mas Pintada insistiu no que dizia
e então o galo deu duas voltas no
terreiro,
ao seu ciscar retornando, bem
ligeiro...
Mas por certa inquietação foi
invadido
e bem depressa voou para a
cumeeira,
a sua visão distribuindo, bem
certeira:
cada ponto do quintal sendo
atingido!
Parado num pé só, o olhar
comprido
de um olho, o outro fechado, toda
a eira
vigiando firme, mas a fera
sorrateira
também vigiava aquele galo bem
nutrido!
Em pouco tempo, Chantecler
adormeceu
e se engasgou com terrível
pesadelo:
em um saco vermelho era enfiado
e num laço pontiagudo se
prendeu!...
Da cumeeira ele saltou, no maior
zelo,
para Pintada a correr, bem
assustado!...
Rapidamente, lhe contou seu
sonho,
à sua galinha pedindo um bom
conselho...
“Mas isso é claro, Chantecler,
meu galo velho,
somente espero que seja algo
bisonho!”
“O que interpreto é fato bem
medonho:
da pele e dentes de Renard é
claro espelho,
a sua cabeça ele engole em veloz
relho,
seus dentes brancos o tal laço
assim tristonho!”
“Eu já lhe disse que ele anda por
aqui.
Acho melhor você tomar muito
cuidado!”
Chantecler pôs-se a pular por
todo lado,
mas acabou adormecendo por ali,
com um olho só, o outro ainda
aberto,
pois dentre os galos ele era o
mais esperto!
RENARD E CHANTECLAIR II
Pensando então que estivesse
adormecido,
Renard mais que depressa deu um
bote,
mas Chantecler desviou o seu
congote:
“Pensou em vão me pegar
desprevenido!”
“Meu primo-irmão, estou mesmo
surpreendido!
Nenhum mal vindo de mim será seu
lote!
Vim visitá-lo, quero escutar seu
dote,
jamais cantor melhor eu tenho
ouvido!...”
“Salvo o de Chanteclã, seu belo
pai...
Mas acredito que seu canto seja
igual!...”
E Chantecler soltou um forte
cacarejo!...
“Mas com um olho aberto, não se
vai
apreciar bem a sua potência
triunfal!...
Chanteclã fechava os dois, não é
gracejo!”
Chantecler fechou os olhos,
lisonjeado
e então Renard o seu pescoço
abocanhou!
E pelo valo da entrada se enfiou,
o pobre galo meio a meio
sufocado!...
Mas as galinhas ergueram um alto
brado
e toda a gente da granja despertou
e até Constant Desnos se
aproximou
para saber a razão do
desagrado!...
E lhe disse Pintada: “É o
Chantecler,
que foi caçado por Renard, o
Raposão!”
E logo foram organizar
perseguição,
mas daí que abrissem um portão
qualquer
Renard já era o senhor da situação,
longe demais para agarrá-lo
então!...
Bem recordava de ter sido
enganado
pelo outro galo, que comera só
por sorte!
Chantecler era animal de grande
porte
e na corrida já ia ficando bem
cansado!
Os camponeses, com cachorros do
seu lado,
caso o agarrassem, lhe dariam
pronta morte,
mas conhecido de cada atalho o
corte,
no seu trote ainda seguiu,
desesperado!
E à distância as vozes vão
ficando,
Renard ficando já tranquilizado,
o pobre galo a perder as
esperanças,
o seu pescoço apertado,
sufocando,
sem esperar ser agora resgatado,
os dentes de Renard iguais que
lanças!
Os camponeses bem atrás, sempre a
gritar,
e os cães perderam do Raposão a
vista,
pois escolhera de um riacho a
pista...
De longe ouvia: “Ele fugiu!... Que azar!...”
E Chantecler também tentou
cacarejar;
as suas penas, uma a uma, logo
enrista,
Renard, já bem seguro da
conquista,
bem tolamente ladrou: “Fugi!...
Que azar!...
Pois de imediato soltou-se
Chantecler,
Batendo as asas para um galho
alto!
Pensou Renard: A gente morre pela boca!
Pegar o galo outra vez ainda
quer,
sem alcançar o desmedido salto...
E arrependido, retornou para sua
toca!...
RENARD E O CORVO TIERCELIN I – 13
AGO 2016
(Esta história foi também
aproveitada por La Fontaine em uma de suas Fábulas.)
Certo dia, em que a fome lhe
apertava,
depois de correr muito e já
cansado,
deitou-se o Raposão, bem
estirado,
sob uma Faia, cuja sombra lhe
agradava.
Realmente, um bom lugar achava
para uma sesta... e ali teria
demorado
se não estivesse seu estômago
apertado,
sem encontrar a comida que
buscava!
Porém, naquele calor da meia
tarde,
foi-se deixando por ali ficar,
sem ter vontade de se levantar,
mas sem dormir, já que a fome
muito arde
e apenas água bebera o dia
inteiro,
sem achar sequer frutinhas no
terreiro!
Ao mesmo tempo, em granja próxima
dali,
Dona Brigitte seus cem queijos
cuidava,
sem notar que bem perto já
rondava
o Corvo Tiercelin, que farejava
por ali!... (*)
(*) Pronuncie “Tircelan”.
Tivesse visto que a ave estava
aqui,
seguramente ao ladrão ela
espantava,
mas no silêncio da tarde,
sossegava:
deixando os queijos, foi cuidar
de si...
E Tiercelin a sua chance
aproveitou,
para a corda mergulhou, num belo
salto,
pegando um queijo gordo e
saboroso!...
E na mais pura zombaria,
crocitou,
a subir muito depressa para o
alto,
a pobre velha no rancor mais
pavoroso...
“Traga meu queijo de volta, seu
ladrão!”
“Por que virou-me as costas,
desatenta?
A minha fome este queijo hoje
contenta!
Doravante, vá mostrar mais
atenção!...”
Muito alegre, ele voou sobre a
região,
com o alimento que em seu bico se
apresenta,
até uma Faia encontrar e em galho
senta,
ali pousando na maior
satisfação!...
Ora, por uma estranha
coincidência,
era essa a árvore sob a qual
nosso Renard
dormitava, ainda cheio de
preguiça...
Decerto algo aguardando com
paciência
que sobre ele fosse a sorte
derramar,
sem precisar empenhar-se em
grande liça!
Tiercelin se pôs feliz a debicar
o seu queijo amarelo e
gorduroso...
Uma migalha foi descendo, em voo
airoso,
junto ao focinho de Renard indo
tombar...
De imediato, já começou a
planejar
dele tirar não só o queijo tão
formoso,
porém caçar o próprio corvo
saboroso,
que a Malpertuis, seu lar, iria
levar!...
E foi dizendo: “Meu Compadre
Tiercelin,
trazes no bico um novelo de boa
lã...
Irás usá-lo para forrar teu
ninho?...”
“Olá, Renard!” – disse o Corvo,
desconfiado,
sem mencionar ter um queijo bem
salgado,
que por seu gosto comeria, bem
sozinho!...
RENARD E O CORVO TIERCELIN II
“Você ainda canta, meu sobrinho?
Sei que foi músico em sua
mocidade...
O seu pai, Rourd, ainda melhor,
na realidade, (*)
mas gostaria de escutá-lo só um
pouquinho...”
(*) Pronuncie “Rur”.
Tiercelin, que era um tanto
vaidosinho,
soltou um grasnido, com
ferocidade,
de machucar-lhe os ouvidos, sem
piedade...
Mas ocultando seu desgosto tão
mesquinho:
“Ora, bravo, Tiercelin!... Mas
seu novelo
de lã amarela não lhe atrapalha o
canto?”
Sentiu-se o Corvo ainda mais
embaraçado...
“Quero ouvir outra vez seu canto
belo!...”
Tiercelin abriu o bico, em seu
espanto,
caindo o queijo do Raposo bem ao
lado!...
Porém Renard fingiu então
surpresa:
“Ora, é um queijo! Pensei ser um novelo...
Realmente, um laticínio muito
belo,
mas o doutor me proibiu esta
beleza...”
“Recomendou-me boa dieta, com
certeza...
Comi uma lebre, sem tirar-lhe o pelo,
no meu estômago ficou dura como
gelo...
Pegue seu queijo! Em armadilha ficou presa
“minha pobre pata... Mal consigo
me mexer...
A minha sorte é que não se
quebrou,
mas tenho de deitar-me bem
quietinho,
“pelo menos até que pare de
doer!...
Pegue seu queijo!...” – de novo
lhe falou,
“Não se arreceie deste pobre
doentinho!...”
Tiercelin desceu do galho,
lentamente,
foi adejando com insegurança,
naquele espertalhão sem ter
confiança,
porém do queijo sua gula é mais
valente!
Pousou um pouco longe, bem
prudente.
“Ora, daí o seu queijo não
alcança!
Chegue mais perto, tenho cheia a
pança,
deixou-me a lebre grande azia
ardente!...”
E Tiercelin foi chegando, “de a
passinho”,
até seu queijo poder alcançar,
Renard ficando imóvel no lugar...
Então o Corvo avançou,
devagarinho:
“Você promete que não vai me
atacar?”
“Pois não vê que estou ferido,
meu sobrinho?”
Mas no momento em que chegou bem
perto,
deu-lhe Renard um bote repentino,
sem dor na pata... feroz e
assassino!...
Porém o Corvo mostrou ser mais
esperto,
pulando para trás, em salto
aberto!...
Só quatro penas, no salto de
inopino,
pôde Renard lhe arrancar, em
falso tino,
sem o Corvo sofrer destino
certo!...
“Queria me comer também,
traidor?”
“Só pretendia lhe dar abraço
amigo...”
“Não pensa que me engana,
espertalhão!”
“Fico com o queijo ao menos, meu
amor!
Nunca se esqueça do que diz
ditado antigo:
Perdão merece quem rouba outro ladrão!”
RENARD E OS PEIXES I – 14 AGO 16
Houve um inverno realmente
rigoroso,
comida sem se achar em parte
alguma;
Renard de fome em seu castelo
espuma,
porem o frio era lá fora
pavoroso!...
Dona Hermeline lhe disse: “Meu
formoso,
Furacerca e Malatesta já nenhuma
comida têm! De sair terás na bruma,
para a teus filhos trazer prato
bem gostoso!...”
“Ou mesmo algo de ruim que mate a
fome!
Não sentes pena de mim e dos
filhotes?”
“Pouco me agrada sair deste
castelo,”
disse Renard. (Ninguém contudo assim o tome:
era uma cova com muitos
biricuetes,
mas quente, seca e segura em seu
desvelo.)
Renard, de má vontade, levantou-se,
pôs o focinho para fora e
suspirou...
O frio do inverno logo a seguir
ele enfrentou
e para a estrada real
encaminhou-se.
Bem no meio do caminho ele
agachou-se
e com cuidado os ares farejou:
cheiro de peixe nas narinas lhe
chegou;
para artimanha então
aparelhou-se...
Assim que ouviu o ranger do
carroção
na estrada se deitou, bem
estirado:
com tanto frio, bem depressa
congelou!
Dois carroceiros chegaram na
ocasião,
um caminhando, em passo
compassado,
que da boleia o vento forte o
espantou!...
Viram o bicho deitado ali na
estrada
e imaginaram qual animal seria:
que era um lobo ou texugo
parecia,
tendo Renard uma forma
avantajada...
“Será que dorme ou morrera
congelada
essa tal fera que por ali
jazia?...”
Com o bico da bota um o atingia,
porém Renard pretendeu não sentir
nada...
“É uma raposa, maninho... Está
coberta
pela neve e parece mesmo
morta...”
A boca experimentou com seu
bastão...
Fez-se bem dura a criatura
esperta,
mesmo a causa esticada, em nada
torta.
“Morreu mesmo. Mas é sorte, meu irmão.”
“Essa pele nos dará um bom
dinheiro!”
“Então a ponha na carroceria;
lá na estalagem a gente a
esfolaria,
com garantia de um preço bem
certeiro!”
Havia barricas e muitos cestos em
poleiro,
estufados de peixes ou de enguia,
que na feira um bom dinheiro
renderia,
na sexta-feira seria o lucro bem
maneiro!
E Renard conservou-se todo duro,
tal qual se morto de fato
estivesse
e sobre os peixes foi assim
jogado!...
Dentro do toldo da carroça estava
escuro
e pela estrada manquitolando
desce,
ante a comida quase louco de
esfomeado!
RENARD E OS PEIXES II
De fato, era parcial o
fingimento,
com tanto frio, ele quase
congelara
e sem dificuldade se esticara,
a pretender um total
congelamento.
Mas na carroça encontrou
aquecimento,
já que a lona em toda a volta se
fechara
e do frio a pouco e pouco se
livrara,
ainda aguardando o seu melhor
momento...
E ao ouvir que os carroceiros
conversavam,
a calcular quanto a sua pele
renderia,
abriu os olhos e espiou o que ali
havia,
percebendo que os sacos mal
fechavam...
E com os dentes, logo um laço
desfazia:
cem lindos peixes ali dentro se
encontravam!
Logo se pôs a comer, sem mais
receio:
havia pescado, arenques e
sardinha,
namorados, linguados e tainha,
comendo tudo o que achava de
permeio!
Em dois minutos o saco estava
pelo meio
e mesmo assim, a sua fome era
daninha!
Breve do fundo do saco se
avizinha,
desesperado pelo saboroso
veio!...
E os carroceiros nada perceberam:
com toda a gana, ele comia
silencioso,
mas com as orelhas abertas e
espichadas!
Assim depressa os seus membros se
aqueceram,
mas continuava comendo, de
guloso,
de seu estômago as paredes
alargadas!
Julgou então ser o momento de ir
embora,
contudo estava cheio em demasia
e percebeu seria bem lenta a
correria,
sendo forçado a aguardar mais uma
hora!
Finalmente, escutando sons de
espora,
percebeu já estar perto a
hospedaria!...
Ficar mais tempo não mais
conseguiria!
Se ia escapar, deveria ser
agora!...
Devagar, abriu a lona da
traseira,
vendo os rastros da gaiola sobre
a neve:
muito longe se encontrava o seu
“castelo”
de Malpertuis... Mas era a hora
derradeira
e a enfrentar a jornada então se
atreve,
para a família carregando um
prêmio belo!...
Abriu o saco em que enguias havia
e enrolou quatro à volta do
pescoço;
um bom salmão mordeu em bom
retoço
e então saltou para a gelada
via!...
Um carroceiro escutou quando
fugia:
comera tanto que ficara
grosso!...
E perseguiu-o então o pobre moço,
porém Renard mais veloz que ele
corria!
Os infelizes ficaram no prejuízo
e Renard chegou à toca,
finalmente,
seu botim entregando à sua
família!...
Sabendo bem que ninguém, em seu
juízo,
o iria caçar em um frio tão
inclemente
e que em sua cova nem sequer um
galgo o pilha!
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