domingo, 26 de fevereiro de 2017




OUAGADOUGOU – 21 DEZ 2010
Duodecaneto de William Lagos
(Para Maria Ferreira Guedes, sob um título absolutamente arbitrário).

                                            (Hylocharis chrysura)

OUAGADOUGOU I   (21 DEZ 10)  (*)
(*) Leia “Uagadugu”, capital de Burkina Fasô.

Improvável essa ave que revoa
entre as flores multicores do jardim;
infelizmente, não canta para mim:
um estalido seco apenas soa.

Não sei se assim pretende qualquer loa
ou prece breve... num louvor assim
desse sabor que encontra no jasmim:
grito de júbilo é o que talvez entoa...

Nesse ritmo de asas impensáveis,
verdadeiro helicóptero natural,
seleciona mansamente seu embate,

reluzindo em suas cores inefáveis,
escolhe a flor, em beijo temporal
e, de um só golpe, lança-se ao combate!...

OUAGADOUGOU II

De outras feitas se lança ao chafariz,
porém não molha as asas, com certeza,
apenas bica algumas gotas com leveza,
sem que interrompa o seu fluir de anis.

São verdes seus zumbidos, em feliz
combinação de singular lhaneza,
num reluzir de lamparina acesa,
cujo segredo descobrir eu quis.

Ninguém sabe como move suas asinhas
com tanta rapidez – sinto o chicote
do próprio estalo nesse seu chilreio

e somente com o néctar de florzinhas!...
Ou até, quem sabe? – para me fazer trote,
coma centenas de insetos de permeio!...

OUAGADOUGOU III

Um dia, contemplei pequeno ninho
escondido entre as ramas do jardim:
era uma casa aveludada assim,
com uma pérola fingindo ser ovinho.

A fêmea debicava, em estalinho,
toda assustada, em defesa contra mim,
que realmente nem pretendia, enfim,
sequer tocar no meigo ninhozinho.

Mais tarde, descobri que foram dois
os ovinhos que expusera em tal destino,
porem caíra um ao solo e se partira,

sem que pudesse fazer nada depois...
Cumprido o tempo, só um filhote pequenino
alça seu voo e pelo mundo gira...

OUAGADOUGOU IV

Mas outro teve um destino diferente:
eu o vi primeiro entre os dedos de minha avó,
ninho minúsculo com um ovinho só,
sem despertar qualquer paixão pungente

em quem roubara o ninho, até contente,
pois lho trouxera por um pão-de-ló,
nem minha avó sentira qualquer dó
ao receber tão singular presente;

tomou uma agulha, que aqueceu na brasa
e perfurou o ovinho com cuidado,
como agente indiferente de seu mal,

de que o ícor escorreu, amarelado,
e após secar, o trouxe para casa,
como um enfeito para a árvore de Natal!

OUAGADOUGOU V

E me explicou, com naturalidade,
que  o ovinho assim fora esvaziado
para poder melhor ser conservado,
como um enfeite de real vivacidade;

posso depor que tal coisa foi verdade,
anos a fio sendo ele pendurado,
ovo vazio em seu ninho entronizado,
como um enfeito natalino sem maldade.

E nesses dias, ao celebrar o nascimento
de Nosso Salvador, surgiu a morte
do beija-flor que nunca viu a luz,

na mesma indiferença ao sofrimento,
mostrada pelo povo à fria sorte
que finalmente acometeu Jesus.

OUAGADOUGOU VI

Contudo, sempre há justificação
para a morte do Cristo.  Diz a Igreja
que esse vinagre a que Jesus não beija
é mais um símbolo da purificação,

sendo precisa uma tal morte, então,
qual sacrifício que à humanidade enseja
reto caminho... que ao Paraíso veja,
já prometido desde a Criação.

Mas por que faleceu o beija-flor,
todo esvaído em clara amarelada,
só para ser um enfeite pequenino?

E tudo relembrei, em claro horror,
nesta memória apenas vislumbrada
que ressurgiu dos tempos de menino.

OUAGADOUGOU VII

Percebam bem não ser mulher cruel
essa minha avó de há muito falecida;
bem ao contrário, era justa e comedida
e adorava cozinhar bolos de mel;

mas às galinhas não sabia dar quartel,
quando alguma era bem gorda percebida,
que as degolava, a sangueira recolhida
e arrancado, com destreza, o fel.

Depenado o animal, em sua nudez,
prendia fogo numa folha de jornal
e chamuscava, com cuidado, o corpo inteiro,

para queimar esses restos, em que vês
os vestígios das cânulas, mal e mal, (*)
antes de a abrir, em talho derradeiro.
(*) Os cabos das penas.

OUAGADOUGOU VIII

Era minha avó bastante habilidosa
no que chamavam “trabalhos manuais”;
apresentava muitos dotes naturais
para fazer enfeites, cuidadosa,

acostumada, desde jovem e formosa,
a tais atos perfeitamente naturais
de perfurar os ovos de animais,
a clara e a gema retirando, carinhosa,

pois depois tal conteúdo aproveitava
para merengue, para fazer gemada
ou omelete, ou talvez usar em bolo;

secos os ovos, neles desenhava
e os pintava em aquarela, dom de fada,
novo recheio de algodão como consolo.

OUAGADOUGOU IX

Até hoje conservo os alicates,
as puas e sovelas delicadas,
com que moldava arames para fadas,
reis e rainhas, pastores e açafates... (*)
(*) Cestinhos de vime.

Com algodão revestindo seus engates,
em cola as brancas carnes mergulhadas,
com fios de lã e retalhos adornadas,
as mãos lavando concluídos tais embates...

Rostos bem nítidos em minha lembrança ainda,
cada traço dos semblantes pespontado,
com que ao menos dois presépios preparou,

sem que a tarefa desse assim por finda,
fez camelos e ovelhas, anjo alourado
e até mesmo um elefante ela criou!

OUAGADOUGOU X

Por que razão, algum pequeno beija-flor
me trouxe tais lembranças de minha avó,
longamente emaranhadas em cipó,
até da cola rememorado o olor?

E após recorde essa visão de horror
da galinha degolada sem ter dó,
a correr pelo pátio, qual se o nó
de sua vida mantivesse seu vigor...

Esse fiapos da memória exangue
que bem cedo me fizeram rejeitar
todo o tipo de carne e a recusar

os sarrabulhos das refeições de sangue
pingado da galinha, que vira disparar,
sem sequer mais conseguir cacarejar!...

OUAGADOUGOU XI

Talvez hoje eu só esteja a relembrar
que mesmo por me achar vegetariano,
quantos ovos consumi, ano após ano,
em omeletes, em merengues, sem pensar

que cada um poderia originar
outro pintinho, amarelado e lhano,
ou imaginar até o ato desumano
de omelete de beija-flor tragar...

Afinal, também ovos de avestruz
minha avó esvaziava para usar
em seu trabalho cuidadoso de artesã

e meus receios do inconsciente expus
que alguém viesse a mim mesmo esvaziar
para algum tipo de omelete temporã!...

OUAGADOUGOU XII

Enfim por que me deveria dar espanto
essa omelete feita só de beija-flor,
que suas línguas de minúsculo sabor
comem chineses até hoje, sem que o canto

aprendam a incluir no próprio pranto;
ricos romanos, em seu cardápio multicor
esses linguinhas incluem sem temor;
e se adorna com as peninhas algum manto,

mesmo hoje, para reis dos africanos
(em Zâmbia existem muitas variedades)
e que tolice a minha me inspirar

a descrever como atos desumanos
esses atos indiferentes de maldades
que minha avó costumava praticar!

William Lagos
Tradutor e Poeta – lhwltg@alternet.com.br
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com
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