ÁGUA EM CHAMAS -- Novas
séries de William Lagos -- 19-23 set 2017
água em chamas I -- 19
set 2017
ilusionistas sopram
fogo pela boca;
de fato, é álcool em
que fazem combustão,
pois tão somente no
exterior as chamas são
e com cuidado, não
chamuscam nem a touca!
outros pretendem -- o
que é coisa mais louca --
fazer brotar uma flama
de sua mão;
nesses filmes de magia
se acharão
gritos de espanto de
deixar garganta rouca!
com magnésio criar se
pode o fato,
usando fonte de calor
qualquer
ou impulso elétrico que
o metal inflama;
para emoção já é
preciso outro contato:
se amor se busca
despertar em quem não quer,
bem mais difícil que
segurar tal chama!...
água em chamas II
na verdade, isso é
maneira de dizer,
que amor é chama muito
mais que o fogo,
pois não se extingue
apesar de todo o rogo:
amor insiste, enquanto
quer, permanecer!
precisa a chama de um
certo desafogo,
se ar não tem, presto
vai desvanecer
e combustível é preciso
se trazer,
caso contrário, já se
extingue logo.
mas a flama do amor é diferente,
pois é guardada dentro
ao coração:
pelas hemácias é
oxigenada!...
enquanto sangue houver,
faz-se potente,
da própria alma a fazer
dominação
e algumas vezes, é até
reencarnada!...
água em chamas III
do magnésio, ela não
tem qualquer lampejo,
tampouco explode em
rápida centelha.
mas seu perfume
espalha-se em corbelha:
sua lenha e seu carvão
chamam-se "beijo".
nunca nos queima por
fora nesse ensejo,
externamente, igual
reflexo se espelha;
mesmo flébil,
conserva-se até velha,
paira nos olhos como um
leve adejo...
sem o combustível,
apaga-se a fogueira,
porém o amor apaga-se
por tédio,
faz-se abafado pela
monotonia...
até que durma a chispa
derradeira,
sem que ressurja por um
novo assédio:
hemácias rosa por força
da anemia!...
água em chamas IV
e sendo o sangue dela o
combustível
é água em chamas que
nos enlouquece,
é chama em água que nos
fortalece,
vermelho o sangue em
fogo bem visível.
e sendo a alma o
fósforo possível
é alma em chamas que
ali padece,
é chama em alma de
virente prece,
vencida a alma de
fulgor imarcescível.
assim a alma e o sangue
são iguais,
queima-se o sangue em
dons espirituais,
queima-se a alma em
água feita palha.
se acaso o fogo for
capaz de julgamento,
se esgotará em vão
ressentimento
pela alma em fogo
tornada em maravalha!
falência de amor I --
20 set 17
vou colocar meu amor em
moratória,
pois já me acho por
demais endividado,
cobradoras a encontrar
por todo lado,
cada qual delas mais
peremptória!
já foi-se o tempo da
mulher simplória,
que se iludia com
elogio esfarrapado;
o que elas buscam, com
o máximo cuidado,
é ter um ninho seguro e
pago o empório! (*)
(*) A mercearia ou um
super...
até pensei em propor a
concordata,
mas minhas credoras
jamais vão se acertar:
cada uma delas quer
total seu pagamento,
que para as outras nem
sequer beijo se acata,
suas duplicatas de amor
a me cobrar,
sua sensatez disfarçada
em sentimento...
falência de amor II
porém se moratória eu
alcançasse,
declarar não seria
preciso minha falência;
em outro amor podia
achar benemerência
talvez carinho em belo
empréstimo encontrasse!
mas suspeito que esse
amor também cobrasse,
em troca do calor de
suave ardência,
em paga da amplidão de
sua potência,
que minhalma envolvesse
e até purgasse!
caso no entanto
obtivesse a concordata,
meu nome limpo nas
listas de cupido,
talvez pudesse, nessa
mesma data,
dedicar-me inteiramente
a um novo ardor
e nova firma de amor
teria sido
a fonte próspera de um
gentil sabor...
falência de amor III
concordata não aceitam
e a moratória
terá de ser imperfeita
solução.
a minhas credoras farei
visitação,
dando promessas falsas
como escória...
no meio tempo, para mal
da história,
as suas debêntures
algumas venderão;
não gostarei de por
credor ter um irmão,
de amor platônico a
cobrar-me nota inglória!
e se acaso então
descubro que esse amor
então vendido, era de
fato o mais sincero
e o busco em vão na
credora reviver?...
pois já cedeu para um
outro o seu calor,
o qual me espiará com
olhar fero,
até a processo
ameaçando recorrer!
falência de amor IV
ai, amor, que se perde
em moratória,
por que meu coração foi
tão fugaz,
que a peito virgem
levou amor mendaz,
sinceridade retribuindo
com escória?
por que, em amor
promíscuo, fui capaz
de prometer tantas
vezes nova história,
sem desejar qualquer
levar à glória
que somente em
matrimônio se perfaz?
esse impulso é,
contudo, em mim potente
e assim me faz
naufragar em mil escolhos,
insatisfeito e sempre a
querer mais!...
e para amor sempre
serei reincidente,
a mergulhar em um novo
par de olhos,
que espero nunca fitem
aos demais!...
poeira púrpura I -- 21
set 2017
no cemitério da saudade
dormem sonhos:
não se desmancham, nem
se decompõem,
não se tracejam as
vestes que eles põem,
não são cadáveres nem
zumbis medonhos;
em seus jazigos os
sonhos são risonhos,
os sonhadores mortos os
depõem,
brilhantes poeiras
metálicas compõem
seus montículos de
púrpura bisonhos.
sonhos apenas aguardam,
expectantes,
que novo cérebro seu
auxílio invoque,
sem impaciência ou
esperas delirantes.
dormem nas sombras,
despertam na alvorada,
querendo ser outra vez
pedras de toque,
sua lama púrpura por
lágrimas regada...
poeira púrpura II
há milhares de anos,
gerações
se sucedem velozmente
pelos anos,
mas tal percepção nós,
os humanos,
não encontramos
diretamente em corações.
não é tal qual se
cerrassem os portões
e todos perecessem, sem
enganos
e de um cenário se
abrissem novos panos,
outros atores assumindo
suas funções.
o processo é
diluído... bem reais
são as mortes para
todos, mas em planos
bem diferentes de
locais e idades,
só percebidos nos
cantos dos mortais,
acrescidos ao longo dos
milanos,
a volutear no corpo
manso da saudade!
poeira púrpura III
seguiram gerações
diversas sendas,
muitas passando por
miséria e fome,
que raramente melhor
destino dome,
mil extravios acolhidos
em suas tendas.
viveram gerações
diversas lendas,
as quais seu próprio
imaginar consome;
quando há penúria é o
sonho que se come,
penetrando nas almas
por suas fendas.
numa coisa tão somente
as gerações,
por mais diversos seus
padecimentos
ou os faustos obtidos
que gozaram
se assemelham na cor
das procissões:
quaisquer que fossem
seu razoáveis julgamentos,
na mesma luz
caleidoscópica sonharam!
poeira púrpura IV
por certo os sonhos
foram diferentes,
com mais ou menos
sofisticação,
mas esses sonhos que
deixaram são
adaptáveis às mudanças
permanentes.
novo consolo a
partilhar aos crentes
ou aos incréus em
fulgente exultação;
descansa o corpo, se
acalma o coração,
mas as quimeras
retornam, onipresentes.
e através dos séculos,
o amor
se fortalece em cada sonho
e alenta,
esparzido purpurino à
inteira raça,
gastos os corpos de
cada sonhador,
porém a morte a cada
sonho isenta,
no sangue púrpura da
poeira que o perpassa...
vendendo deus I -- 22
set 17
"todo amor vem de
deus", diz o ditado
ou pelo menos, se depreende
da escritura,
amor ideal em sua vasta
formosura,
sem o egoísmo que tanto
o tem manchado.
"todo amor vem de
deus", mas é ignorado
qual o processo dessa
bênção pura,
na imperfeição
suportamos a tortura
do amor humano, sem
nada de sagrado!
e quando quebra o amor,
duvidaremos
de amor maior, julgado
só um boato,
o imenso amor
dificultoso artigo;
e com surpresa, talvez,
perceberemos
que todo amor vende deus, real o fato,
desde as brumas do
passado o amor antigo.
vendendo deus II
deus não se impõe por
severo sacerdócio,
que em geral, só
apresentam ameaças,
somente um deus feroz
de feras traças
que o pecado nos
brindou, por puro ócio.
e fogo e o enxofre,
sendo péssimo negócio,
temor apenas a produzir
nas massas,
como castigos a
interpretar desgraças,
mais do que deus,
vendendo seu mau sócio!
mas não é essa a
mensagem do evangelho,
é muito mais uma
assertiva dualista,
um ahriman tão potente
quanto ormuz; (*)
(*) princíos do
mal e do bem no zoroastrismo.
pois as epístolas nos
dão da graça o espelho,
o bem e o mal contidos
em igual pista,
a treva apenas a
ausência de uma luz.
vendendo deus III
a mensagem mais real do
cristianismo
é que em si mesma coisa
alguma é má;
se alguém não o crê,
pecado não terá:
a redenção de uma vez
só venceu o abismo!
que "deus é
amor" é mais do que um truísmo;
a sua própria natureza
nos trará
tranquilidade e a paz
nos proverá,
por mais que se persiga
algum modismo.
sem que de fato busquem
entender
que da mensagem o
essencial é a graça
para cristãos,
muçulmanos ou ateus;
qualquer que possa amor
humano conceber
participa dos negócios
dessa praça,
porque, de fato, é
"o amor que vende deus!"
vendendo deus IV
será então o amor um
comerciante?
bem certamente nos
propõe barganhas
nas situações, às
vezes, mais estranhas,
amor se encontra em
vendas de feirante...
mas não se vende amor,
é interessante;
é amor que nos
conquista com suas manhas,
então nos vende o
legítimo e as patranhas,
assaltando os corações
em breve instante.
amor nos vende para a
vida a companhia,
vende as riquezas com
que nos iludimos,
vende a música e os
versos que são teus,
amor nos vende
horóscopo e estrela-guia,
os pais e amigos e os
filhos que possuímos,
por que não pode amor
vender-nos deus?
cacos de amor I -- 23
set 2017
meu coração já se
partiu diversas vezes
e tantas outras o
consertei com araldite
ou qualquer outro
adesivo que habilite
o pobre órgão a durar
mais alguns meses...
e a cada vez que sofri
novos revezes,
um novo coração fiz,
que concite
essa pungente dor que
nos permite
seguir em frente...
amor, não mais me leses!
hoje em dia, meu
coração tão retalhado
ficou, que nem sei mais
qual cicatriz
foi causada por desdém
de qual mulher!
pois cada antigo amor
foi desbotado
por novo amor que
palpitar me quis,
que até parece que
quebrar-se quer!...
cacos de amor II
o coração, ao
partir-se, cai ao chão
e em mil pequenas
lascas se esfarela,
que é necessário juntar
numa gamela
e pilar em almofariz,
sem compaixão!
sofrida assim pelos
cacos tal pressão,
aglutinados são nessa
procela,
fervida em tempo certo
na panela
em que se põe a
borbulhar o coração!...
e essa poeira de ardor
que ali se mói
se mescla inteira, em
coração dileto,
no lugar dessa tristeza
que nos rói;
e então se afastam três
pares de costelas
e no orifício aberto
assim completo
brilha uma luz qual
lampião pelas janelas!
cacos de amor III
pois só assim, após
moer despeito,
desdém, ciúme,
desaponto e até desdita,
que o coração que a
mágoa fez em brita
de novo pode-se inserir
no peito...
sem o completo mastigar
perfeito,
seria o coração atado
em fita
que as quebraduras a se
prender concita
arestas e reentrâncias
de mau jeito...
o coração assim é
restaurado,
mas quase tudo já
esqueceu do amor
que o havia partido em
estridor;
e destarte,
inteiramente renovado,
sem ter qualquer resquicio
de censura,
enfrenta o mundo com
inocência pura!
cacos de amor IV
mas a questão é que
essa perda de memória
de novo deixa o pobre
órgão vulnerável
que a uma nova tentação
faz-se maleável,
sem recordar, quiçá,
sua pena inglória!
surge de novo uma
paixão peremptória
e o coração se entrega,
conquistável,
perdido todo nesse
êxtase amorável,
até quebrar-se outra
vez em pobre escória!
melhor seria ter então
cacos de amor
colados mal e mal,
porém guardando
a pena antiga e as
mágoas que tiveste...
que o coração colado
com fervor
com desconfiança a
outro amor se vá negando,
sem entregar-se, tal
qual no antanho o deste!
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