OUAGADOUGOU – 21 DEZ 2010
Duodecaneto de William
Lagos
(Para Maria Ferreira Guedes, sob um título
absolutamente arbitrário).
(Hylocharis chrysura)
OUAGADOUGOU
I (21 DEZ 10) (*)
(*) Leia “Uagadugu”, capital de Burkina Fasô.
Improvável essa ave
que revoa
entre as flores multicores
do jardim;
infelizmente, não
canta para mim:
um estalido seco
apenas soa.
Não sei se assim
pretende qualquer loa
ou prece breve... num
louvor assim
desse sabor que
encontra no jasmim:
grito de júbilo é o
que talvez entoa...
Nesse ritmo de asas
impensáveis,
verdadeiro helicóptero
natural,
seleciona mansamente
seu embate,
reluzindo em suas
cores inefáveis,
escolhe a flor, em
beijo temporal
e, de um só golpe,
lança-se ao combate!...
OUAGADOUGOU II
De outras feitas se
lança ao chafariz,
porém não molha as
asas, com certeza,
apenas bica algumas
gotas com leveza,
sem que interrompa o
seu fluir de anis.
São verdes seus
zumbidos, em feliz
combinação de singular
lhaneza,
num reluzir de
lamparina acesa,
cujo segredo descobrir
eu quis.
Ninguém sabe como move
suas asinhas
com tanta rapidez –
sinto o chicote
do próprio estalo
nesse seu chilreio
e somente com o néctar
de florzinhas!...
Ou até, quem sabe? –
para me fazer trote,
coma centenas de
insetos de permeio!...
OUAGADOUGOU III
Um dia, contemplei
pequeno ninho
escondido entre as
ramas do jardim:
era uma casa aveludada
assim,
com uma pérola
fingindo ser ovinho.
A fêmea debicava, em
estalinho,
toda assustada, em
defesa contra mim,
que realmente nem
pretendia, enfim,
sequer tocar no meigo
ninhozinho.
Mais tarde, descobri
que foram dois
os ovinhos que
expusera em tal destino,
porem caíra um ao solo
e se partira,
sem que pudesse fazer
nada depois...
Cumprido o tempo, só
um filhote pequenino
alça seu voo e pelo
mundo gira...
OUAGADOUGOU IV
Mas outro teve um
destino diferente:
eu o vi primeiro entre
os dedos de minha avó,
ninho minúsculo com um
ovinho só,
sem despertar qualquer
paixão pungente
em quem roubara o
ninho, até contente,
pois lho trouxera por
um pão-de-ló,
nem minha avó sentira
qualquer dó
ao receber tão
singular presente;
tomou uma agulha, que
aqueceu na brasa
e perfurou o ovinho
com cuidado,
como agente
indiferente de seu mal,
de que o ícor
escorreu, amarelado,
e após secar, o trouxe
para casa,
como um enfeito para a
árvore de Natal!
OUAGADOUGOU V
E me explicou, com
naturalidade,
que o ovinho assim fora esvaziado
para poder melhor ser
conservado,
como um enfeite de
real vivacidade;
posso depor que tal
coisa foi verdade,
anos a fio sendo ele
pendurado,
ovo vazio em seu ninho
entronizado,
como um enfeito
natalino sem maldade.
E nesses dias, ao
celebrar o nascimento
de Nosso Salvador,
surgiu a morte
do beija-flor que
nunca viu a luz,
na mesma indiferença
ao sofrimento,
mostrada pelo povo à
fria sorte
que finalmente
acometeu Jesus.
OUAGADOUGOU VI
Contudo, sempre há
justificação
para a morte do
Cristo. Diz a Igreja
que esse vinagre a que
Jesus não beija
é mais um símbolo da
purificação,
sendo precisa uma tal
morte, então,
qual sacrifício que à
humanidade enseja
reto caminho... que ao
Paraíso veja,
já prometido desde a
Criação.
Mas por que faleceu o
beija-flor,
todo esvaído em clara
amarelada,
só para ser um enfeite
pequenino?
E tudo relembrei, em
claro horror,
nesta memória apenas
vislumbrada
que ressurgiu dos
tempos de menino.
OUAGADOUGOU VII
Percebam bem não ser
mulher cruel
essa minha avó de há
muito falecida;
bem ao contrário, era
justa e comedida
e adorava cozinhar
bolos de mel;
mas às galinhas não
sabia dar quartel,
quando alguma era bem
gorda percebida,
que as degolava, a
sangueira recolhida
e arrancado, com
destreza, o fel.
Depenado o animal, em
sua nudez,
prendia fogo numa
folha de jornal
e chamuscava, com
cuidado, o corpo inteiro,
para queimar esses
restos, em que vês
os vestígios das
cânulas, mal e mal, (*)
antes de a abrir, em
talho derradeiro.
(*) Os cabos das
penas.
OUAGADOUGOU VIII
Era minha avó bastante
habilidosa
no que chamavam
“trabalhos manuais”;
apresentava muitos
dotes naturais
para fazer enfeites,
cuidadosa,
acostumada, desde
jovem e formosa,
a tais atos
perfeitamente naturais
de perfurar os ovos de
animais,
a clara e a gema
retirando, carinhosa,
pois depois tal
conteúdo aproveitava
para merengue, para
fazer gemada
ou omelete, ou talvez
usar em bolo;
secos os ovos, neles
desenhava
e os pintava em
aquarela, dom de fada,
novo recheio de
algodão como consolo.
OUAGADOUGOU IX
Até hoje conservo os
alicates,
as puas e sovelas
delicadas,
com que moldava arames
para fadas,
reis e rainhas,
pastores e açafates... (*)
(*) Cestinhos de vime.
Com algodão revestindo
seus engates,
em cola as brancas
carnes mergulhadas,
com fios de lã e
retalhos adornadas,
as mãos lavando
concluídos tais embates...
Rostos bem nítidos em
minha lembrança ainda,
cada traço dos
semblantes pespontado,
com que ao menos dois
presépios preparou,
sem que a tarefa desse
assim por finda,
fez camelos e ovelhas,
anjo alourado
e até mesmo um
elefante ela criou!
OUAGADOUGOU X
Por que razão, algum
pequeno beija-flor
me trouxe tais
lembranças de minha avó,
longamente emaranhadas
em cipó,
até da cola rememorado
o olor?
E após recorde essa
visão de horror
da galinha degolada
sem ter dó,
a correr pelo pátio,
qual se o nó
de sua vida mantivesse
seu vigor...
Esse fiapos da memória
exangue
que bem cedo me
fizeram rejeitar
todo o tipo de carne e
a recusar
os sarrabulhos das
refeições de sangue
pingado da galinha,
que vira disparar,
sem sequer mais
conseguir cacarejar!...
OUAGADOUGOU XI
Talvez hoje eu só
esteja a relembrar
que mesmo por me achar
vegetariano,
quantos ovos consumi,
ano após ano,
em omeletes, em
merengues, sem pensar
que cada um poderia
originar
outro pintinho,
amarelado e lhano,
ou imaginar até o ato
desumano
de omelete de
beija-flor tragar...
Afinal, também ovos de
avestruz
minha avó esvaziava
para usar
em seu trabalho
cuidadoso de artesã
e meus receios do
inconsciente expus
que alguém viesse a
mim mesmo esvaziar
para algum tipo de
omelete temporã!...
OUAGADOUGOU XII
Enfim por que me
deveria dar espanto
essa omelete feita só
de beija-flor,
que suas línguas de minúsculo
sabor
comem chineses até
hoje, sem que o canto
aprendam a incluir no
próprio pranto;
ricos romanos, em seu
cardápio multicor
esses linguinhas
incluem sem temor;
e se adorna com as
peninhas algum manto,
mesmo hoje, para reis
dos africanos
(em Zâmbia existem
muitas variedades)
e que tolice a minha
me inspirar
a descrever como atos
desumanos
esses atos
indiferentes de maldades
que minha avó
costumava praticar!
Recanto das Letras
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