AMOR DE CÂMARA & MAIS – Dezembro de 2007 a 20-29 JAN 2017 – William
Lagos
AMOR DE
CÂMARA XXII – 04 DEZ 2007
Que vou
dizer, que já não tenha dito?
Que esse
amor, consumido de distância,
se fez
indiferente... E sua importância
foi
desbotando ao som de um débil grito?
Transformou-se
num eco, como aflito
chiar de
mim... estertorou a ganância
de um
desvalido bafo de fragrância
antes de
unir-se ao derradeiro mito...
Retorno
para mim e me examino:
os
sentimentos estão lá, despertos...
Ali
perduram tantos sonhos bobos...
Escuto
ainda o seu clangor de sino,
enquanto
me contemplam, boquiabertos,
fazendo
amor ao som de Villa-Lobos...
AMOR DE
CÂMARA XXIII – 06 DEZ 07
É
melancólica a música que ouço
de um
lilás pálido e verde esmaecido,
um
filamento inteiro, amortecido
em véu
acinzentado e azul insosso.
É
melancólica esta música que escuto
e mesmo
quando tenta ser alegre
é a
ilusão de um sonho ardendo em febre,
um
pesadelo a expelir-se em gesto bruto.
E, mesmo
assim, por dentro me renovo,
me esforço
por sorrir; e até energia
produzo
sob o efeito desta espera...
Enquanto
penso em ti, eu me comovo
e
gostaria de estar, nessa elegia,
fazendo
amor ao som de Ginastera.
AMOR DE
CÂMARA XXIV – 07 DEZ 2007
Já esta
é mais feliz, são seus acordes
mais
propensos a encher-me de energia:
há
alguma coisa nela, que me envia
à
vastidão e faz que em mim transbordes,
incauto
coração, em comoção intenso,
que
avista fios de ouro em negra teia,
qual
mariposa que a si mesma enleia,
ao se
lançar contra o invisível lenço
de
perfeição estranha e inquebrantável;
e
também eu, na busca reluzente,
mais
outra vez nessa cilada eu caio,
porque
quero alcançar o imponderável
que
vejo de meu mundo sempre ausente,
fazendo
amor aos acordes de Moncayo.
AMOR DE
CÂMARA XXV
[SCHUBERT
II] – 8 DEZ 07
Muito
poucos dominaram melodia
dessa
maneira assim, incandescente,
com tal
facilidade complacente
de
esparzir, sem esforço, a fantasia.
Tão
natural foi nele essa elegia
quanto
exige de um outro esforço ingente,
tal se
enfrentasse o tempo descontente
e, em vez
de notas, fosse areia que escorria...
Também já
partilhei do mesmo dom
de lançar
harmonia no caminho,
mas um
soneto possui mais singeleza.
E, deste
modo, me dedico é a este som,
fazendo
amor em gestos de carinho,
enquanto
escuto de Schubert a beleza.
RECORDAÇÃO
XI -- 07 DEZ 07
Eis-me
aqui, eis-me aqui, não mais recordas
do
Tempo... em que gemias nos meus braços,
quando
alterados de Abandono os traços,
arqueavas
contra mim tuas tensas cordas...?
Eis-me
aqui, eis-me aqui, já não te lembras
de
como os Pelos de meu peito ardente
se
derramavam sobre o teu fremente,
em
cachos negros de Ardor que não relembras...?
E,
num riso nervoso e tão ligeiro,
após
o Amor, casual os apanhavas
de
entre teus Seios, negros caracóis...?
E
numa pilha os contavas, derradeiro,
pelo
por pelo; e ao Solo então lançavas
num
leve Abano, do branco dos lençóis...?
AMOR DE
CÂMARA XXVI – 11 DEZ 2007
Não me
quiseste iludir, foste sincera,
não te
agitava o mesmo sentimento
que a mim
me avassalava o pensamento
no
deslocado final da vida austera...
porém me
amaste, ardente, quando dera
o ensejo,
em meus braços de um momento...
ah,
durasse para sempre!... em truculento
tomar e
receber, amor de fera...
que, para
mim, tornou-se equivalente
ao
verdadeiro amor, foi inconteste:
que ao
saber que outro amavas, deu-me um baque
bem fundo
ao coração, pois foste ardente
nesse teu
último abraço que me deste,
amor
fazendo ao som de Dvorák... *
AMOR DE
CÂMARA XXVII – 12 DEZ 2007
Não me
buscaste mais, desde esse dia
em que em
teus olhos entrou um novo amor,
que te
escorreu ao longo dos cabelos
e te
arfou as narinas de ambrosia...
Não me
lembraste mais, desde essa noite
em que
escorreste um gosto de calor
a quem
adquiriu os teus desvelos
e te
buscou ingente em doído afoite...
E nunca
mais satisfizeste as fomes
que por
ti sinto, sempre que nos vemos,
na ânsia
nova do abraço em que morremos...
Por mais
que essa esperança de mim tomes,
ainda
recordo a vez em que estivemos
fazendo
amor ao som de Carlos Gomes...
AMOR DE
CÂMARA XXVIII – 12 DEZ 2007
Nunca por
mim tiveste a mesma alvura
dos
sentimentos que te dediquei;
eram
cinzas os teus; e me esforcei
para
torná-los prata, em bênção pura;
mas
despertou em ti estranha agrura
que jamais
compreendi: talvez sonhei
apenas
que existisse; não voltei
a
examinar esse gris da criatura
que então
viveu em mim, nas ilusões
que criei
só, bem sabendo que criava:
foi
arremedo de ti quanto eu amava,
qual
se nunca reais fossem ocasiões,
embora a
vida inteira em ti se perde,
fazendo
amor com as óperas de Verdi.
AMOR DE CÂMARA XXIX – 15 DEZ 07
Se encontra uma doçura insuspeitada
no olhar sorrateiro da mulher,
quando avalia, para ver se quer
aceitar que a desejem por amada;
mas a doçura não se lança fora,
em direção ao homem, mas a si:
é um olhar para dentro, bem ali,
onde peneira encarnações de outrora,
a recordar se já foi antigo amante,
nos séculos de antanho, quando a dor
os separou, na memória que se perde
nas espirais de helicônia delirante;
e a decidir se algum dia fez amor
com melodias de Claudio Monteverdi...
COGULAS I
– 30 NOV 07 (*)
Aquela a
quem mais quis se encontra longe
quando se
encontra perto e, às vezes, perto
é que
mais longe está, qual no deserto
miragem que
se avista. É como monge
que perde
a castidade e mulher sonha;
faz voto
de pobreza e quer ter bens;
e se
rebela contra a regra, nos poréns
do voto
de obediência, no qual ponha
a razão
para todo o sofrimento
que lhe
perpassa a alma, sem remédio,
sem
perceber que, no fundo, é apenas tédio
de
repontar-lhe o mesmo pensamento:
de que
aquela a quem ama está distante,
por mais
perto que se encontre em tal instante.
(*) Capuz em hábitos de monges
COGULAS II – 20 JAN 17
Um paradoxo perfeito te apresento,
tais e quais se aparentam objetos,
mesmo aqueles de máximos afetos,
manipulados por distância e descontento.
Quando estão longe,tem menor assento,
prédios gigantes que nem casas de
insetos,
que vão crescendo por atos bem
discretos,
na proporção de nosso passo lento.
Quando criança, a imaginação ativa
até acredita mudarem de tamanho,
na pueril sensação de seu poder,
antes que imponham-lhe a perspectiva,
a distância cega a controlar tal ganho,
todo o empoderamento a então perder...
COGULAS III
Mas com o amor acontece diferente:
quando bem perto,às vezes diminui,
mas a distância a seu valor influi
até mesmo importância surpreendente.
Distante amor qual novo amor jacente,
como o bater do coração reflui,
maior, menor valor se lhe atribui,
conforme a ilusão que se faz crente.
Estando longe,tem gosto de alvorada,
estando longe, como sombra cresce,
no espaço intermediário nos acena,
perto demais, se torna mesmo em nada,
quando de tédio e de cansaço já padece
o egoísta coração que se envenena.
COGULAS IV
O mesmo ocorre com o passado e o
presente:
sonho lembrado parece bem melhor
do que de fato foi em seu vigor,
açucarada a lembrança que se assente,
enquanto os fatos maus (coisa
excelente!)
um coração amacia em tom menor,
faz a tristeza perder o seu frior,
não se pode acumular a dor frequente!
Muito maior se torna o amor de agora,
do mesmo modo que a dor atual dói mais,
mais vive o peito na proximidade,
esmaecido todo o mal de outrora,
o amor presente maior do que os demais,
mágico espelho com cinábrio de vaidade!
COGULAS V
Algumas vezes, ocorre o oposto exato:
muito maior parece o amor antigo,
que a gente olvida todo o seu perigo
e lembra apenas o dourado desse fato,
sem se dar conta que foi lavado o prato,
e qualquer resto de amor foi ao jazigo
dos canos frios. É no esgoto que persigo
essa memória de fugitivo estrato.
E por mais que nos envolva o romantismo
e o amor perdido pareça-nos crescer,
apenas cresce a memória que criamos;
e por mais que nos envolva o egotismo,
o amor de perto, que parece se encolher,
junto de nós... é o único que achamos!
COGULAS
VI
Uma
cogula abafa o nosso rosto,
o crânio
e a nuca cobertos por capuz;
só
enxergamos aquilo que reluz,
todas as
cores anuviadas ao sol posto;
essa
cogula nos defende do desgosto,
pequenos
cortes que ao coração expus,
quando a
presença presente se reduz
e só ao
fundo da garrafa sobre o mosto.
Ai, de
que modo o coração é desconforme!
Sempre
quer mais aquilo que não tem,
sempre
lamenta mais o que perdeu!
Sem
valorar quanto tem, por mais enorme
que seja
a graça que abraçar-nos vem,
salvo no
instante em que também morreu!
CORNUCÓPIA
DA PENÚRIA I – 02 DEZ 2007
Meu caro
Baudelaire, no meu jardim
crescem
"flores do mal": são azuladas
as
cornucópias; por fora, são rosadas,
estuantes
de silêncio para mim...
são belas
estas flores... morrem logo,
mas
outras brotam logo do cachopo;
ao
morrer, são só rosa, como um copo
que se
fechou; mas tal um pedagogo
de rancor
cheio, escondem sua beleza,
estendem
para longe suas gavinhas,
porque se
expandem desmesuradamente;
recobrem
outras plantas, suas vizinhas,
e matam
os meus sonhos, com certeza,
qual me
sufocam a luz dentro da mente.
CORNUCÓPIA
DA PENÚRIA II – 21 JAN 2017
São essas
flores chamadas de Ipomeias,
embora o
povo as recorde por Corriolas;
formam
cachopos redondos como bolas,
ante a
janela a expandir-se em epopeia.
A
Romãzeira recobrem com suas veias,
cobrem
Glicínias com formosas telas,
outras
flores se estiram como estelas,(*)
buscando
ao sol os raios em assembleia.
(*) Colunas votivas com inscrições e
esculturas.
Se livre
curso se dá a tais gavinhas,
recobrirão
as algerosas do terraço, (*)
para
enroscar-se nas grades da janela,
(*) Coletoras de água da chuva que levam
às calhas verticais.
minhas
luzes a deixar bem mais mesquinhas,
na
tremulante cor de seu abraço,
que nada
mais eu possa senão vê-la!
CORNUCÓPIA
DA PENÚRIA III
Chegada a
noite, depois que foi embora
a luz do
sol e luar não há sequer,
meu sono
invadem qual um mal-me-quer,
lembrando
o amor de quem não se namora;
crescem
nos sonhos, em azulada flora,
também
rosada assim ao bel-prazer;
sem
qualquer dúvida, enfeitam meu querer,
mas a
questão é que morrem sem demora!
Quando no
pátio, são por chuva carregadas
até o
ralo – ou sob o Sol, varridas,
mas não
se encontram ralos nos meus sonhos,
minhas
quimeras deixando atravancadas
essas
centenas de flores ressequidas,
os meus
anseios tornando mais tristonhos!...
CORNUCÓPIA
DA PENÚRIA IV
Certamente
Baudelaire fez melhor:
Dieffenbachias
plantou e outros venenos;
Dróseras
prendendo os insetos mais pequenos,
Papoulas
em seu haxixe de esplendor...
Mas a mim
resta tão somente o meu ardor
e me
conforme em já fazer por menos,
que sejam
versos cortados como fenos:
que para
o gado sirvam de penhor!...
As
cornucópias desse azul rosado
menos me
iludem que minhas esperanças;
das
flores mortas posso desfazer-me;
contudo
um sonho jamais realizado,
que ainda
sussurra mentiras de bonanças,
ainda me
suga, tal qual guloso verme!
CORNUCÓPIA
DA PENÚRIA V
Da
Cornucópia da Abundância esses antigos
sempre
falavam – mais ou menos maliciosos,
mas lá no
fundo... um tanto esperançosos:
talvez
guardada por reis em seus jazigos!...
E do
Moinho de Sal e seus perigos
comentavam
os lusitanos, respeitosos:
ao longo
de suas costas, poderosos
jatos
lançava de tais caros artigos!
Por isso
o mar – diziam – era salgado;
tempos
houvera em que fora muito doce,
até que
um mau desejo predispôs-se
e não
mais pode agora ser tomado,
água
salobra loucura provocando
num
infeliz que em jangada vai vogando!
CORNUCÓPIA
DA PENÚRIA VI
Ainda
Adelbert von Chamisso nos contou
de Peter
Schlemihl a estranha narrativa,
pequena
bolsa em cornucópia rediviva,
que mais
moedas sempre lhe entregou.
Porém em
troca de sua sombra ele a comprou,
das mãos
de criatura permissiva,
colecionando,
de forma muito ativa
esse
intangível que com ele negociou!
Porque
toda a abundância tem seu preço
e toda a hubris recebe o
seu castigo,(*)
tal qual
nos revelaram os helenos...
(*) Vaidade ou orgulho excessivos.
E assim
meus sonhos, envolvidos no adereço
dessas
flores virentes, têm jazigo
em seu
perfume inconsútil de venenos!
AS JOVENS DE ROMA IV – 03 DEZ 07
SYBILLA
AS PALAVRAS SÃO MUITAS E SÁFARA É A
COLHEITA:
EU ME ESFORCEI DEMAIS E POUCOS
RESULTADOS
RECEBI NESSA VIDA DE CÁLICES RACHADOS,
DE ALIMENTO PINTADO NOS PRATOS, COMO
PEITA;
EM MULHERES DE ARGILA, A CARNE ME
SUJEITA
A DISPENDER AMOR E OS OLHOS MEUS,
VAZADOS
PELOS PERFUMES ACRES DE DEUSES
APRESSADOS,
SÓ ENXERGAM A MUDEZ DAS NUVENS E A
PERFEITA
EXUMAÇÃO DA LUZ, NA LUCIDEZ DAS TREVAS:
BEBO ÁGUA DE PALHA, MEU OURO É
SULFURINO,
ABRAÇO SOMBRAS VÃS, EM FÉRVIDA ILUSÃO,
MEU PEITO SEM COURAÇA; E NEM UM PAR DE
GREVAS
AS PERNAS ME PROTEGE DO LACERAR LADINO
DESTE SANGUE DE GIZ QUE ME ENCHE O
CORAÇÃO.
DESCONGELO
I – 03 DEZ 2007
Somente
agora vejo no meu rosto
as
marcas leves da mortalidade,
porque
torno a viver. Criogenidade
lavou-me
os velhos anos de desgosto.
Assim,
era perfeito e conservado,
porque
não tinha ideal, buscava nada,
apenas
trabalhava e minha escada
descia
lentamente, descuidado...
Só
agora um novo impulso despertou:
uma
energia atroz, essa esperança,
que
me faz crer que há luzes no caminho.
Mas
a busca dessa luz avelhantou
meu
rosto e corpo, antes sem mudança,
pela
consciência de me achar sozinho.
DESCONGELO
II – 22 JAN 2017
Não
que me encontre sozinho, realmente,
tenho
mulher e filhos, tenho netos,
amigos
tenho que me são diletos,
o
mundo a meu redor faz-se presente,
porém
de mim esperam, tão somente,
que
de algum modo retribuam seus afetos,
os
seus anseios não me são secretos,
pedidos
mesmo a me fazer, frequente
espera
que os escute e que os atenda,
quando
problemas têm a resolver;
algumas
vezes, até pedem meu conselho!
Mas
em geral que interesse até pretenda
no
que me falam, ou ao menos finja ter,
seus
interesses refletindo como espelho.
DESCONGELO
III
Assim
de suas tristezas compartilho,
com
amizade e com gentil paciência,
sempre
que erram, de mim querem leniência,
se
triunfaram, que lustre mais seu brilho.
Seus
sentimentos, então, sempre perfilho,
desilusões
em mim acham complacência
e
muita vez já encontrei igual tendência
de
me deixarem, quando o próprio trilho
percebem
percorrer mais facilmente –
só
me procuram quando outra vez precisam,
na
certeza de que, de novo, escutarei.
E
na medida do possível, sua insistente
necessidade
do que mais cultivam,
com
boa vontade, ainda mais adubarei...
DESCONGELO
IV
Não
sou só eu. Assim existe muita gente,
alguns
bem jovens, em geral, mais velhos
que
se disponham a agir igual espelhos
para
quem quer que seus problemas apresente,
sem
aguardar qualquer retorno, realmente,
sem
repreensões que outrem firam como relhos,
sem
sugerir que em breve movam os artelhos
e
que lhes parem de perturbar a própria mente.
E
dessa forma, há tantos mais, profissionais,
que
se dedicam aos outros escutar
e
até dispostos a lhes vender conselhos!
Quais
sacerdotes em seus confessionais,
penitências
já prescritas a baixar,
em
genuflexões dobrados a ver joelhos...
DESCONGELO
V
Mas
há psiquiatras e há psicanalistas
e
esses a quem chamam consultores,
que
se demonstram bastante empreendedores,
a
financiar assim as suas conquistas!
Mas
não seguimos todos estas pistas,
esses
que somos, nós, escutadores,
perdões
não tendo, sem ser receitadores
de
fáceis drogas com suas negras listras.
Por
que, em geral, nós apenas escutamos;
que
nos escutem sequer nós esperamos:
somos
estátuas, diários, microfones...
nossos
anseios tão somente redigimos
nesses
poemas que nem mais abrimos,
alguns
dos quais, talvez, também consomes!
DESCONGELO
VI
Das
raras vezes em que busquei conselhos
e
quando alguém se dispôs a me escutar,
os
meus ouvidos logo veio a atafulhar
com
seus próprios problemas, feito relhos!
Não
obstante, ao reler tais versos velhos,
mais
gratidão, quiçá, deva mostrar
a
quem buscou em mim descarregar
os
seus problemas, buscando em mim espelhos.
Pois
em minha mente nunca estou sozinho:
ali
ressoam essas cem vozes do passado,
cujas
tristezas ainda posso interpretar;
nestes
meus versos tanto descaminho,
tanto
tormento alheio carregado,
na
escuta inútil, que não os pôde consolar!
TECIDOS E METAIS I – 12 DEZ 07
Meus ossos eu moí por teu amor,
a medula eu tomei por linimento;
dos órgãos esfolei o integumento,
como embalagem de um presente de valor;
guisei minhas carnes em puro
sentimento,
que transformei em versos de palor;
trancei cabelo e barba para expor,
num manto de carinho, o sedimento
do que minha vida tinha de precioso
e tudo te ofertei, sem pedir nada;
recusei meus desejos, fiz-me prata,
estanho e antimônio, em doloroso
transmutar-se no chumbo da
aureolada
coroa de um amor feito de lata...
TECIDOS E METAIS II – 23 JAN 2017
Por mais que sejam metafóricas quimeras,
esses ordálios realmente experimentei;
foi completo esse corpo com que amei,
foi completa a tortura das esperas.
Não forma feita só de impressões meras
o ramalhete de mim que te entreguei,
nem foi só o meu sentir que desgastei,
porem amor orbitando em mil esferas.
Quando se ama, total é nossa entrega
e não somente da alma e coração
e nem apenas é um corpo que se apega,
mas alma e corpo a se tornar em nada,
no líquido esplendor dessa emoção
de sentimentos em louca revoada!
TECIDOS E METAIS III
Há quem amor só tenha corporal;
de fato, creio que assim seja a maioria,
que a amor na posse em geral se resumia,
como se fosse a carne o amor total.
Há quem só tenha o amor espiritual,
em romantismo que mais inspiraria
obras de arte e assim resultaria
no lapidar da raça em cultural.
Mas quando eu amo, não há tal divisão,
a carne aborta-se em transformação
e se mistura num turbilhão de pasmo,
enquanto a alma se materializa,
por mais fugaz que seja essa indivisa
transmutação em cintilante orgasmo!
TECIDOS E METAIS IV
Seria de esperar que se falasse
em iridescentes raios de ouro puro,
a pedra filosofal que o chumbo escuro
nesse metal brilhante transformasse.
Seria de esperar que se apelasse
para metáforas de cunho mais seguro,
já empregadas ao ponto de obscuro
tornar-se o espanto que talvez gerasse.
Mas esse amor tornou-se em fios de
cobre,
que te pudesses eletrizar toda a emoção,
sem fragmento que para outrem sobre,
manifestou-se também como mercúrio,
gotas prateadas a expurgar do coração
qualquer menor sentimento mais espúrio.
TECIDOS E METAIS V
Seria de esperar que se falasse
em tecidos de renda e de brocado,
nas rendas do guipure mais esmerado (*)
ou que imperiais tapeçarias mencionasse.
(*) Pronuncie “guipir”.
Um amor brando que em cetim se
compensasse
em panos furta-cor, todo orvalhado,
amor veludo, macio e acarminado,
que o níveo colo mostrasse e
acarinhasse.
Mas os tecidos de que falo são carnais,
são músculos e nervos, linfa e pele,
lipídeos e protídeos celulares,
tecidos vivos, mas também mortais,
que ao arcabouço ósseo ainda se apele,
mesmo contido em suas conchas tumulares.
TECIDOS E METAIS VI
Mas embora inicialmente recusado
por outro invólucro de aspecto carnal,
por outro espanto mais sentimental,
esse amor, assim compacto e cromado,
molibdênico e titânico, afinal
de magnésio em líquido forjado,
cada tecido em brilho niquelado,
bem mais permeável que caráter temporal,
bem mais durável que qualquer recusa,
bem mais constante que qualquer
aceitação,
amor maciço, em plena solidez,
manifestado na quimera mais profusa,
vivo rubídio dentro ao coração.
amor minério do mais puro manganês!
QUENÓTICA I – 16 DEZ 2007
[ABSTENÇÃO DE USAR PODERES]
As letras de teu nome queimam fundo
dentro em meu coração tornado em pó,
no almofariz dos versos. sob a mó
que esmaga o trigo contra o ariel.
Penso haver-te esquecido, mas profundo
é o lanho em que escorreu a minha resina:
quando é vencido quem amor domina,
é prisioneiro tratado sem quartel. (*)
(*) SEM PIEDADE.
Não que amor fosse pedir que
me poupasse:
já não tenho mais vida, que te dei
e, no suplício, não posso mais sofrer,
que já sofri por ti, sem que ganhasse
nem o suor de ti, por que esperei,
ao ver na palma as letras que quis ler.
QUENÓTICA II – 24 JAN 2017
Ter usado poderia, é coisa certa,
cada artifício que envolve algum namoro,
mas sentiria nisso algum desdouro,
por falsidade que tal amor desperta.
Que primeiro se contemple a alma aberta,
em sorriso cintilante e cor de ouro,
o som suave a murmurar: “Te Adoro!”
quando essa graça já não seja incerta.
E só depois empregar os artifícios,
por que não sejam usados em armadilha,
porém que sejam da entrega a recompensa,
a quem nos ama distribuindo os benefícios,
já os dois seguindo pela mesma trilha,
enquanto amor a seu redor se adensa...
QUENÓTICA III
Qual é o amor que, de fato, vale a pena?
Não é esse que conquista a posição.
de algum cantor ou esportista na ocasião:
não é seu esse amor que sobe à cena,
é mais orgulho ou ambição que o envenena,
algum divórcio a garantir a divisão
dos bens que ele granjeou na profissão;
é bem comum o desdém que amor condena!
Quando obtido a troco de esperança
de opulência ou vaidade, trama antiga,
que mais que nunca entre nós até prossiga,
não sendo amor essa troca por bonança,
que tanta vez vicejou na sociedade,
muito diverso do amor de qualidade!
QUENÓTICA IV
Bem mais sincero é o amor por um Lindoro,
qual no Barbeiro de Sevilha se apresenta,
com estudante a bela jovem se contenta,
só depois a descobrir que seu tesouro
era o Conde de Almaviva, sem desdouro,
gentil amor que a alma inteira esquenta,
um novo ninho a construir de forma lenta,
esforço uníssono a ser cantado em coro.
Por outro lado, também há amor impuro,
esse descrito muito bem em Rigoletto,
no qual o duque pretende pobre ser,
para apenas seduzir, em golpe duro,
alma inocente por seu ardil secreto,
abandonada após ver-se triunfante...
QUENÓTICA V
Então por que ofertar jóias e flores
e convidar alguém para jantares,
para depois dos objetivos alcançares
deixar de lado teus iniciais labores?
Que só depois se ofereçam tais lavores,
quando a amante ou esposa conservares,
bem mais honesto que atrair pelos lidares
só enquanto buscas conquistar amores.
Todo artifício a ser legado à companheira,
como uma prenda de agradecimento
por esse amor que te dá a seu contento,
mesmo esquecida a emoção primeira,
mostrar amor sendo o primeiro rudimento
que fortalece tal relacionamento.
QUENÓTICA VI
Contudo, quando reli esse soneto
que a série atual veio a encabeçar,
rancor secreto me veio a atormentar,
talvez tivesse sido mesmo mais dileto,
esse amor que se mantém todo secreto.
sem de artifícios a mão assim lançar,
mas nesses dias primeiros se empregar
por resultado talvez bem mais concreto.
Que tudo o mais fosse apenas indolência,
em torre de marfim ensimesmada,
pretexto apenas para versos mudos,
numa certa apreciação dessa impotência,
de um falso amor apenas inspirada,
atrás de versos protegido como escudos.
CONTRADIÇÕES
I – 16 DEZ 2007
Não vou
falar do odor de teus cabelos,
nem dizer
para o mundo a cor que têm:
esse é um
segredo para mim também,
que
tantos já guardei nos meus desvelos.
Não
falarei como os lábios são singelos
ou que os
olhos me prendem, porque veem
fulgir-me
o coração; digo, porém,
que
existe muito mais do que olhos belos.
É o que
vejo por trás deles que persegue
meus
sonhos nessas curtas madrugadas,
quando me
deito, os galos a cantar...
É a mente
pura que, bem fundo, segue,
a me
assombrar e que desfaz em nadas
quaisquer
resoluções de me afastar...
CONTRADIÇÕES
II – 25 JAN 2017
Nem a mim
mesmo, por certo, falarei
esse teu
nome no antanho já perdido;
por certo
o sei – jamais será esquecido,
porém
meus próprios lábios selarei.
Ninguém
precisa de saber que te entreguei
a alma e
o coração, sonho falido,
sem que
tivesse a ti, de fato, perseguido,
muito
mais fada nesse sonho que sonhei!
Em fadas
creio, se bem nunca avistei
e nem
sequer encontrei algum duende,
mas os
contemplo no fundo de meu ser,
mesmo
julgando que os jamais verei;
contudo a
fé, no coração, pretende
que além
da fábula ainda os possa ter.
CONTRADIÇÃO
III
E se uma
fada dos céus não me sorriu,
e se
minha fé ansiava ter confirmação,
era
preciso, em meu próprio coração,
fada
criar consoante a mente viu.
Mulher
real assim quis, que consentiu
de um
doce beijo me dar consumação,
de seus
abraços a fiel recordação:
não a
endeusei, que o pedestal partiu.
Mas
depois desse desvelo consumado,
mesmo
sabendo que era apenas ser real,
mesmo em
meus braços possuindo tal mulher,
meu
coração, que sempre foi airado,
preferiu
imaginá-la imaterial
e até
fingiu nunca ter feito amor sequer!
CONTRADIÇÕES
IV
Muito
melhor imaginar que fosse estrela
e se
deixasse arrebatar por um cometa,
para mim
mesmo a se ocultar, secreta,
aquela
vez em que nua a pude vê-la...
Quando em
meus braços inteira pude tê-la,
amor
fazendo da forma mais completa,
sua
carnação na posse mais dileta,
fúlgida a
flor da floração mais bela!
Melhor
fingir que houvesse impedimento,
que tal
amor jamais se consumara,
que
continuasse para sempre desejada!
Plena
adoção de fingido julgamento
maior
desejo em meu peito despertara,
para que
fosse recordada como fada!...
OCEANO DOS SUSPIROS 1 – 26
JAN 17
Para onde há de ir o
coração,
Em sua tonta busca por
desejos?
Algumas vezes o aspiram
beijos,
Vê-se apertado junto a
algum pulmão
Que não aquele de sua
formação,
Ficando o peito vazio em
tais ensejos,
Que se preenche com uns
quantos azulejos,
Por que deslize o sangue na
ocasião.
A gente fica assim, certos
momentos,
Quando em tal beijo o
coração se deu,
Só voltando a palpitar em
sentimentos
Quando outro beijo logo
após nos chega
Ou quando o próprio coração
outrem cedeu,
Porém vazio permanece se
alguém nega!
OCEANO DOS SUSPIROS 2
Para onde irá esse tonto
coração.
Porque, afinal, não cabem
dois no peito!
Se em nosso beijo alguém
achou defeito
E não deseja repeti-lo na
ocasião?
Seu palpitar provoca-lhe a
expulsão,
Desritmado, incerto,
contrafeito,
Ali o nosso não possui
qualquer direito
De ao sangue alheio dar a
sua impulsão!
Provavelmente, ela dará um
suspiro
De alívio, após o beijo ser
roubado
E o coração se escapa em
tal respiro!
Mas desse peito já sai
entontecido,
As suas diástoles num
emaranhado
E cada sístole perdida em
tal olvido!
OCEANO DOS SUSPIROS 3
Assim voa o coração para
outra parte,
Todo enleado nesse vasto
véu
De corações vagando para o
léu,
Após também sofrerem seu
descarte!
Algum sangue conservam
nessa arte
E vão formando um encarnado
céu,
Uns a bater nos outros, que
escarcéu!
Vermelho oceano formando-se
destarte...
Se ao menos coração tivesse
ouvidos
E não apenas suas válvulas
potentes!
A gente chama, porém não
nos escuta!
São pelas ondas encarnadas
percutidos,
Num ritornello que nos
deixa indiferentes,
O nosso peito transformado
em gruta!
OCEANO DOS SUSPIROS 4
Talvez seja possível, com
anzol,
Buscar-se o coração assim
perdido,
Desnorteado a vogar entre o
garrido
Mar encarnado desse vasto
rol!...
E se acenderes nos olhos um
farol,
Talvez sua origem possa ter
reconhecido
E voltar tente, em agitar
sofrido,
Batendo em outros corações
de escol!
O problema é que estão
todos solitários
E em busca dessa luz se
precipitam!
Primeiro chega qualquer
outro coração,
Os meus pulmões lhe sendo
solidários!
E é por isso que na alma
minha brotam
Tantos sonetos de contrária
afirmação!
EMBAIXADA
AO FUTURO I – 27 JAN 17
DONA
AMOR USA ROUPAS VITORIANAS,
AS
SAIAS LARGAS COM CINTURA ESTREITA.
AO
VER OUTRAS DE BIQUINI, CONTRAFEITA
SE
RUBORIZA, MESMO A SENTIR GANAS
DE
CASTIGAR DESPUDORADAS DAMAS;
TALVEZ
A SUA ESBELTEZ ELA DESPEITA.
AO
ESPARTILHO ENCONTRA-SE SUJEITA,
A
SALIENTAR-LHE ASSIM CINTURA E MAMAS...
DONA
AMOR EM QUADRO A ÓLEO FOI PINTADA,
DEPOIS
PASSARAM DIVERSAS GERAÇÕES,
CONSERVADA
COM RESPEITO NUM MUSEU.
PARA
O FUTURO ASSIM FOI ENVIADA
E
NOS CONTEMPLA EM PANÓPLIA DE ILUSÕES
DESDE
A MOLDURA A QUE SEMPRE PERTENCEU!
EMBAIXADA
AO FUTURO II
MAS
SE MOLDURA A ELA ASSIM CIRCUNSCREVEU,
SE
NÃO FOR RESTAURADA, ESSA PINTURA
SERÁ
MARCADA POR MUITA RACHADURA:
DO
ANTIGO AMBIENTE NÃO SE DESPRENDEU!
E
CASO ALGUM RESTAURADOR ENLOUQUECEU,
TODAS
AS ROUPAS A DESPIR DESSA FIGURA,
PINTANDO-A
NUA, VAIDOSA E BEM SEGURA
DESSA
BELEZA QUE O PINCEL LHE CONCEDEU!
EMBAIXADORA
AGORA NO FUTURO,
MORTOS
OS OLHOS QUE A FITARAM ANTES,
COBIÇADA
POR UNS TOLOS DILETANTES,
NESSA
NUDEZ QUE PRESIDE UM OLHAR PURO,
DONA
AMOR, TÃO AMOROSA COMO DANTES,
SENTINDO
FRIO NESSE SALÃO ESCURO!
EMBAIXADA
AO FUTURO III
MAS
JÁ NÃO PODE RETORNAR AO TEMPO ANTIGO!
DOTAM
O TEMPO DE MÃO ÚNICA, É EVIDENTE;
EM
SEU OLHAR PUDOR EXISTE, TRANSPARENTE,
MAS
É ENCARADA, COM OLHAR AMIGO,
POR
TURISTAS DE BUSTIÊ E SHORT
EXÍGUO,
O
SEU CORPO COMPARANDO, CLARAMENTE,
COM
OS QUE VEEM AO ESPELHO, DIARIAMENTE,
POIS
POSOU NUA SEM SOFRER CASTIGO!
ENQUANTO
ELAS ATÉ QUERIAM PELAS RUAS
PODER
ANDAR COMPLETAMENTE NUAS,
SEM
TER DE HIPÓCRITAS A DESAPROVAÇÃO!
POR
QUE O CORPO DA MORTA É MAIS SAGRADO
DO
QUE ESTE SEU, TÃO MORNO E CONSERVADO,
QUE
MAIS NÃO SEJA NA PRESENTE GERAÇÃO?
EMBAIXADA
AO FUTURO IV
PARA
MIM, NOSSO CORPO É ALGO SAGRADO,
O
TEMPLO SENDO DO ESPÍRITO SANTO,
COMO
O EVANGELHO AFIRMA NO SEU CANTO,
SÓ
PELO FRIO OU PROTEÇÃO SENDO EMBUÇADO
E
O DA MULHER DUPLAMENTE CONSAGRADO,
SEMPRE
ALGUM VENTRE NOS SERVIU DE MANTO,
À
LUZ NOS DEU, NAS ALEGRIAS DE SEU PRANTO,
QUANDO
O BEBÊ SOBRE A MÃE É COLOCADO!
QUEM
A NUDEZ CONDENA, É POR INVEJA
DE
NÃO POSSUIR UM CORPO ASSIM PERFEITO
OU
TALVEZ PORQUE NÃO GOSTE DE MULHER,
OU
QUE CAPAZ DE POSSUI-LA NÃO MAIS SEJA,
POR
MAIS QUE ELA DESEJE NO SEU PEITO
E
ASSIM PREFIRA NEM CONTEMPLAR SEQUER!
ASAS DE TRAÇA I – 28 JAN 2017
Conspícuo é para mim que a interrupção
corta a corrente rósea da vaidade
que me estimula a compor em saciedade
os meus acúmulos constante de ilusão.
Mas bem depressa se reafirma o turbilhão,
as ondas correm, em hábito de abade,
espuma após espuma, em vacuidade,
enquanto as linhas se perseguem com paixão.
Porque, no fundo, não há qualquer prazer
em meu afã de aedo – é mais dever, (*)
certa mania, não mais que obrigação
(*) Agir de poeta.
de retalhar meus sonhos, sem querer
fatiar inteiro diariamente o coração,
vermelho talho a palpitar sem quietação.
ASAS DE TRAÇA II
Embora a traça nos cause desconforto,
já que os livros e as roupas nos destrói,
filha do tempo que qualquer destino mói,
plano perfeito desgastando torto,
como um caruncho que se prefere morto
seus cortes finos sobre a alma sói
ou como um rato que no peito rói –
é interessante o contemplar de seu desporto,
porque, afinal, nas asas traz desenhos,
bem melhor sob lupa contemplados,
a olho nu, só no franzir dos cenhos;
porém quem quer, percebe a sua beleza,
no leve adejo desses burilados,
enquanto voa, quase sem defesa!...
ASAS DE TRAÇA III
Tal como a traça traz interrupção
em seu trecho de leitura ou de vestido,
voz mentirosa também tem conseguido
tracejar mente e alma em ocasião
e surge assim, de novo, a obrigação
de refazer o quanto foi perdido.
Mas inspiração de quê se haviam nutrido
os fragmentos em farrapos que ali estão?
Da alma em canto guardei esse rascunho,
sempre atrasado por outros sentimentos,
que a cada dia não somos mais os mesmos!
E até parecem surgir de alheio cunho,
como objetos de contrários julgamentos,
esses pedaços de sonho em soltos esmos!
ASAS DE TRAÇA IV
Igual que traça, me revoa o pensamento
e sobre mente alheia quer pousar,
alguma coisa nela a tracejar
e a preencher com seu próprio julgamento.
É assim que ante teus olhos me apresento,
como um caruncho tua visão a perturbar
com certos versos que envio, de inquietar,
conturbação a provocar em teu alento!...
Mas observa que não deixo ali buraco,
dentro da mente, tampouco no teu peito,
sempre ali deixo o aplique de um enxerto
de minha alma, de que te cortei um naco
e te enviei, talvez desavisado,
nos labirintos de um verso tracejado!...
ANÓFELES I – 29 JAN 2017
Não penso mais em ti – e a prova é esta
que não te escrevo mais qualquer soneto
em que mencione o meu amor secreto,
velório apenas em ocasião de festa!
Essa paixão por ti me foi molesta:
fez-me eclodir à vida, qual inseto,
mas teu amor nunca passou de um feto
e nem sequer nas fraldas nada resta!
Só me serviu como motivo para rimas
e ao mesmo tempo envelheceu, tão de repente!
Antes me achava em coma conservado,
mas ao buscar amor, perdi-me em mimas, (*)
da condição humana – algo frequente;
e já me esqueço de ti, sem mais cuidado...
(*) Unidades de Imitação. Hoje falam em “memes” por triste
Ignorância, já que em inglês se pronuncia “mimes”
ANÓFELES II
Meu coração, por certo, foi picado
pelo probóscide melífluo de um inseto,
dentro dele a provocar um mal secreto,
quando deixei-me picar, desavisado.
Certo é que havia, a bem dizer, parado;
sonhos de amor sofrendo desafeto,
qual diletante a rabiscar verso dileto,
sem por potência de amor ser inspirado.
De algum modo, então, o sangue teu
para mim foi transferido por mosquito,
contaminando assim o estro meu
e novos versos de amor desapiedado
conter não pude no coração aflito,
o mundo agora por mim contaminado!
ANÓFELES III
Pois hoje em dia, o anófeles sou eu,
mas não transmito chikungunya, dengue
ou zika.
É com o vírus da poesia que te pica
esse inseto que a dormir te surpreendeu.
Pois para a vida, novamente, te acendeu,
que ideias novas para a mente indica,
até o medíocre exposto em rima rica:
foi o meu sangue que o anófeles ferveu!
Poesia febril, feroz como a malária,
terçã e sezã em fremente tiritar,
pingando versos ao invés de meu suor,
luzes forjando em meu fervor de pária,
em minha casta inferior a labutar,
ao ar lançando estes mil restos de amor!
Recanto das Letras > Autores >
William Lagos
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