Mulher de
Pedra – 26/11-5/12/2018
Novas Séries
de William Lagos
Mulher de Pedra III – 26/11/2018
Funerais da Veleidade III – 27/11/2018
Funerais da Humanidade III – 28/11/2018
Bdélio III – 29/11/2018
Ponto de Desespero V – 30/11/2018
Funerais da Juventude IV – 1º/12/2018
Dores de Mãe IV – 2/12/2018
Funerais da Velhice VI – 3/12/2018
Jangadas à Vista III – 4/12/2018
Funerais de Bonecos VI – 5/12/2018
MULHER DE PEDRA I –
26 nov 2018
Essa mulher que amo
há tantos anos
tem no seu sangue
certo sabor de mel,
traz em seus olhos
brilho de ouropel,
mostra nos lábios
desdém e desenganos;
tem em seu rosto a
marca dos afanos,
canta em sua voz o
timbrar do menestrel,
marca no corpo a exigência
de um cartel,
traz em seus ossos a
força dos romanos.
Tange nas mãos o meu
sonhar inteiro,
pisa nos pés meu
passo derradeiro,
revela nalma gotas de
cristal,
derrama sobre mim o
bem e o mal
e assim me leva a
redigir versos insanos
esta mulher que amo
há tantos anos!
MULHER DE PEDRA II
Contudo, ainda que a
tive entre meus braços,
por tanta vez, a se
tornar meu plenilúnio,
na sombra tempestuosa
em solilúnio
e que me teve prendido
em seus abraços;
contudo, ainda que
todos os seus traços
tenha beijado no vagar
do estrelilúnio,
para me ver requeimado
em meteorúnio,
não fui jamais o dono
de seus passos.
Nem dos terrestres,
sua sombra a projetar,
nem dos mentais, sem
sombra para dar,
senão aquela que alcatifa
a noosfera,
igual estátua de um
arcano professar,
tudo me deu do nada
que me dera,
nada me deu de quanto
eu mais quisera.
MULHER DE PEDRA III
Sempre achei nela o
sabor do inatingível,
por mais pétrea e
concreta a superfície,
quando a tocava, só
me fulgia a efígie,
tocando a pedra, mas
não o irrefragável;
e ainda a toco, no
mesmo imponderável
orbitar de um cometa
em solifície,
meus meteoros a
esbater solstície,
em magnética expulsão
inconquistável.
Pois beijo o pórfiro,
sem adentrar marfim,
só as papilas a
percorrer a alabastrina
tensão superficial
desse carmim,
dando-me apenas o
olor desse alecrim,
chá de ilusão a trescalar
minha sina,
mesmo na entrega de
seus momentos para mim.
FUNERAIS DA VELEIDADE
I – 27 NOV 2018
Peço vingança para os
sonhos imprudentes
que a metralha do amor
pulverizou;
de cada sonho um verso
meu brotou,
capturado em suas
grades inclementes;
minhas quimeras
pinotearam impotentes,
caleidoscópico o olhar
que me mostrou;
houve momentos em que
a porta descerrou,
porém fechou-a às
promessas mais ardentes.
Deixou-me assim nessa
pirotecnia,
sem que jamais
ascendesse em meu balão,
fui como círios em umidade
de ilusão,
cujo fulgor uma
acendalha não faria,
projetados assim à
estratosfera,
entre os satélites de
metal da redesfera.
FUNERAIS DA VELEIDADE II
Ali estão eles, no vácuo rodopiam,
esses meus sonhos para sempre insatisfeitos,
encapelados em seus cósmicos trejeitos,
entre artefatos que a lampejar me espiam,
das órbitas a desviar em que se agiam
a seu redor em mil complexos perfeitos,
abalroados por robóticos defeitos,
sonhos ondulam que em mim antes dormiam.
Quais em patíbulos, cravados os alfinetes
de tanta estrela, outros tantos camafeus,
pobres quimeras em seus vagos perigeus,
equipolências cujas várzeas não completes,
entre os grilhões dessa prisão aberta,
ali encadeados pela certeza incerta.
FUNERAIS DA VELEIDADE
III
Quem os mandou para tal
órbita sincrônica?
É de mim mesmo que
demando esta vingança?
Até onde meu descaso
agita e alcança
prantos confusos de
projeção sinfônica?
Por que estas frases
de agilidade catatônica,
no semietílico entoar
de sua pujança,
a mente em alpha nuançada de garança,
a diluir-se na prece
mais lacônica...
Mortos das ondas se
lançavam para o mar,
múmias cremadas se
evolavam para o ar,
para onde sopram as
minhas saciedades?
Nem sobre a Terra as
venho derrmar,
Nem para o Sol
espirala-se o orbitar,
só de mim mesmo a
mastigar as veleidades.
FUNERAIS DA
HUMANIDADE I – 28 NOV 2018
Percebo, às vezes,
a imagem de algum cão
ou de algum gato a
deslizar furtivamente,
na periférica
visão intermitente:
pela surpresa a
palpitar-me o coração!
Tanto fantasma
acorrentado na ilusão,
finas pestanas a
me fundir corrente:
batem as pálpebras
e assombração fremente
se desenvolve no
lacrimejo da ocasião...
Quanto profeta com
tal olhar se ilude
e nele vê demônios
sacrilégicos,
ou a imagem de
seráficos angélicos,
que em sua
autoimportância então se escude,
como o centro do
mundo no seu berço,
nessa antegozo de
um revelar imerso!
FUNERAIS DA
HUMANIDADE II
Seja “o profeta
que em cinza a fronte envolve,” (*)
ou simples alma a
chorar na quarta-feira
por seu castigo a
culpa bem certeira,
tal como as
páginas de um livro o santo volve
e a soma final de teus
mil atos solve,
numa equação
perene e derradeira,
qual se importasse
a divindade inteira
com pecadilho em
que o corpo se revolve!
(*) Hommage a “Vozes
d’África”.
Se ao próprio Deus
tanto se antropomorfiza,
não é de se
espantar que os mais mesquinhos
humanos
sentimentos lhe atribuam;
se o próprio mal
então se diviniza
na divisão dos
mortos, pobrezinhos,
mediante as faltas
e purezas com que atuam!
FUNERAIS DA
HUMANIDADE III
Naturalmente, foi
o Inferno imaginado
como o ergástulo
de nossos inimigos,
cada nação a
elaborar os seus castigos,
até ser o
sacerdócio organizado;
e como esse
conjunto desusado
de povos a
desvairar em tais perigos
não estivesse ao
alcance, tais jazigos
preencheram com os
fiéis a seus cuidados!
Bem mais fáceis de
atormentar pelas suas faltas,
quer reais ou
imaginárias os seus crentes
do que estranhos
que nem se importariam,
ditas divinas
instruções por essas maltas,
em purgatórios de
horrores mais pungentes,
que absolver
somente eles poderiam...
BDÉLIO
I – 29 NOV 2018
Amor,
às vezes, é misterioso desespero,
Tão
elusivo como um corvo fugidio,
Sem
ter um corpo, só aridez de estio,
Sombra
somente, em redemoinho mero.
Algumas
vezes em mim mesmo gero
Tal
amor que se derrete sem ter brio,
Essa
paixão por fantasma sem ter cio,
Essa
equação que deve sempre somar zero.
Que
só é perfeita se não traz um resultado
Menor
que o nada ou maior que o absoluto,
Amor
vasado no mais sutil anacoluto,
Sempre
diverso do amor que era aguardado,
Amor
feérico, cuja força não disputo,
Mas
que se encontra só em mim emsimesmado.
BDÉLIO
II
Estranho
amor, tal qual muiraquitã,
Consagrado
por ameríndio feiticeiro
Ou
a um breve de africano curandeiro
Ou
vademecum confeccionado por xamã.
Amor
inócuo, tal qual um talismã,
Cujo
poder eu lhe confiro inteiro
E
se o deixar, nem por átimo certeiro,
Terá
poder de outrem nutrir em seu afã.
Esse
bdélio é uma planta resinosa,
Quando
recente até bastante perfumosa,
Sobremaneira
a apreciavam os alquimistas,
Que
condensavam a resina em seus cadinhos,
Até
formar uma pedra; e nela avistas,
Talvez
um rosto, espada ou passarinhos.
BDÉLIO
III
Nada
se encontra aqui pecaminoso;
Ela
é citada nas Santas Escrituras...
Mas
as tornavam em relíquias puras,
Gravando
nelas o amor mais poderoso
Ou
o poder explorador mais venturoso
Ou
a prosperidade em suas verduras,
Capacidade
de evitar quaisquer torturas,
Qual
talismã podia ser mais generoso?
E
assim o amor do misterioso desespero,
Tal
e qual faz o bdélio, traz valia,
Ser-me-á
útil para aquilo que o queria,
Mas
para outrem com validade zero,
Por
ser o amor de minha própria evanescência,
Só
em minhalma a despertar esta aquiescência.
PONTO
DE DESESPERO I – 30 NOV 2018
Quando
a mulher se separa em meia-idade,
qualquer
motivo a provocar separação,
sofre
seu mundo tremenda mutação,
velhos
valores a se perder em vacuidade.
É
bem comum que o ciúme ou sua vaidade
a
levem a requerer essa inversão:
seu
marido “a traiu”, nessa expressão
que
se fez hoje vazia, é bem verdade.
Também
ele viu passar-se a mocidade
e
renovada pensa ver a juventude
em
novo amor com o qual breve se ilude,
tão
poderoso quanto a própria vacuidade,
mas
que fazer, se encontra quem o queira,
do
antigo amor já desfeita a antiga esteira?
PONTO
DE DESESPERO II
Por
certas vezes, é claro, é o contrário,
é
a esposa “que trai” o seu marido;
se
de tranquilos sentimentos foi nutrido,
não
apela para um ato atrabiliário,
não
toma uma pistola, ato nefário,
para
matar o amante ou seu perdido
amor
pela mulher que havia escolhido,
mas
simplesmente separa o seu erário.
Será
fácil quem o queira consolar,
qualquer
mulher mais jovem, geralmente,
problema
algum a lhe causar tal diferença;
tanta
mulher um novo pai buscando achar,
tal
como Freud explicava alegremente,
qualquer
que seja o fundo de sua crença…
PONTO
DE DESESPERO III
Mas
a mulher, com quem vai se aconchegar?
Não
faltará quem lhe dê amor sexual,
perfeitamente
hoje aceitável no social
ou
qualquer espertalhão para a explorar.
Mas
novo amor verdadeiro, onde encontrar?
Com
sorte fruto de outra quebra marital.
ou
então viúvo, já sem par matrimonial...
Mas
se é um jovem por quem vai se apaixonar?
Isto,
de fato, não é coisa em nada rara,
mas
de algum modo, é contra a biologia,
que
a natureza, certamente, aguardaria
de
um novo amor os filhos que prepara,
que
algum homem geralmente geraria
na
nova esposa que se lhe tornou cara.
PONTO
DE DESESPERO IV
Mas
a mulher que já ganha certa idade,
dificilmente
será capaz de procriar
e
como fica esse jovem a abraçar?
A
biologia não é dotada de piedade.
A
sua semente não terá posteridade,
seus
feromônios não mais a apresentar,
por
mais desejo que pretenda se afirmar
em
propensão para tal fertilidade.
E
quantas passam então por desespero,
a
amaldiçoar a idade que já têm,
nas
noites frias em que se ausenta o amante.
Por
mais que trate rosto e corpo com esmero
ou
que outros filhos não deseje ter também,
sua
insegurança se achará sempre constante.
PONTO
DE DESESPERO V
Essa
a tragédia do sofrimento feminino,
mais
transitório na ilusão da formosura;
tampouco
ao homem a robustez lhe dura,
mas
perde menos o seu lado masculino.
É
lamentável assim nosso destino;
na
vida livre, de permeio à agrura,
durações
breves, sem faixas de amargura,
tampouco
doces, em seu marchar de peregrino.
Contudo
hoje, quando vivemos muito mais,
não
serve o sexo para o simples procriar,
mas
como fonte de prazer e de alegria,
mas
se imiscui em sofrimento por demais,
nesse
descaso que imprime a biologia,
mulher
infértil sempre pronta a descartar!
FUNERAIS
DA JUVENTUDE I – 1º DEZ 2018
“De
que serve adquirir sabedoria
e
saber como conduzir casos de amor,”
quando
o botão desabrochado em flor
ao
nosso bosque não mais retornaria?
De
que nos serve amor, se nos fugia
a
meiga ninfa de nosso resplendor,
quando
a musa não responde ao nosso ardor
e
nem um zéfiro em nossa boca sopraria?
De
que serviu o dom que se perdia
por
dentre a juventude inconsequente?
Como
era fácil a palavra indiferente...
Amor
tão fácil se então desprezaria,
nessas
ações de fútil presunção,
tempo
de amor desperdiçado sem razão...
FUNERAIS DA JUVENTUDE
II
Quanta vez já escutei a
meu redor
as pessoas se queixarem
da velhice,
perdido o viço da
imortal ledice,
tão imortal quanto gota
de calor,
que após pingar,
olvidada sem valor,
só ao frio dará lugar
em vã tolice;
pela beleza a se
encontrar esquisitice,
na academia algum resto
de vigor...
Já quanta vez
afirmou-se o aforismo:
que juventude é por
demais preciosa
para com os jovens se
desperdiçar!
Variados os sentidos,
sem sofismo,
de que adianta essa
busca perfumosa
na flor que em livro se
decidiu guardar?
FUNERAIS DA JUVENTUDE
III
Vá que nas décadas
grisalhas desta vida
surja a esperança de um
novel amor,
para o organismo algo
de alentador
e, no entretanto, à
esperança consentida,
por mais que seja assim
correspondida,
não mais se pode
demonstrar igual pendor:
já não se faz com
tripudiante ardor
quanto se fez em outra
década perdida...
Bom é então desfrutar
sabedoria
de simplesmente aceitar
limitação,
sem recair na mais
triste condição
de renegar totalmente a
nostalgia,
que cada década nos
traz seu próprio dom
e cada dom traz à
década seu tom...
FUNERAIS
DA JUVENTUDE IV
O
que é mais triste que ver a nosso entorno
essa
gente que não ganhou sabedoria,
a
quem a idade em nada ajudaria,
tentando
em vão abanar seu fogo morno,
buscando
inútil cozinhar em aberto forno,
do
ridículo em sua nova fantasia,
na
maquiagem com que a face se iludia,
no
acumular vazio de um novo adorno!
Um
dia, talvez, a antiga ninfa te apareça,
(já
enrugada e dolente, não se esqueça!)
quando
outra ninfa mais jovem não se encontre
ou
torne a musa (já um tanto desdentada),
mais
uma vez a se querer acarinhada,
pelos
afagos que em desalento nos demonstre.
DORES DE MÃE I – 2 DEZ 2018
conforme dizem as santas escrituras,
com sua morte, permeio a cruas dores,
sofre o senhor em breves estertores,
a si levando a multidão de agruras;
porém não foram só três horas de torturas,
flagelação anterior lhe trouxe ardores
e para a cruz carregou parcos vigores,
exemplo claro de fragilidades puras...
mais do que tudo a razão do sofrimento
foi receber a humana natureza
e com ela nossas culpas e remorsos;
essa a razão maior de seu lamento,
mais do que a cruz sua carga de incerteza
a desgastar lentamente seus esforços.
DORES DE MÃE II
diz a doutrina que tais dores suportou
tanto dos vivos como de tantos mortos
e mais ainda, abriu seus próprios portos
a quantos males de quem depois chegou;
por isso em nossa natureza se afirmou,
na aceitação de nossos passos tortos,
na frustração dos sonhos em abortos,
nos descaminhos em que o homem penetrou;
mas uma dor jamais experimentou,
a mais frequente, talvez, da humanidade:
a dessa mãe que perdeu maternidade,
que filho morto em seus braços sustentou,
fosse ele adulto, fosse ainda criança:
dói algo mais que perder essa esperança?
DORES DE MÃE III
por certo um pai também pode assim sofrer,
mas em seu íntimo traz conhecimento
de outro poder gerar nesse momento.
talvez a mãe outros filhos possa ter,
mas não há sobressalente, se morrer
esse que teve com tanto sofrimento,
muito mais forte o seu padecimento
por essa parte de si que viu perder;
talvez nos digam que a virgem maria
sentiu a dor da perda desse filho
e com ele partilhou dessa agonia,
porém não creio que algum homem possa
percorrer integralmente o álgido trilho,
mesmo que nele a divindade o endossa.
DORES DE MÃE IV
e quanta vez, na secular esteira,
viram as mães morrer sua descendência?
antigamente já se aguardava essa impotência:
muitos nasciam então dessa maneira
e alguns ficavam, sem estéril ser a jeira,
débil consolo dessa triste ardência...
mas qual a mãe que esquece essa falência
e ao morto encara de forma sobranceira?
pois essa dor jesus jamais experimentou,
não realizou mensalmente o sacrifício,
nem abortou, por bom motivo ou vício,
nem odiou a quem seu filho exterminou,
não foi pranteá-lo ao lado do ataúde,
mais do que a cruz foi tal destino rude!
FUNERAIS DA VELHICE I – 3 DEZ 2018
sempre é constante a insatisfação,
essa revolta, essa injusta sensação
do tempo a trovejar tal qual monção
a inundar praia do oriente sem piedade!
sempre parece mais um ato de maldade
que as coisas passem sem dar saciedade,
que nos movamos em continuidade,
sempre em única e constante direção.
a vida segue e come a juventude...
qual é o problema?
queres ter o dom da vida,
mas não o preço que o viver te cobra?
procura o arco-íris de tua senectude,
vive o presente, não a ilusão perdida,
sem muita fé no tempo que te sobra!
FUNERAIS DA VELHICE II
eu, pessoalmente, não protesto
assim;
sei viverei tal qual meus
ancestrais;
que a maioria já permaneço mais
e ainda consigo assoprar o meu
clarim;
não me parece ser um amargo fim
que nos reunir tenhamos aos
demais;
a vida acaba por processos
naturais,
pouco me importa que me chegue,
enfim.
não é a morte que temo, mas
doença,
em especial as incapacitantes,
que já não possa locomover-me como
dantes,
que tenha de envergar mortalha
densa
de um cortejo de glácida algidez,
antes que a morte me chegue por
sua vez.
FUNERAIS DA VELHICE III
seja a velhice uma ocasiao bem-vinda,
enquanto os passos podes dirigir,
enquanto o olhar ainda possa perquirir,
enquanto existe uma esperança infinda,
enquanto guardas senso de humor ainda,
que em cada dor ainda possas distinguir
essa ironia que te vem a seduzir
e mesmo no amargor ver coisa linda!
pouco me importa que a morte venha agora!
sempre existe a urdefesa que a renega;
racionalmente, bem sei que me virá,
quando a velhice
despedirei embora,
sem mais saudade da carne que me apega,
tão só curioso sobre o quanto advirá!
FUNERAIS DA VELHICE IV
não se pense que acalento uma certeza
de vida eterna ou de sonho permanente;
do santo espírito sou fiel e crente,
mas nunca veio prometer-me sua defesa;
se em deus eu creio é ao contemplar beleza,
mesmo que exista a meu redor indiferente
sobre se vivo ou se sou inexistente,
sem pretensão de não sofrer crueza,
pois o que sei ou que li só foi escrito
por humanos como eu e tais promessas,
ponderadas ou gravadas sendo às pressas,
não me afirmou o santo deus bendito,
nem extendeu para mim o seu favor,
por mais que nelas creia com fervor.
FUNERAIS DA VELHICE V
como posso ter assim qualquer
certeza?
se assim tivesse, não teria fé;
(*)
no imponderável é que se encotnra
a sé
ou pelo menos, no badalo da
incerteza;
que o sol nasça amanhã não é uma
reza,
é segurança, garantia sempre em
pé;
numa planicie me ergo a seu sopé,
na plenitude de rever a sua
beleza.
fora disso, ten ho certeza da
velhice,
mas certamente não a teria no
passado;
por muitos anos fui por ela
aquinhoado,
tremer assim por seu fim é uma
tolice
o fim do filme ver aguardo, finalmente,
ou então me calarei, tão
simplesmente.
(*) Credo quia absurdum (Creio porque é absurdo),
expressão de Santo Agostinho, depois adotada por
Tertuliano.
FUNERAIS DA VELHICE VI
pouco me importa que a morte seja o fim
ou um princípio totalmente renovado;
apenas sei o que por outrem foi gravado,
até a mensagem do evangelho, enfim;
que a morte venha, como vem para o jasmim:
teve seu tempo bem determinado;
não acredito que o meu foi calculado,
soprei eu mesmo meu toque de arlequim
e aqui me encontro por minha própria escolha,
cada momento a costurar meu fado,
entre os farrapos da vida embaralhado;
só saberei quando a morte alfim me colha
se noutro campo de cereal serei plantado
ou sobre a alma então se aperte a firme rolha!
JANGADAS À VISTA I – 4 DEZ 18
dizer que se ama nada significa,
senão que se deseja o que se quer,
nessa ânsia de posse da mulher,
que toda essa atitude assim explica;
já em mostrar ter amor a coisa se complica,
pois é como se julgássemos mister
demonstrar esse amor a quem nos der
razão de gratidão que nalma fica.
fingir que não se ama é ainda pior,
fica o desejo escondido atrás dos olhos,
nessa derrota do combate não travado;
demonstrar que se ama é um bem maior,
por mais difíceis as brumas e os escolhos,
sem exigir que nada em troca seja dado.
JANGADAS À VISTA II
na irrefutável solidão humana
raramente somos autosuficientes;
da sociedade vêm pressões ingentes
e cada união requerida nos irmana,
e não apenas para o sexo conclama,
mas à partilha seus chamados mais frequentes,
que se completam em cantos impotentes,
no renovar que o perturbar abana.
e nesse mar de perfeita solitude,
vagamos nós, permeio aos tubarões,
muitos de nós com pernas já cortadas
e como pode a água macia ser tão rude,
a nós girar de permeio aos furacões,
humanas vidas assim tanto dispersadas!
JANGADAS À VISTA III
e nesse mar de intensa solidão,
bem ao longe, se percebe branca vela,
não é um vapor avistado na procela,
só uma jangada de simples construção,
mas esses troncos representam salvação,
se tripulados por gentil donzela
e nosso único destino se revela,
em mil braçadas de desesperação.
dizer que se ama nada significa,
se precisamos de subir numa jangada,
por um amor apenas tripulada,
mas se a mulher a abraçar-nos fica,
palavra alguma terá real significado,
somente o amor que nos tenha demonstrado.
Funerais de bonecos 1 – 5
dezembro 2018
Marcha papel, cabeça de
soldado!
Quando menino, eu tinha
regimentos
De soldados de chumbo;
quatrocentos
E mais soldados de um
album ilustrado,
Que a Editora Abril havia
publicado;
Outros de pano, uniformes
opulentos
Que eu mesmo costurara,
dedos bentos,
Que me serviram para
tanto fado.
Mas de todos, mais
gostava dos calungas,
Recortados em papel, sem
qualquer molde,
Que fazia aos milhares e,
em batalhas,
Degolava às centenas,
pobres dungas!...
Já os de chumbo
precisavam quem os solde;
Nos de papel desenhava
mil medalhas...
Funerais de bonecos 2
Quantas horas, na
infância e adolescência,
Assim gastei, general de
mil batalhas
E nem deixava perdidas
essas malhas:
Relatórios de combate,
com frequência
Datilografava depois, com
excelência,
Sobre a conquista de
cidades com muralhas,
Meu próprio mundo a
construir sem falhas,
Mas sem magia de singular
potência.
Salvo, talvez, na
medicina de meu forte,
Que os ferimentos, até de
maior porte,
Eram tratados com mágica
adesiva,
Pois, afinal, eram
calungas de papel,
Ressuscitados para seu
quartel!...
Dos “inimigos” tão só o
viver se priva...
Funerais de bonecos 3
Repassei os relatórios de combate
E mesmo os mapas que havia elaborado
A um filho meu; ao exílio condenado
O meu exército, mas furtado ao próprio abate,
Junto aos soldados de chumbo, nesse engate,
Cada um deles com esmalte repintado,
Um quebrado com gesso e cera consertado,
Para o comando transitório de outro vate.
Os de plástico um outro filho recebeu,
Incluindo os caminhões e a artilharia;
Para meus netos talvez guardar podia;
Espero assim ter-lhes dado algum prazer,
Antes do incêncio que minha casa queimaria,
Com tudo o mais que a mim coubera pertencer.
Funerais de bonecos 4
Os soldados colocava sobre a mesa,
Uma tropa a cada lado, separados,
Em cada ponta os inimigos afastados
E um pedacinho de madeira, sem defesa,
Se deslizava sobre o tampo, com certeza
Maior ou menor, para morrer os derrubados,
Ao “cemitério” então sendo transportados,
Substituídos por reservas na proeza,
Até “morrerem” todos os de um lado,
O jogo assim concluído e terminado,
E então se combinar nova partida...
Pensando em morte, tudo isto foi lembrado,
Na lembrança tantos anos de minha vida,
Cada soldado na memória conservado...
Funerais de bonecos 5
Não me recordo se os da
Editora Abril
Para quem foram
eventualmente destinados;
De um segundo fascículo
recortados,
Dobraram os efetivos –
quase mil!
Esses de pano a teatrinho
bem gentil
Se destinavam, em fantoches
consagrados;
Seus espetáculos depois
descontinuados,
Eu os guardei, na ambição
mais infantil.
E outros tantos fui
depois confeccionar,
Embora todos do sexo
masculino,
Só os antigos tendo as
suas esposas,
Porém ricos uniformes a
ostentar,
Com nomes árabes em seu
registro fino,
Talvez janízaros para
lutas portentosas!
Funerais de bonecos 6
Pois realmente nunca me
importei
Se me diziam que menino
não brincava
Com bonecas... De
soldados os chamava
E escaramuças com os meus
organizei;
Para minha irmã, finalmente,
os entreguei,
Diariamente para ela os
emprestava
E enfim, meu pai até o
determinava:
“São coisa de menina!” –
e assim, os dei.
Mas vejam só! Tão logo fez-se a dona,
Praticamente nunca mais
brincou!
Com os demais segui em
minhas batalhas,
Até que um dia abri uma
caixa pesadona,
Todos mofados, depois que
ali os desprezou...
Pobres fantoches,
enterrados sem mortalhas!
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