VINHO SALGADO – 25/12/2006
Duodecaneto de William Lagos
(ADÃO E EVA, RAFFAELLO SANZIO DA URBINO)
VINHO
SALGADO I
Quando
vieres novamente aonde eu moro,
Eu
te darei todo o meu doce de flor,
secretamente
feito em casa, cor a cor,
a
flor de arco-íris das faces com que coro.
Quando
mostrares esse olhar que adoro,
te
servirei minha ambrosia de amor
e
um néctar de orvalho feito ardor
será
o aroma com que tua carne enfloro.
Rocio
vermelho de morango azedo,
temperado
com minha expectação
e
o chantilly do vento, em paralelo;
porque
te encontrarei com certo medo,
sem
saber qual humor teu coração
demonstrará,
por todo o meu desvelo...
VINHO
SALGADO II
Quando
vieres assim à minha morada,
irei
buscar, em meu congelador
aquele
vinho que pisoteei de amor
e
pedirei que minha sejas namorada.
No
reluzir de teu olhar de fada,
com
inocência te falarei do meu fervor,
a
rolha arrancarei com mais vigor,
nessa
esperança de que fiques encantada.
E
se esse vinho de amor te seduzir,
macio
e pleno tal como a alvorada,
irei
servi-lo na palma de tua mão
e
assim o beberei, a reluzir,
inteiramente,
não deixando nada,
para
me encher o vazio do coração.
VINHO
SALGADO III
E
se estranhares o meu procedimento,
servir-te-ei
de novo, nessa taça,
feita
de cacos de um amor sem jaça,
que
assim encantará teu julgamento.
O
vinho é feito de meu encantamento,
pisoado
com carinho, em nuance baça,
não
de cachos de uva em roxa massa,
mas
de cachos de saudade e sentimento.
Eu
te darei na boca a comunhão
desse
vinho alaranjado de surpresa,
caso
aceitares a minha sociedade
e
só depois te deitarei no meu colchão,
amassado
por anos de pobreza,
em
travesseiros de anil felicidade.
VINHO
SALGADO IV
Nesse
momento não te possuirei
carne
na carne, porém em acalanto,
te
enxugarei toda lágrima de pranto
e
assim será que te engravidarei.
Pela
mente, quem sabe, nesse santo
conúbio
simples, em que te contarei,
uma
a uma, as legendas desse rei
que
um dia eu fui, usando um longo manto
de
arminho e de veludo, velho sonho,
amendoados
meus olhos de oriental,
quando
vivia em outra encarnação
e
a seguir, tu dormirás, nesse bisonho
devaneio,
sem bem pensar, nem mal,
ao
compassado soar da encantação.
VINHO
SALGADO V
E
hei de livrar-te do velho malefício
que
a vida inteira até então te acompanhou,
teu
coração em geada transformou,
fingindo
apenas para os outros benefício.
Que
a pedra verde desse entranhado vício
ainda
igual que um coração se conservou,
qualquer
sombra de esperança ali restou,
guardando
ao menos de carinho algum resquício.
Porque
amor não se compra e não se vende:
sempre
se dá, mesmo que se não tenha,
na
mais exótica e estranha alocação,
uma
vez que é distribuindo que se prende,
em
leve aposta de que mais amor nos venha,
por
toda a vida em multiplicação.
VINHO
SALGADO VI
Pois
afinal, será mesmo que convém
esperar
que nos venha amor em troca?
Que
um tal amor derramado pela boca
de
outra boca nunca é certo que nos vem.
Tudo
depende das roletas do porém,
quando
amor sobre outro alguém se enfoca.
Algumas
vezes um novo amor se nos aloca,
mas
na verdade é o amor que alguém já tem.
Qual
pequenino amor, mimosa flor,
calada
e pura tal como o miosótis,
prostrado
e humilde qual talo de cravo,
que
já existe em flor, mimoso amor,
assim
regado por nossos meigos dotes,
no
espanto fácil de um leal escravo.
VINHO
SALGADO VII
Com
leite verde, assim que te acordares,
eu
regarei teus lábios, ternamente
e
depois te servirei pão diferente,
amassado
com amêndoa e bezoares. (*)
(*)
Cristais místicos formados nos ventres.
Pois
toda a vida é assim, nos seus esgares,
sempre
o princípio do amor é mais potente,
depois
se faz aos poucos mais pungente:
também
se vive na partilha dos pesares...
Assim
jamais prometerei felicidade:
eu
te darei todo o carinho e nada mais,
amalgamado
em segurança e lealdade,
porque
feliz tu não serás jamais,
a
sina a partilhar da humanidade
quando
empós falsas luzes sempre vais.
VINHO
SALGADO VIII
Faz
parte do destino. Um sonho azul
nos
faz buscar um sonho de amarelo;
sonho
encarnado nos parece belo,
até
enxergar alaranjado mais exul...
E
assim seguimos, até o dia do sepúl- (*)
cro
branquicento a engolir o nosso zelo;
verde
é o desejo em todo o seu desvelo,
mas
para o róseo nos provoca o estul-
(*)
Duplo emprego da grande sinafia.
to
magenta que esnoba a alvorada,
ouro
despido que nos cai do Sol,
púrpura
morta de cada por-do-sol,
até
que a vida antes azulada
se
torne em cinza moída no crisol
da
busca mercurial de um quase nada.
VINHO
SALGADO IX
Pois
todo sonho se mói no almofariz
do
quotidiano ardor da realidade;
ao
encararmos o concreto, na verdade,
escorre
o sonho após seu chafariz.
No
início se projeta em véu de giz,
mas
logo sofre a ação da gravidade
e
assim se esgota, sem mais perenidade
e
até se esquece o tal sonho que se quis!
Quem
sabe ao lado, no fervor do juramento,
por
sob o ralo, instale-se um motor,
retornando
de contínuo as mesmas águas,
mas
desse modo, ao renovar-se o sentimento,
a
água corrompe e se evapora o amor,
sobrando
apenas um chafariz de mágoas.
VINHO
SALGADO X
Destarte,
eu não te iludo que feliz
serás
comigo – não te faço o juramento
senão
de devolver contentamento,
sempre
que triste, sem querer, te fiz.
Se
te magoei, sabe agora que não quis,
nem
o quero agora, no sutil momento,
embora
guarde qualquer pressentimento
de
que o porvir sempre é mudo e nada diz
do
que pretende contra nós fazer
e
nem a nós o que fazer obrigará,
inadvertidamente,
mas sem pausa...
E
desse modo, só te posso prometer,
causada
a mágoa, (que não se apagará),
eu
buscarei para amor mais uma causa.
VINHO
SALGADO XI
Porque
sei bem que a alma feminina
se
magoa, em aparência, sem motivo,
por
mais que amor em nós se mostre vivo,
sempre
a tristeza acompanha a nossa sina.
Só
não podemos deixar que essa assassina
impeça
amor de fazer-se redivivo,
submetido
do rancor ao crivo,
nas
frustrações a que a vida nos inclina.
Mas
eu não saberei – vê se compreendes!
qual
coisa te magoou nesse momento:
demonstra
o homem um diverso julgamento
do
que fere ou agrada... Acho que entendes.
E
desse modo, nem tudo será vinho,
por
mais que busque te demonstrar carinho...
VINHO
SALGADO XII
Mas
por tuas mágoas, eu te darei perfume
e
por tuas dores, abalones de além-mar,
embora
saiba que ainda hei de magoar,
sem
perceber qual a razão desse azedume.
Mas
te trarei toda a lenha para o lume
e
larga rede levarei para pescar...
(Talvez
te dê rancor ter de limpar
os
peixes que trouxer) – e amor se esfume
nessas
tarefas da vida corriqueira...
Como
a gente se engana no sem-fim
das
razões que provocam tantas mágoas!
E
assim salgado será meu vinho, enfim,
temperado
talvez por brandas águas
que
me escorram como lágrima certeira!
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