SHIRAZ
(3/11/2010)
Duodecaneto de William
Lagos
(TÚMULO DE SAADI, SHIRAZ)
SHIRAZ
I
Com dedos de renovo,
tocarei
de teus olhos nas duas
comissuras...
Em tua retina só
deixarei as puras
visões do bem que
contigo viverei...
As sobrancelhas, de
leve, seguirei
e todas as lembranças
mais impuras,
toda a imundície,
falsidão, agruras,
com dedos de renovo,
apagarei.
Depois, eu tangerei as
tuas pestanas:
de cada uma, tirarei
uma tristeza,
para que aos poucos,
sem notar, remoces...
Mas a saudade, em
que de mim te irmanas,
eu deixarei, sem
destoar de tua beleza,
para que as lágrimas
só te escorram doces...
SHIRAZ II
Eu tocarei nas outras
comissuras
que demarcam de teus
lábios os dois cantos
e delas tirarei marcas
de prantos,
as feições a tornar-te
menos duras.
Alisarei algumas rugas
mais escuras,
que se formaram quais
dobras de mantos
das vestes empoeiradas
desses santos
que vão buscar em
súplicas por curas.
Farei com que se
tornem mais suaves
essas marcas da feroz
melancolia
com que o tempo
sorrateiro te marcou
e tua boca será de
vinho as caves,
a tua saliva saborosa
da elegia
que em tantos beijos
já me embriagou.
SHIRAZ III
De carícias coroarei
os teus cabelos,
onde as raízes já se
fizeram brancas,
ante a vaidade, com
que só as muito francas
dentre as mulheres não
demonstram zelos.
Pelo meu toque manso,
em cem desvelos,
eu quebrarei do tempo
as duras trancas
e a cor devolverei das
velhas tranças,
antes que nelas
repousassem gelos.
Percorrerei assim cada
madeixa,
num gesto leve de
pressão sutil,
o crânio massageando
com carinho
e a melanina ali meus
dedos deixa,
a aquarelar qualquer
sinal senil,
enquanto os lábios
sorvo de mansinho.
SHIRAZ IV
Percorrerei tuas rugas
bem de leve,
pés de galinha no
canto de teus olhos,
sob as pálpebras a
rede dos refolhos
em que a vida
transmutar fácil se atreve.
E buscarei, com mais
um toque breve,
patas de aranha, do
nariz escolhos,
correndo para o queixo
e santos óleos
ali ungirei, da forma
que se deve
depor tiara na cabeça
da rainha,
e as fendas encherei,
uma por uma,
por um processo de que
eu só tenho o segredo,
para a beleza antiga,
que foi minha,
retornar a essa pele
que perfuma,
com gentileza, a polpa
de meus dedos.
SHIRAZ V
Indagarás, talvez, com
que poder
de ti eu posso afastar
senectude;
bem natural em ti essa
atitude,
nessa descrença de
todo o humano ser.
Afinal, vazias
promessas combater
faz parte da
experiência, sem virtude,
quando a memória a teu
passado alude,
de tantas falsas a
lembrança conceber.
Não obstante, minha
promessa é verdadeira,
porque possuo, realmente,
tal pendor,
que a muito poucos
outros satisfaz;
é inegável que a
promessa mais certeira
sempre foi feita no
mais sincero amor,
porque, afinal, sou o
Mago de Shiraz!...
SHIRAZ VI
Apenas julgas saber
esse que sou,
a quem chamas desde
sempre pelo nome;
porém minha vida no
passado some,
apenas fingi nascer
onde hoje estou.
O meu feitiço só aos
poucos penetrou
nessa lembrança que o
real carcome,
nesse mesmérico poder
que assim te dome:
somente eu sei de onde
venho e aonde vou.
Recorda apenas que só
me conheceste
quando mostrava talvez
quarenta anos,
com um passado mais ou
menos trágico,
mas meu viver anterior
nem percebeste,
envolto nos mil véus
dos desenganos:
vim de Shiraz no meu
tapete mágico...
SHIRAZ
VII
E é desse modo que
então conseguirei
apagar de tuas feições
qualquer estrago;
que o tempo, por sua
vez, também é mago,
quando aplica sobre ti
maldosa lei.
Porém mago mais
potente eu saberei
ser para ti com todo o
meu afago;
os passos de tua vida
não indago,
salvo no instante em
que te vi e então te amei.
Doravante, ao te doar
a juventude,
de ti não cobrarei o
menor preço,
nem condição impor de
grau fortuito;
amor poder comprar
ninguém se ilude;
por tal esforço só
anelo o teu apreço
e algum amor, se
queres dar, seja gratuito...
SHIRAZ VIII
Assim permite que as
dobras do pescoço
e aquelas que já
espiam sob o queixo,
que com a língua,
levemente, eu mexo,
possa apagar, ao me
dares teu endosso
que te torne
inteiramente o rosto moço,
se bem não penses que
da face atual me queixo;
o rosto humano é o
oposto a cada seixo:
eles se alisam
enquanto o nosso fica grosso.
Mas com beijos a minha
mística saliva
fará que a pele se vá
aos poucos hidratando:
perde a aspereza a
calçada em que se pisa
e assim o meu frescor
tua carne ativa,
a pele elástica de novo
se tornando,
pelo carinho que o
amargor alisa!...
SHIRAZ IX
E a epiderme já
marcada de teu colo,
no ardor do Sol e no
peso de teus seios,
eu saberei reerguer,
sem mais receios,
no movimento de cura
com que a enrolo.
Meus punhos são
esponjas e, sem dolo,
um linimento saberei
passar nos veios,
tua carne lisa
perlustrando nos permeios,
enquanto a polpa de
meus dedos eu esfolo.
Mas te transmito
minhas células perdidas
por estas mãos que
murros nunca deram
as suas falanges
evitando machucar
e destarte te darei as
sobrevidas
conservadas nestes
dedos, porque esperam,
desde outras vidas,
tua carne acarinhar.
SHIRAZ
X
Eu te busquei, sei que
foste uma odalisca
em meu palácio secular
de Baghdad;
amor maior do que esse
meu não há,
capaz de transfixar a
luz que pisca,
capaz de o tempo
transpor numa só risca
da cor do arco-íris,
que te encontrou já
na antiga vida em que
te amei por lá
e que à vida atual
chegar hoje se arrisca.
Só por anseio de ti, é
bem verdade,
pois tal coisa não
farei por ninguém mais,
a transmitir-te minha
imortalidade,
na atual encarnação,
que sem piedade,
já pretendeu te
macular, como as demais,
na zombaria que
intitulou Terceira Idade.
SHIRAZ XI
Descendo assim abaixo
de teus seios
teu coração eu
rejuvenescerei
e teus pulmões, sem esforço,
saberei
limpar dessa fumaça e
dos enleios
que aspiraste no
engano dos anseios;
também teu fígado e
teus rins eu poderei
tornar mais puros e
assim renovarei
as tuas entranhas em
todos seus permeios.
Dançarei em tuas
artérias e abrirei
esses caminhos que o
sangue percorria,
veia por veia te
desentupirei
e os ligamentos das
articulações
restaurarei em
idêntica magia,
pernas e braços com
todas suas flexões.
SHIRAZ XII
E finalmente, em teus
órgãos sexuais
penetrarei nestes
termos de minhalma,
as Trompas de Falópio,
em fresca palma,
assoprarei com meu
canto triunfal!...
Teu útero e os ovários
virginais
eu tornarei de novo –
assim embalma
a aplicação fantástica
da calma,
no restauro das
membranas naturais.
Total e inteira te
embelezarei,
a mocidade completa a
renovar,
assim causando inveja
a teu espelho;
e em meu espanto,
então perceberei,
que depois de tantas
graças te dotar,
a mim mesmo desgastei
e fiz-me velho!...
William Lagos –
lhwltg@alternet.com.br
Tradutor e Poeta – wltradutorepoeta@gmail.com
Blog: www.wltradutorepoeta.blogspot.com
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