sexta-feira, 3 de março de 2017





A ICONOCLASTA & MAIS – 4-13/1/2017
Novas séries de William Lagos


(HAGIA IRENE, ISTAMBUL, EXEMPLO DE IGREJA  SUBMETIDA À ICONOCLASTIA, EM QUE SOMENTE FOI PRESERVADA UMA CRUZ SEM IMAGEM HUMANA).

A ICONOCLASTA I – 23 nov 2007

Ela subiu ansiosa, aquela noite,
querendo amor, até meu escritório.
Nunca antes me aceitara o peditório
de me encontrar ali, em meigo afoite...

Quando chegou, acolheu-a como açoite
uma visão totalmente inesperada:
Callíope, minha musa, que abraçada
se encontrava comigo, em puro acoite...

Agarrou-lhe os cabelos de cimento,
bateu-lhe o rosto, num assalto vil,
que a pobre estátua deixou despedaçada!...

Empurrou-a depois, feroz momento
e assim a contemplou, "leve e sutil",
vendo o pescoço quebrado, ao pé da escada!...

A ICONOCLASTA II – 4 JAN 2017

Naturalmente, isto é apenas fantasia,
embora o ato tenha sido sugerido,
caso algum dia, realmente conseguido
tivesse a estátua que assim me seduzia...

Mais de uma vez com o tema brincaria,
que pelas grades se houvera introduzido
essa minha musa do jardim florido,
que nos meus braços se recolheria

Callíope, essa estátua de cimento,
com o corpo perfurado para um fio
até a lâmpada na ponta de seu braço

e imaginado tivesse um tal portento
originado em certa noite pelo cio
flutuado assim empós o meu abraço.

A ICONOCLASTA III

Seria a musa realmente milagrosa
que nesse ídolo de cimento se encarnasse
ou mais exatamente, acimentasse
e do canteiro se esgueirasse, em amorosa

peregrinação de arcana força airosa,
seu vasto peso pelos ares transportasse
e à janela do escritório então se alçasse,
qualquer delicia buscando mais ditosa...

Que além do inicial milagre alado,
de algum modo, conseguisse atravessar
essa grade colocada em proteção,

sem se quebrar, em branquicento brado
e sem tampouco as grades entortar,
na estranha faina de ventre e coração.

A ICONOCLASTA IV

É bem verdade que muito me inspirou
e poderia ter sido até beijada...
Alguma flor, porém, seria amassada
e nem um beijo a pobre assim gozou...

Mas com seus olhos cegos me fitou,
enquanto em frente a ela, de alma alçada
a sedução lhe lancei, desamparada...
Quem sabe a pobre estátua até me amou?

Decerto até lhe demonstrei desejo,
que mais não fosse, em agradecimento
por toda a inspiração que concedia

desses milhares de versos em arpejo,
projetados pela dama de cimento,
que já em mim um certo amor desenvolvia!

A ICONOCLASTA V

Fora poupada de iluminar um cemitério,
porque minha esposa primeiro a adquiriu
e qualquer casualidade não previu
que com a estátua cometesse um adultério...

Fisicamente, seria um despautério:
sensualidade ali nunca existiu...
Qualquer modelo barroco lhe serviu,
exceto a lâmpada que indicou seu puerpério... (*)
(*) Período após o parto de meus versos.

Mas eu, doente pelo romantismo,
a contemplava com o olhar vidrado,
por tantos versos que havia me assoprado

e quiçá, em algum efeito de truísmo,
projetava sobre ela o meu amor
e a falsa tocha devolvia igual ardor...

A ICONOCLASTA VI

Então minha esposa tais sonetos leu
em que a minha estultícia mencionava...
E num gesto de orgulho, assim zombava:
“Dá-lhe a chave da cozinha, meu Romeu!...”

Nunca um momento assim aconteceu,
pois dessa porta a chave não lhe dava
e nem ao menos à estátua suplicava:
gélido encontro teria sido o meu!...

Mas certo dia, durante brincadeira,
declarou que, em um ato de azedume,
o assassinato seria feito a sangue frio!...

Embora, é claro, esta morte sobranceira
não causaria jamais o seu ciúme,
já que a figura estava presa por um fio!

HORMONIA I – 26 NOV 2007 (*)

Não quero ouvir-te jurar fidelidade,
nem pretendo te jurar ser infiel.
Juremos antes plena liberdade:
quem for sincero, assim será fiel.

Vamos jurar apenas, um à outra,
que ciúmes não teremos, mas apreço.
Casos de amor são simples adereço,
porém não amarei a mente doutra.

Quero somente saber que me precisas
mais do que a outros, quando houver saudade,
confiante que, em qualquer necessidade,

estarei a teu lado, se me avisas...
Porém de ti... não espero isso sequer:
tua mente é pura, mas o corpo é de mulher...
 (*) Contração de hormônio e harmonia.

HORMONIA II – 5 JAN 2017

A bem verdade, o destino da mulher,
tal qual lhe é imposto pela biologia,
é garantir que a sua prole geraria:
a raça human transmitir é seu mister.

E pouco importa uma instrução sequer
nem o grau de inteligência que possuía,
pois deficiente ou adoentada, poderia
para uma nova geração filhos prover.

Já muita vez foi chamada de tragédia
sua sujeição à força do hormonal,
quando não grávida, sofrendo Tepeeme, (*)
(*) Tensão Pré-Menstrual.

tema impotente de mais de uma comédia,
ou alvo inerme da excitação sexual,
sem dos próprios sentimentos ter o leme.

HORMONIA III

Porém existe uma tragédia ainda maior,
quando o assédio lhe vem da menopausa
e a biologia as mutações lhe causa,
seu corpo descartando-se a propor;

para a raça já perdeu todo o esplendor
após ter da ovulação a final pausa,
da velhice já os sinais como recausa,
o pobre ventre acometido de torpor.

E aqui a tragédia: se na própria mente
esse processo não a perturbasse,
o acolheria nas brumas do inconsciente

como o fantasma natural que é
e para o olvido assim o destinasse,
a encará-lo com maior ou menor fé.

HORMONIA IV

Mas a mulher que é mais inteligente,
que em seu viver aprendeu com a experiência,
que do próprio valor tomou consciência,
muito mais sendo que um ventre, simplesmente,

que transitou por seus hormônios, impotente,
a provocar-lhe dúvida e impaciência,
já envolvida nessa final pendência,
muito mais sofre por tal fado inclemente.

Dentro dos âmbitos da civilização,
pode melhor acolher essa mudança,
com aceitação e até mesmo desafogo,

qual liberdade dessa antiga obrigação
desde a menarca que a tomou ainda criança,
por trinta anos a queimar no próprio fogo!

HORMONIA V

Assim, por sua família protegida,
pode acolher o papel de conselheira,
gentil avó, ou sendo mais matreira,
como bruxa se assumir no fim da vida.

Mas quem no mundo natural está inserida,
enfrentará desgraça mais certeira:
caso não seja herbanária ou então parteira,
pela tribo será expulsa ou perseguida.

Não sou eu quem inventou tal situação,
somente a tenho contemplado em volta
e minha empatia vem-me encher de mágoa.

Quantas mantidas pela única razão
dos bens a herdar quando em ataúde envolta,
no pranto falso de longos jorros dágua!

HORMONIA VI

E só nos tempos dos mais recentes dias,
vê-se burlando por alguma a triste sina,
com hormônios químicos que lhe traz a medicina,
por algum tempo provocadas hormonias...

O corpo inteiro na saúde que assim crias
e ao mesmo tempo, o que mais nos fascina,
vencida a Tepeeme a que a menarca inclina,
quando a reposição acompanha longas vias.

Este é o milagre da civilização:
que do ventre a mulher não mais dependa,
mas que possa produzir literatura,

arte e ciência, tal qual homem seu irmão,
não mais forçada a percorrer tal senda,
na qual apenas aguardaria a sepultura...

ÁGUA DE CHEIRO I – 27 NOV 07

Este é um amor perfeitamente impuro,
solene em sua magia vampiresca,
insidioso em sua saga mais burlesca,
pois muito mais me exige do que juro.

Meus valores jogados no monturo
dessa conversa assim, novidadesca,
serpentina também, carnavalesca,
feroz fadário de esplendor bem duro.

Amor que tanto exigiu por toda a vida,
malbaratada na exigência requerida
dessa atenção funesta que reclama.

Porque perante tal amor não sou enérgico,
sou indolente, timorato, sou alérgico,
como a acha de lenha teme a chama.

ÁGUA DE CHEIRO II – 06 JAN 17
(Embora escrito no dia da Epifania, será enviado após o Carnaval.)

Bem de longe chegaram os Três Magos,
como Três Reis por costume referidos,
vindos do Oriente, decerto bem nascidos
na Mesopotâmia ou mesmo em sírios pagos.

A Estrela de Belém de seus afagos,
por cartógrafos celestes atrevidos
identificada já foi e redigidos
alfarrábios conservados sem estragos,

por astrônomos chineses na ocasião,
foi supernova tornada estrela anã,
que os céus encheu com místico fulgor,,,

Só não entendo por que na redação
é referida como estrela temporã,
que se apagou no meio do esplendor?

ÁGUA DE CHEIRO III

Segundo consta, na capital, Jerusalém,
os três astrônomos perderam sua visão
e obrigados a consultar, foram então
ao Rei Herodes e as sábios que ali veem,

os quais lhes referiram ser Belém,
segundo fora escrito de antemão,
a escolhida como o berço do varão
que ao povo de Israel traria o bem.

E o mais estranho dessa narrativa
é que ao saírem dessa capital,
a sua estrela enxergaram novamente.

Qual a razão para essa recidiva? (*)
Por que a estrela apagou o seu fanal
nessa cidade, de forma surpreendente?
(*) Retorno.

ÁGUA DE CHEIRO IV

Trouxeram os magos ouro, mirra e incenso:
um o “vil metal” e dois a água de cheiro;
foram perfumes esparzidos no potreiro
ou queimados em bastões de olor intenso.

Qual a razão do sacrifício intenso
ser comparado, em toque aventureiro,
com esse amor que em meu soneto abeiro,
minha pequenez ante um fato tão imenso?

Usavam em carnavais lança-perfume,
como um prelúdio à longa travessia
dessa Quaresma de quarenta dias,

sobre as cabeças a cinza do azedume,
pelos pecados que então se cometia
ou que somente no imaginar fazias...

ÁGUA DE CHEIRO V

Sem dúvida, essas festas mais antigas,
comparadas com as atuais, tão atrevidas,
costumavam ser bastante comedidas,
outros costumes a lhes servir de aurigas. (*)
(*) Condutores.

Havia temores, restrições mais inimigas,
feroz a igreja nas penas atribuídas,
absolvições a serem concedidas,
às quais a lei civil mostrava figas...

E quanta gente foi assim encarcerada
por faltas hoje tidas como leves,
alguns mesmo a receber pena de morte!

De hoje o Carnaval mais batucada
e muita pulação, até nos bailes coisas breves
comparadas com as “Baladas” de bom porte!

ÁGUA DE CHEIRO VI

Mas esse amor que recebi em epifania, (*)
muito distante de algum carnaval,
foi insidioso em exigência espiritual,
muito mais que algo sensual assim seria.
(*) Visitação, chegada.

Por longo anos celebrado como orgia
dentro da mente, loucura consensual,
sendo um desejo mais unilateral,
que empós consumação se esgueiraria,

para um descarte, mais ou menos esquecido;
mas houve o fogo, a mente a incinerar,
muito mais que o coração a se iludir;

rede neural igual carvão já consumido,
como um prelúdio à cremação se demonstrar,
sem que essa estrela recobrasse o seu luzir.

OBRADOR I – 27 NOV 2007

Eu mesmo que pedi: pedi aos deuses
que mais trabalho nunca me faltasse,
embora a meus ouvidos sussurrasse
uma voz tímida: "e não desejas ter amores?"

Eu preferi lançá-la ao mar de adeuses
e respondi à voz, que me deixasse.
Tendo trabalho, talvez amealhasse
o suficiente a despertar sexores...

Tem sido assim.  Trabalho não me falta
e me esforço, dia e noite, em traduções.
esfalfo-me, de fato.  E distrações

encontro apenas nesta faina alta
de versos rabiscar, sem ter sequer
nesgas de tempo para amar qualquer...

OBRADOR II – 07 JAN 17

A questão não é o amor, mas a pessoa,
que todo amor traz em si algo de egoísta:
algo se quer, é preciso que se insista,
quando se envia uma emoção tão boa.

Igual quanto ao sexor: nada destoa.
quantas vezes percorremos esta pista,
carne por carne, o gozo da conquista,
enquanto ao coração nada nos soa.

Mas o que importa é o relacionamento,
até que ponto existe compreensão,
até que ponto se suspende o julgamento,

até que ponto floresce igual alento,
que permaneça após morta a paixão,
como surpresa final tal sentimento,

OBRADOR III

Pois tanta vez há um limite nesse sexo
praticado diariamente por desejo,
necessidade física em arpejo,
manifestada na forma de um amplexo.

Porém se espera que no amor haja mais nexo,
solidariedade bem maior que um simples beijo,
por subitâneo e límpido esse ensejo
de um amor súbito de caráter mais perplexo.

Mas nem o sexo nem o chamado amor
têm importância maior que uma pessoa
por quem se sinta muito mais que ardor,

em sentimento estuante de vigor,
com que o relacionamento se coroa,
na melancólica ausência do esplendor.

OBRADOR IV

Pois quanta vez amor, quer seja conjugal,
ou com parceiro alheio partilhado,
numa tarefa se descobre transformado,
sem esse espanto que afasta todo o mal.

Então o orgasmo nos chega no final,
esse instante em que o mundo é descartado
pelo prazer e não por ser amado,
algo de egoísta nessa entrega consensual.

Muito diverso do amor do romantismo,
talvez melhor nunca sendo consumado,
com o ente que se quer quase endeusado...

mas novamente se manifesta o egoísmo,
amor do amor que não busca uma pessoa,
mas tão somente num soneto se coroa...

METODOLOGIA I – 28 NOV 07

Promessa não te fiz de amor eterno.
De fato, nem recordo que promessa
eu tenha proferido, salvo em versos
de sabor capitoso e tanger terno

nas cordas meigas de teu coração.
Foi só aos poucos que a amizade mais espessa
se foi tornando, por eventos tão diversos,
gota após gota, em bênção de emoção.

Assim, nem sei qual resposta oferecer
quando me indagas afinal se predomina
só o desejo de a outro corpo pertencer

ou se é amizade pela alma feminina...
Somente sei que a mente me domina
um sentimento que jamais pude entender...

METODOLOGIA II – 8 JAN 17

Eterno apenas sendo o amor de hoje,
nunca se sabe o que o amanhã nos traz;
o amor da hora que apenas satisfaz,
ao fim da hora já o amor nos foge.

Eterno amor que o ontem ao peito aloje,
essa perpétua e transitória paz,
essa certeza de mil bondades más,
amor perfeito que em breve nos enoje...

É bem melhor que amor não seja eterno,
mas com cem desilusões intercalado,
após as quais se o possa refazer,

por sentimento que se espera seja terno,
nessa certeza de vê-lo aos poucos dispersado
pela monótona imprevidência do viver...

METODOLOGIA III

Que seja amor tão só impermanente,
que sempre um leve temor nos despertasse
de que amanhã talvez nos acabasse,
tal qual se viu no passado tão frequente.

Que traga amor em si algo imprudente
a que a alma temerária se entregasse,
seu fim pensando que talvez se adiasse,
como se adia uma morte impenitente.

Que seja amor apenas de um momento,
enquanto o fogo ao coração se escute
na cremação de um imenso sentimento,

tão grande que só pode se esgarçar,
enquanto o tique-taque ainda percute,
sem que se o possa ao menos pespontar...

METODOLOGIA IV

Que seja amor sem excesso de esperança,
cada momento por si mesmo consagrado,
muito depois lá no fundo relembrado,
tal qual se lembram tênues tempos de criança;

que se acumulem ilusórios em bonança,
pelo porvir cada um adocicado,
cada momento de tristeza descartado,
na longa fila de instantes que se alcança...

Pois seja amor tão só o amor de hoje,
porque sempre há de surgir um amanhã,
que novas coisas decerto nos trará,

lascas roubando desse amor que foge,
amarrado ao coração com fios de lã,
no lusco-fusco de um luzir que já não há.

A MÓ E O ARIEL I – 30 NOV 2007

Nem sempre amor são gozos.  São sevícias,
a cada vez que exigem mais labores.
Tempo não sobra a conquistar amores,
suas artimanhas, seus dotes, suas malícias.

Assim espero, sabendo ser em vão,
que me busquem primeiro e se disponham,
por mais estranho seja o dom que sonham,
a se me abrirem primeiro o coração.

E fico assim, olhando de soslaio,
imerso em meu trabalho, sorrateiro,
como um rato que livro raro rói,

que amor me caia ao colo, qual um raio
de luzes fulgurantes, qual moleiro,
vendo esse tempo que minha vida sempre mói.

A MÓ E O ARIEL II – 9 JAN 2017

Amor farinha pelo tempo esbranquiçado,
amor guardado em um saco de estamenha, (*)
até que o tempo de ser usada venha,
amor de pão sobre o fogo cozinhado.
(*) Estopa.

Amor de hóstia à vida consagrado,
porém que em cada refeição se espera tenha
prosperidade como branda senha,
amor cozido no forno do passado.

Amor a vida de um passado já perdido
e que precisa de ser sempre renovado,
que não escorra ao longo do caminho,

amor que seja diariamente consumido,
migalha breve de um canto terminado,
mas que ainda expande o fermento do carinho.

A MÓ E O ARIEL III

Amor forjado em ferraria, fugitivo,
igual que açúcar-cândi ou pão-de-ló,
amor de cárie, no peito que está só,
agridoçura em um peito redivivo,

amor de gás azul, sonho furtivo,
sobre o fogão o farelo desta mó,
amor composto de acumpliciado nó
em quem por ele se deixa ser cativo.

Amor imóvel como um ariel,
sobre o qual a mó gira, violenta,
o trigo e a aveia a desfazer, como o centeio,

nesse estranho casamento sem anel,
em que o tempo da vida se apresenta.
Inesgotável como antes nunca veio...

A MÓ E O ARIEL IV

Amor que aguardo um dia ainda virá,
como restolho do final do tempo,
como baixo-contínuo em contratempo, (*)
que em seu compasso me conservará.
(*) Notas graves suportando a melodia sem interrupção.

Amor de melodia, que não há.
senão na breve agitação do vento,
Amor que dorme em cada assentimento,
amor que a brisa depressa levará.

E que precisa, destarte, ser fruído
enquanto o tempo não pare de soprar
a vida palha, que ainda redemoinha,

amor de antanho, que já foi cumprido,
mas que nos pode hoje mesmo sufocar,
como uma nuvem irrequieta de farinha!

ÁGEIS QUELÔNIOS I – 10 JAN 2017

Já falei antes que para mim é fácil
o borbulhar de tanta inspiração,
em certos dias feita quase maldição,
hora após hora a redigir poema grácil.

A longa esteira torna-se inconsútil,
cada soneto a puxar novo cordão,
magia pura de varinha de condão,
na prata líquida de um cadinho dúctil.

Mas a quem importa que tenha o peito aberto?
Todo este excesso a parecer até defeito,
fole soprando na forja da ocasião.

Que me gabo demais, pensam, por certo,
mas disso tudo tirei um só proveito:
água fervente dentro ao coração!

ÁGEIS QUELÔNIOS II

Ter longas vidas mencionam as tartarugas,
protegidas sob a forte carapaça,
qual uma espessa tapeçaria sem jaça,
seu rendilhado desigual de rugas.

Elas se escondem sem confiar em fugas,
nem as procuram mesmo quando em caça,
pouca mandíbula a existir que faça
nela orifício pelo qual sua carne sugas.

Porém são lentas e no chão se arrastam
e é por isso que em si mesmas se retraem
nas seis passagens por que se contraem

cabeça, patas e cola e assim se bastam,
são misantropos nesse esforço, enfim,
quais literatos em torre de marfim.

ÁGEIS QUELÔNIOS III

E embora  em sua marcha sejam lentas,
para esconder-se têm agilidade:
nesse seu templo de petrificalidade
com muito esforça para abri-las te apresentas!...

Algumas vezes, porém, a água esquentas,
ato guloso de semi-iniquidade,
lançado o bicho nessa oportunidade,
cozido vivo na tocaia que lhe atentas!...

Assim falei que o jorro da poesia
corre no sangue a escaldar o coração,
na morte lenta de um ordálio mau,

nessa tortura que a alma me feria,
enquanto invade os alvéolos do pulmão,
dura torrente em que não se acha um vau.

ÁGEIS QUELÔNIOS IV

Bem ao invés dos quelônios, eu exponho,
todos os membros frágeis e macios,
sob o refluxo dos ferventes rios,
sem lamentar ao golpe mais medonho

de duras críticas, a distribuir meu sonho,
qualquer dos ventos a recolher meus brios,
que ainda me brotam dos extintos cios
de qualquer nexo insatisfeito e assim tristonho!

Assim, de fato, não é nenhuma gabolice,
mas apenas do que ocorre a descrição
desse fenômeno que ainda tento descrever,

quer seja por sapiência ou por tolice,
pois nem sequer é mais inspiração:
chama de fogo que me vejo a recolher!

VESTES DE FOGO I – 11 JAN 17

O ROXO DO CREPÚSCULO O SOL ESPELHA,
ASTRO INCONSTANTE QUE JÁ NOS ABANDONOU
E NO HORIZONTE PARA OUTRO BEM MARCHOU,
QUAL RETORCIDO FIO DE MARAVALHA.

JÁ CHEGA A NOITE COMO PONTO DESSA MALHA,
QUE UMA AO OUTRO SEMPRE ACOMPANHOU,
O ARROXEADO MAIS ESCURO SE TORNOU,
NA SUCESSÃO DOS DOIS SEM QUALQUER FALHA.

DO DIA A POEIRA SÓ SE CONSERVOU
PARA O ROXO DO ARREBOL QUE NOS VIRÁ,
POR MAIS QUE SEJA PELA NOITE CONSUMIDA,

NESSE GRILHÃO QUE DESDE SEMPRE SE FORJOU,
O DIA-CADÁVER NOS RESSUSCITARÁ,
ENQUANTO A NOITE AO ATAÚDE É RECOLHIDA.

VESTES DE FOGO Ii

SEM QUALQUER DÚVIDA, É O SOL UMA FOGUEIRA,
ARDENTE BRILHO QUE NO CHÃO SE REPRODUZ,
VESTES DE FOGO EM CADA ROCHA QUE RELUZ,
QUE A NOITE ESPANTA PARA OUTRA RIBANCEIRA.

JÁ NOS CONTEMPLA ESSA LOURA LUZ FAGUEIRA,
AS SOMBRAS NEGRAS A EXPULSAR EM BREVE CRUZ;
NA MADRUGADA, É UM DOM QUE NOS SEDUZ,
AO MEIO-DIA POREM TORNA-SE ALTANEIRA!

DE NOITE A TERRA SÓ DE TREVAS REVESTIDA,
POREM NOS DIZEM QUE, ADIANTE DO HORIZONTE,
PROSSEGUE O SOL SEU MAGNÍFICO REPONTE...

MAS COMO EU SABEREI SE TEM GUARIDA
ALÉM DOS MONTES, JÁ QUE TAL VISÃO
NUNCA PERCEBO EM MEU PRÓPRIO CORAÇÃO?

VESTES DE FOGO III

APENAS VEJO ESSE CONSTANTE MOVIMENTO
DESDE A FÍMBRIA DO HORIZONTE.  SE CAMINHO,
ALGO SE  EXPANDE QUANDO ME AVIZINHO,
ALGO SE ESCONDE, SE NÃO MAIS ATENTO.

SIGO EM BUSCA DO HORIZONTE NUM ALENTO,
PARA ATINGIR ESSE PONTO PEQUENINHO
APÓS OS MONTES... E NESSE AFÃ MESQUINHO,
VEJO O HORIZONTE A FUGIR-ME A SEU CONTENTO.

E COMO POSSO, EXATAMENTE, TER CERTEZA
DE NÃO SER EU A REAL CAUSA DA VEREDA?
SE A FÍMBRIA EU CRIO, QUANDO ME APROXIMO

E A FÍMBRA EXTINGO, FEITA DE LERDEZA,
QUANDO A DEIXO PARA TRÁS, SEM QUE CONCEDA
QUALQUER OLHAR PARA O DISTANTE CIMO.

Vestes de fogo iv

SOMENTE ACEITO, POR RACIONALIDADE,
QUE ALÉM DE MIM HAJA LUGAR DIVERSO,
PORÉM ME SINTO O CENTRO DO UNIVERSO,
QUANDO ME EMBASO NA MATERIALIDADE,

POIS OS OBJETOS TÊM GRANDE VARIEDADE,
CADA UM DELES, A MEU OLHAR CONVERSO,
VAI AUMENTADO, PORÉM DO OLHAR DISPERSO
VAI DIMINUÍNDO ATÉ A MINIMALIDADE...

JÁ ME ENSINARAM SER SÓ A PERSPECTIVA:
ATÉ OS PINTORES ANTIGOS FIGURAVAM
O LONGE E O PERTO NUM TAMANHO IGUAL,

EM NEGAÇÃO DA PERCEPÇÃO ATIVA
COM QUE SEUS OLHOS DIMINUÍAM E AUMENTAVAM
CADA ELEMENTO DA PAISAGEM NATURAL. 

VESTES DE FOGO v

QUEM SABE SEJA O SOL QUE O MUNDO QUEIMA
E ASSIM GERA DA NOITE A ESCURIDÃO...
VESTES DE ESCURO QUAIS BORRALHO SÃO,
PROTEGIDAS PELA LUA EM BRANCA TEIMA...

PORÉM SE AQUI SÓ DESCREVO UMA TOLEIMA,
TENHO CERTEZA DE QUE SEMELHANTE SENSAÇÃO
JÁ EXPERIMENTASTE EM MAIS DE UMA OCASIÃO,
QUANDO DEIXASTE PARA TRÁS O QUE REQUEIMA

E VAIS CRIANDO UM NOVO MUNDO PARA A FRENTE,
TAL QUAL SE O FOGO NASCESSE DE UM OLHAR
E A ESCURIDÃO DE TEUS OLHOS O PISCAR

E QUE TUDO SE CRIASSE DIFERENTE,
CONFORME O NECESSÁRIO DO MOMENTO,
FLUXO E REFLEXO DO TEU PENSAMENTO...

VESTES DE FOGO Vi

E QUANDO JÁ TE CANSAS DA JORNADA,
TAL E QUAL EM ARROXEADO DE EQUIMOSE,
TORNA-SE O MUNDO JÁ ESCURO POR OSMOSE
DE TEU CANSAÇO, REDUZIDO A QUASE NADA...

E QUANDO MONSTROS TE ASSALTAM DE EMBOSCADA,
SÃO TEUS TEMORES TRANSPOSTOS EM NEUROSE:
O QUE IMAGINAS A TEU PRÓPRIO MUNDO COZE
E QUANDO O ESQUECES, DESFAZ-SE EM REVOADA...

ENTÃO ME DIZEM QUE ISTO É SÓ SOLIPSISMO,
TAL QUAL SE O MUNDO PERTENCESSE SÓ A MIM,
MAS OLHA BEM QUE NÃO O AFIRMO ASSIM...

MAS TE CONCEDO, EM UM ATO DE ALTRUÍSMO,
QUE O UNIVERSO PERTENÇA SÓ A TI,
TALVEZ DIVERSO DE TUDO O QUE ASSISTI...

ALGEROSAS I – 12 JAN 17

Abro a gaveta e vejo interrompida
a ordem em que se achavam os rascunhos,
metalinguagem desconfiada nos meus cunhos,
em temática obviamente repetida.

E certamente, bem antes de esquecida,
terei de procurar novos abrunhos,
erguer as mangas e enrolar os punhos,
na busca ingrata da ordem já perdida.

Vejo que ali se romperam as borrachas
que os mantinham em fila, passo a passo,
para quando achasse tempo de os reter.

Talvez devera redispor em caixas
esses retalhos de meu descompasso,
que nem sequer eu mesmo hei de reler.

ALGEROSAS II

Mas que te importa que tenha reencontrado
mil versos tristes, feitos de abandono?
E que te importa que não seja eu mesmo o dono
de tais rascunhos. qual tenha já afirmado?

Importa apenas que alguns tenha enviado
empós o mundo, sempre de pro Bono, (*)
destinados quiçá ao desabono
ou a louvor qualquer deles consagrado.
(*) De graça, sem pagamento.

O que importa não são letras, mas o olhar
que em desmazelo os venha a perscrutar
e se surpreenda por elas encantado!

O que importa é que outro coração
deixe prender-se sobre eles a visão
e a cor derrame sobre o verso desbotado.

ALGEROSAS III

São algerosas as proteções de zinco
que se instalam ao longo de um telhado
para que o líquido por chuva derramado
seja às calhas conduzido com afinco.

Horizontais ou diagonais em brinco,
disposta a calha em vertical bem empinado,
para o excesso do pluvial ser transportado
até o pátio ou à rua num repinco.

Caso contrário, nas cabeças jorraria
de quaisquer que as pusessem para fora,
chuveiro súbito que em nada agradaria;

e assim transcorre sua missão discreta,
rapidamente levando a chuva embora,
pelas calçadas unindo-se à sarjeta...

ALGEROSAS IV

Estes meus versos de fantástica torrente
como rascunhos ficarão acumulados
se folhas secas a seus despejos adequados
vazão não deem-lhes adequadamente.

Assim de ti preciso, certamente,
que lhes permitas serem transportados
por algerosas e calhas derramados
até o ponto em que os aceites em tua mente.

Talvez alguns já destinem-se à sarjeta
e se derramem no inconsciente coletivo,
outros retidos em teu peito na ocasião,

a despertar em ti essa secreta
memória oculta de um sentimento esquivo
que por momentos te palpite o coração.

FARPAS DE LUZ I – 13 JAN 2017

NA FLUIDEZ VIOLENTA DO DESEJO
TAL COMO ESTRELAS, O FLUXO SEMINAL
EXPLODE FEITO EM COMETA TRIUNFAL
NUM ORGASMO DIUTURNO CADA ENSEJO.
AO SOL E À LUZ DIRETAMENTE ALVEJO,
QUE PARECEM FURTAR-SE A AMOR CARNAL,
SÃO ESPELHOS APENAS, LUZ MORTAL
E NÃO A CAUSA DO AMOR QUE MAIS ALMEJO.

AS NUVENS NÃO SÃO ALVOS, SÃO CORTINAS
CORRIDAS POR ESTRELAS NO SEU PEJO
POR QUE NINGUÉM OBSERVE O QUE ACONTECE
NO ESPLENDOROSO ACOPLAR-SE DESSAS FINAS
PELÍCULAS DE SOMBRA EM SOM DE BEIJO,
NESSA SUA CÓPULA PERFEITA COMO PRECE.

FARPAS DE LUZ II

EM CADA NUVEM O AZUL DO CÉU PERECE,
BRANCOS LENÇÓIS NO LEITO DOS AMORES,
NIMBOS ESCUROS A FORMAR SEUS ESTERTORES
QUAL TEMPESTADE QUE O DESEJO NOS AQUECE.
CADA BULCÃO QUE O CONSCIENTE NOS ACESSE
EXPLODE FINALMENTE EM TAIS FURORES,
CEM GOTAS SEMINAIS OS SEUS ARDORES
AOS SEDENTOS RESPONDENDO TODA A PRECE.

CADA RELÂMPAGO ZIGUEZAGUEANTE ORGASMO
A FECUNDAR A TERRA IMPENITENTE,
TALVEZ A QUEIME MAIS NESSE PRAZER
OU CADA FOLHA DE RELVA NESSE PASMO
SE FECUNDE EM GRAVIDEZ ENVERDESCENTE,
DA FRUTA E TRIGO NO AMADURECER.

FARPAS DE LUZ III

TALVEZ TE PERTURBE A IMAGERIA
SE DESCONHECES DO ORGASMO A EXALTAÇÃO
OU CASO OS TEUS JÁ NO PASSADO ESTÃO,
MAS CADA UM DELES FECUNDAÇÃO TE PROMETIA
MESMO QUANDO A SEMENTE SE PERDIA
AGRESTE APENAS NA IMAGINAÇÃO,
NESSE PARTO DE IDEIAS E EMOÇÃO
QUE A TERMO FINALMENTE CHEGARIA.

E COMO UM PARTO SEM ANESTESIA
PROVOCA DORES NO ABRIR DE UMA CERVIZ
TAMBÉM NA GERAÇÃO PROVOCARIA
DORES DE VERSO PARIDO COM CARINHO
COMO UM FILHO QUE A ALMA SEMPRE QUIS,
PORÉM A RASGA EM DOLOROSO ESPINHO.

William Lagos
Tradutor e Poeta – lhwltg@alternet.com.br
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com
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