sábado, 27 de julho de 2019




Mulher de Pedra – 26/11-5/12/2018
Novas Séries de William Lagos



Mulher de Pedra III – 26/11/2018
Funerais da Veleidade III – 27/11/2018
Funerais da Humanidade III – 28/11/2018
Bdélio III – 29/11/2018
Ponto de Desespero V – 30/11/2018
Funerais da Juventude IV – 1º/12/2018
Dores de Mãe IV – 2/12/2018
Funerais da Velhice VI – 3/12/2018
Jangadas à Vista III – 4/12/2018
Funerais de Bonecos VI – 5/12/2018

MULHER DE PEDRA I – 26 nov 2018

Essa mulher que amo há tantos anos
tem no seu sangue certo sabor de mel,
traz em seus olhos brilho de ouropel,
mostra nos lábios desdém e desenganos;
tem em seu rosto a marca dos afanos,
canta em sua voz o timbrar do menestrel,
marca no corpo a exigência de um cartel,
traz em seus ossos a força dos romanos.

Tange nas mãos o meu sonhar inteiro,
pisa nos pés meu passo derradeiro,
revela nalma gotas de cristal,
derrama sobre mim o bem e o mal
e assim me leva a redigir versos insanos
esta mulher que amo há tantos anos!

MULHER DE PEDRA II

Contudo, ainda que a tive entre meus braços,
por tanta vez, a se tornar meu plenilúnio,
na sombra tempestuosa em solilúnio
e que me teve prendido em seus abraços;
contudo, ainda que todos os seus traços
tenha beijado no vagar do estrelilúnio,
para me ver requeimado em meteorúnio,
não fui jamais o dono de seus passos.

Nem dos terrestres, sua sombra a projetar,
nem dos mentais, sem sombra para dar,
senão aquela que alcatifa a noosfera,
igual estátua de um arcano professar,
tudo me deu do nada que me dera,
nada me deu de quanto eu mais quisera.

MULHER DE PEDRA III

Sempre achei nela o sabor do inatingível,
por mais pétrea e concreta a superfície,
quando a tocava, só me fulgia a efígie,
tocando a pedra, mas não o irrefragável;
e ainda a toco, no mesmo imponderável
orbitar de um cometa em solifície,
meus meteoros a esbater solstície,
em magnética expulsão inconquistável.

Pois beijo o pórfiro, sem adentrar marfim,
só as papilas a percorrer a alabastrina
tensão superficial desse carmim,
dando-me apenas o olor desse alecrim,
chá de ilusão a trescalar minha sina,
mesmo na entrega de seus momentos para mim.

FUNERAIS DA VELEIDADE I – 27 NOV 2018

Peço vingança para os sonhos imprudentes
que a metralha do amor pulverizou;
de cada sonho um verso meu brotou,
capturado em suas grades inclementes;
minhas quimeras pinotearam impotentes,
caleidoscópico o olhar que me mostrou;
houve momentos em que a porta descerrou,
porém fechou-a às promessas mais ardentes.

Deixou-me assim nessa pirotecnia,
sem que jamais ascendesse em meu balão,
fui como círios em umidade de ilusão,
cujo fulgor uma acendalha não faria,
projetados assim à estratosfera,
entre os satélites de metal da redesfera.

FUNERAIS DA VELEIDADE II

Ali estão eles, no vácuo rodopiam,
esses meus sonhos para sempre insatisfeitos,
encapelados em seus cósmicos trejeitos,
entre artefatos que a lampejar me espiam,
das órbitas a desviar em que se agiam
a seu redor em mil complexos perfeitos,
abalroados por robóticos defeitos,
sonhos ondulam que em mim antes dormiam.

Quais em patíbulos, cravados os alfinetes
de tanta estrela, outros tantos camafeus,
pobres quimeras em seus vagos perigeus,
equipolências cujas várzeas não completes,
entre os grilhões dessa prisão aberta,
ali encadeados pela certeza incerta.

FUNERAIS DA VELEIDADE III

Quem os mandou para tal órbita sincrônica?
É de mim mesmo que demando esta vingança?
Até onde meu descaso agita e alcança
prantos confusos de projeção sinfônica?
Por que estas frases de agilidade catatônica,
no semietílico entoar de sua pujança,
a mente em alpha nuançada de garança,
a diluir-se na prece mais lacônica...

Mortos das ondas se lançavam para o mar,
múmias cremadas se evolavam para o ar,
para onde sopram as minhas saciedades?
Nem sobre a Terra as venho derrmar,
Nem para o Sol espirala-se o orbitar,
só de mim mesmo a mastigar as veleidades.

FUNERAIS DA HUMANIDADE I – 28 NOV 2018

Percebo, às vezes, a imagem de algum cão
ou de algum gato a deslizar furtivamente,
na periférica visão intermitente:
pela surpresa a palpitar-me o coração!
Tanto fantasma acorrentado na ilusão,
finas pestanas a me fundir corrente:
batem as pálpebras e assombração fremente
se desenvolve no lacrimejo da ocasião...

Quanto profeta com tal olhar se ilude
e nele vê demônios sacrilégicos,
ou a imagem de seráficos angélicos,
que em sua autoimportância então se escude,
como o centro do mundo no seu berço,
nessa antegozo de um revelar imerso!

FUNERAIS DA HUMANIDADE II

Seja “o profeta que em cinza a fronte envolve,” (*)
ou simples alma a chorar na quarta-feira
por seu castigo a culpa bem certeira,
tal como as páginas de um livro o santo volve
e a soma final de teus mil atos solve,
numa equação perene e derradeira,
qual se importasse a divindade inteira
com pecadilho em que o corpo se revolve!
(*) Hommage a “Vozes d’África”.

Se ao próprio Deus tanto se antropomorfiza,
não é de se espantar que os mais mesquinhos
humanos sentimentos lhe atribuam;
se o próprio mal então se diviniza
na divisão dos mortos,  pobrezinhos,
mediante as faltas e purezas com que atuam!

FUNERAIS DA HUMANIDADE III

Naturalmente, foi o Inferno imaginado
como o ergástulo de nossos inimigos,
cada nação a elaborar os seus castigos,
até ser o sacerdócio organizado;
e como esse conjunto desusado
de povos a desvairar em tais perigos
não estivesse ao alcance, tais jazigos
preencheram com os fiéis a seus cuidados!

Bem mais fáceis de atormentar pelas suas faltas,
quer reais ou imaginárias os seus crentes
do que estranhos que nem se importariam,
ditas divinas instruções por essas maltas,
em purgatórios de horrores mais pungentes,
que absolver somente eles poderiam...

BDÉLIO I – 29 NOV 2018

Amor, às vezes, é misterioso desespero,
Tão elusivo como um corvo fugidio,
Sem ter um corpo, só aridez de estio,
Sombra somente, em redemoinho mero.

Algumas vezes em mim mesmo gero
Tal amor que se derrete sem ter brio,
Essa paixão por fantasma sem ter cio,
Essa equação que deve sempre somar zero.

Que só é perfeita se não traz um resultado
Menor que o nada ou maior que o absoluto,
Amor vasado no mais sutil anacoluto,

Sempre diverso do amor que era aguardado,
Amor feérico, cuja força não disputo,
Mas que se encontra só em mim emsimesmado.

BDÉLIO II

Estranho amor, tal qual muiraquitã,
Consagrado por ameríndio feiticeiro
Ou a um breve de africano curandeiro
Ou vademecum confeccionado por xamã.

Amor inócuo, tal qual um talismã,
Cujo poder eu lhe confiro inteiro
E se o deixar, nem por átimo certeiro,
Terá poder de outrem nutrir em seu afã.

Esse bdélio é uma planta resinosa,
Quando recente até bastante perfumosa,
Sobremaneira a apreciavam os alquimistas,

Que condensavam a resina em seus cadinhos,
Até formar uma pedra; e nela avistas,
Talvez um rosto, espada ou passarinhos.

BDÉLIO III

Nada se encontra aqui pecaminoso;
Ela é citada nas Santas Escrituras...
Mas as tornavam em relíquias puras,
Gravando nelas o amor mais poderoso

Ou o poder explorador mais venturoso
Ou a prosperidade em suas verduras,
Capacidade de evitar quaisquer torturas,
Qual talismã podia ser mais generoso?

E assim o amor do misterioso desespero,
Tal e qual faz o bdélio, traz valia,
Ser-me-á útil para aquilo que o queria,

Mas para outrem com validade zero,
Por ser o amor de minha própria evanescência,
Só em minhalma a despertar esta aquiescência.

PONTO DE DESESPERO I – 30 NOV 2018

Quando a mulher se separa em meia-idade,
qualquer motivo a provocar separação,
sofre seu mundo tremenda mutação,
velhos valores a se perder em vacuidade.

É bem comum que o ciúme ou sua vaidade
a levem a requerer essa inversão:
seu marido “a traiu”, nessa expressão
que se fez hoje vazia, é bem verdade.

Também ele viu passar-se a mocidade
e renovada pensa ver a juventude
em novo amor com o qual breve se ilude,

tão poderoso quanto a própria vacuidade,
mas que fazer, se encontra quem o queira,
do antigo amor já desfeita a antiga esteira?

PONTO DE DESESPERO II

Por certas vezes, é claro, é o contrário,
é a esposa “que trai” o seu marido;
se de tranquilos sentimentos foi nutrido,
não apela para um ato atrabiliário,

não toma uma pistola, ato nefário,
para matar o amante ou seu perdido
amor pela mulher que havia escolhido,
mas simplesmente separa o seu erário.

Será fácil quem o queira consolar,
qualquer mulher mais jovem, geralmente,
problema algum a lhe causar tal diferença;

tanta mulher um novo pai buscando achar,
tal como Freud explicava alegremente,
qualquer que seja o fundo de sua crença…

PONTO DE DESESPERO III

Mas a mulher, com quem vai se aconchegar?
Não faltará quem lhe dê amor sexual,
perfeitamente hoje aceitável no social
ou qualquer espertalhão para a explorar.

Mas novo amor verdadeiro, onde encontrar?
Com sorte fruto de outra quebra marital.
ou então viúvo, já sem par matrimonial...
Mas se é um jovem por quem vai se apaixonar?

Isto, de fato, não é coisa em nada rara,
mas de algum modo, é contra a biologia,
que a natureza, certamente, aguardaria

de um novo amor os filhos que prepara,
que algum homem geralmente geraria
na nova esposa que se lhe tornou cara.

PONTO DE DESESPERO IV

Mas a mulher que já ganha certa idade,
dificilmente será capaz de procriar
e como fica esse jovem a abraçar?
A biologia não é dotada de piedade.

A sua semente não terá posteridade,
seus feromônios não mais a apresentar,
por mais desejo que pretenda se afirmar
em propensão para tal fertilidade.

E quantas passam então por desespero,
a amaldiçoar a idade que já têm,
nas noites frias em que se ausenta o amante.

Por mais que trate rosto e corpo com esmero
ou que outros filhos não deseje ter também,
sua insegurança se achará sempre constante.

PONTO DE DESESPERO V

Essa a tragédia do sofrimento feminino,
mais transitório na ilusão da formosura;
tampouco ao homem a robustez lhe dura,
mas perde menos o seu lado masculino.

É lamentável assim nosso destino;
na vida livre, de permeio à agrura,
durações breves, sem faixas de amargura,
tampouco doces, em seu marchar de peregrino.

Contudo hoje, quando vivemos muito mais,
não serve o sexo para o simples procriar,
mas como fonte de prazer e de alegria,

mas se imiscui em sofrimento por demais,
nesse descaso que imprime a biologia,
mulher infértil sempre pronta a descartar!

FUNERAIS DA JUVENTUDE I – 1º DEZ 2018

“De que serve adquirir sabedoria
e saber como conduzir casos de amor,”
quando o botão desabrochado em flor
ao nosso bosque não mais retornaria?

De que nos serve amor, se nos fugia
a meiga ninfa de nosso resplendor,
quando a musa não responde ao nosso ardor
e nem um zéfiro em nossa boca sopraria?

De que serviu o dom que se perdia
por dentre a juventude inconsequente?
Como era fácil a palavra indiferente...

Amor tão fácil se então desprezaria,
nessas ações de fútil presunção,
tempo de amor desperdiçado sem razão...

FUNERAIS DA JUVENTUDE II

Quanta vez já escutei a meu redor
as pessoas se queixarem da velhice,
perdido o viço da imortal ledice,
tão imortal quanto gota de calor,

que após pingar, olvidada sem valor,
só ao frio dará lugar em vã tolice;
pela beleza a se encontrar esquisitice,
na academia algum resto de vigor...

Já quanta vez afirmou-se o aforismo:
que juventude é por demais preciosa
para com os jovens se desperdiçar!

Variados os sentidos, sem sofismo,
de que adianta essa busca perfumosa
na flor que em livro se decidiu guardar?

FUNERAIS DA JUVENTUDE III

Vá que nas décadas grisalhas desta vida
surja a esperança de um novel amor,
para o organismo algo de alentador
e, no entretanto, à esperança consentida,

por mais que seja assim correspondida,
não mais se pode demonstrar igual pendor:
já não se faz com tripudiante ardor
quanto se fez em outra década perdida...

Bom é então desfrutar sabedoria
de simplesmente aceitar limitação,
sem recair na mais triste condição

de renegar totalmente a nostalgia,
que cada década nos traz seu próprio dom
e cada dom traz à década seu tom...

FUNERAIS DA JUVENTUDE IV

O que é mais triste que ver a nosso entorno
essa gente que não ganhou sabedoria,
a quem a idade em nada ajudaria,
tentando em vão abanar seu fogo morno,

buscando inútil cozinhar em aberto forno,
do ridículo em sua nova fantasia,
na maquiagem com que a face se iludia,
no acumular vazio de um novo adorno!

Um dia, talvez, a antiga ninfa te apareça,
(já enrugada e dolente, não se esqueça!)
quando outra ninfa mais jovem não se encontre

ou torne a musa (já um tanto desdentada),
mais uma vez a se querer acarinhada,
pelos afagos que em desalento nos demonstre.

DORES DE MÃE I – 2 DEZ 2018

conforme dizem as santas escrituras,
com sua morte, permeio a cruas dores,
sofre o senhor em breves estertores,
a si levando a multidão de agruras;
porém não foram só três horas de torturas,
flagelação anterior lhe trouxe ardores
e para a cruz carregou parcos vigores,
exemplo claro de fragilidades puras...
mais do que tudo a razão do sofrimento
foi receber a humana natureza
e com ela nossas culpas e remorsos;
essa a razão maior de seu lamento,
mais do que a cruz sua carga de incerteza
a desgastar lentamente seus esforços.

DORES DE MÃE II

diz a doutrina que tais dores suportou
tanto dos vivos como de tantos mortos
e mais ainda, abriu seus próprios portos
a quantos males de quem depois chegou;
por isso em nossa natureza se afirmou,
na aceitação de nossos passos tortos,
na frustração dos sonhos em abortos,
nos descaminhos em que o homem penetrou;
mas uma dor jamais experimentou,
a mais frequente, talvez, da humanidade:
a dessa mãe que perdeu maternidade,
que filho morto em seus braços sustentou,
fosse ele adulto, fosse ainda criança:
dói algo mais que perder essa esperança?

DORES DE MÃE III

por certo um pai também pode assim sofrer,
mas em seu íntimo traz conhecimento
de outro poder gerar nesse momento.
talvez a mãe outros filhos possa ter,
mas não há sobressalente, se morrer
esse que teve com tanto sofrimento,
muito mais forte o seu padecimento
por essa parte de si que viu perder;
talvez nos digam que a virgem maria
sentiu a dor da perda desse filho
e com ele partilhou dessa agonia,
porém não creio que algum homem possa
percorrer integralmente o álgido trilho,
mesmo que nele a divindade o endossa.

DORES DE MÃE IV

e quanta vez, na secular esteira,
viram as mães morrer sua descendência?
antigamente já se aguardava essa impotência:
muitos nasciam então dessa maneira
e alguns ficavam, sem estéril ser a jeira,
débil consolo dessa triste ardência...
mas qual a mãe que esquece essa falência
e ao morto encara de forma sobranceira?
pois essa dor jesus jamais experimentou,
não realizou mensalmente o sacrifício,
nem abortou, por bom motivo ou vício,
nem odiou a quem seu filho exterminou,
não foi pranteá-lo ao lado do ataúde,
mais do que a cruz foi tal destino rude!

FUNERAIS DA VELHICE I – 3 DEZ 2018

sempre é constante a insatisfação,
essa revolta, essa injusta sensação
do tempo a trovejar tal qual monção
a inundar praia do oriente sem piedade!
sempre parece mais um ato de maldade
que as coisas passem sem dar saciedade,
que nos movamos em continuidade,
sempre em única e constante direção.
a vida segue e come a juventude...
qual é o problema?  queres ter o dom da vida,
mas não o preço que o viver te cobra?
procura o arco-íris de tua senectude,
vive o presente, não a ilusão perdida,
sem muita fé no tempo que te sobra!

FUNERAIS DA VELHICE II

eu, pessoalmente, não protesto assim;
sei viverei tal qual meus ancestrais;
que a maioria já permaneço mais
e ainda consigo assoprar o meu clarim;
não me parece ser um amargo fim
que nos reunir tenhamos aos demais;
a vida acaba por processos naturais,
pouco me importa que me chegue, enfim.
não é a morte que temo, mas doença,
em especial as incapacitantes,
que já não possa locomover-me como dantes,
que tenha de envergar mortalha densa
de um cortejo de glácida algidez,
antes que a morte me chegue por sua vez.

FUNERAIS DA VELHICE III

seja a velhice uma ocasiao bem-vinda,
enquanto os passos podes dirigir,
enquanto o olhar ainda possa perquirir,
enquanto existe uma esperança infinda,
enquanto guardas senso de humor ainda,
que em cada dor ainda possas distinguir
essa ironia que te vem a seduzir
e mesmo no amargor ver coisa linda!
pouco me importa que a morte venha agora!
sempre existe a urdefesa que a renega;
racionalmente, bem sei que me virá,
quando a velhice  despedirei embora,
sem mais saudade da carne que me apega,
tão só curioso sobre o quanto advirá!

FUNERAIS DA VELHICE IV

não se pense que acalento uma certeza
de vida eterna ou de sonho permanente;
do santo espírito sou fiel e crente,
mas nunca veio prometer-me sua defesa;
se em deus eu creio é ao contemplar beleza,
mesmo que exista a meu redor indiferente
sobre se vivo ou se sou inexistente,
sem pretensão de não sofrer crueza,
pois o que sei ou que li só foi escrito
por humanos como eu e tais promessas,
ponderadas ou gravadas sendo às pressas,
não me afirmou o santo deus bendito,
nem extendeu para mim o seu favor,
por mais que nelas creia com fervor.

FUNERAIS DA VELHICE V

como posso ter assim qualquer certeza?
se assim tivesse, não teria fé; (*)
no imponderável é que se encotnra a sé
ou pelo menos, no badalo da incerteza;
que o sol nasça amanhã não é uma reza,
é segurança, garantia sempre em pé;
numa planicie me ergo a seu sopé,
na plenitude de rever a sua beleza.
fora disso, ten ho certeza da velhice,
mas certamente não a teria no passado;
por muitos anos fui por ela aquinhoado,
tremer assim por seu fim é uma tolice
o fim do filme  ver aguardo, finalmente,
ou então me calarei, tão simplesmente.
(*) Credo quia absurdum (Creio porque é absurdo),
expressão de Santo Agostinho, depois adotada por Tertuliano.

FUNERAIS DA VELHICE VI

pouco me importa que a morte seja o fim
ou um princípio totalmente renovado;
apenas sei o que por outrem foi gravado,
até a mensagem do evangelho, enfim;
que a morte venha, como vem para o jasmim:
teve seu tempo bem determinado;
não acredito que o meu foi calculado,
soprei eu mesmo meu toque de arlequim
e aqui me encontro por minha própria escolha,
cada momento a costurar meu fado,
entre os farrapos da vida embaralhado;
só saberei quando a morte alfim me colha
se noutro campo de cereal serei plantado
ou sobre a alma então se aperte a firme rolha!

JANGADAS À VISTA I – 4 DEZ 18

dizer que se ama nada significa,
senão que se deseja o que se quer,
nessa ânsia de posse da mulher,
que toda essa atitude assim explica;
já em mostrar ter amor a coisa se complica,
pois é como se julgássemos mister
demonstrar esse amor a quem nos der
razão de gratidão que nalma fica.
fingir que não se ama é ainda pior,
fica o desejo escondido atrás dos olhos,
nessa derrota do combate não travado;
demonstrar que se ama é um bem maior,
por mais difíceis as brumas e os escolhos,
sem exigir que nada em troca seja dado.

JANGADAS À VISTA II

na irrefutável solidão humana
raramente somos autosuficientes;
da sociedade vêm pressões ingentes
e cada união requerida nos irmana,
e não apenas para o sexo conclama,
mas à partilha seus chamados mais frequentes,
que se completam em cantos impotentes,
no renovar que o perturbar abana.
e nesse mar de perfeita solitude,
vagamos nós, permeio aos tubarões,
muitos de nós com pernas já cortadas
e como pode a água macia ser tão rude,
a nós girar de permeio aos furacões,
humanas vidas assim tanto dispersadas!

JANGADAS À VISTA III

e nesse mar de intensa solidão,
bem ao longe, se percebe branca vela,
não é um vapor avistado na procela,
só uma jangada de simples construção,
mas esses troncos representam salvação,
se tripulados por gentil donzela
e nosso único destino se revela,
em mil braçadas de desesperação.
dizer que se ama nada significa,
se precisamos de subir numa jangada,
por um amor apenas tripulada,
mas se a mulher a abraçar-nos fica,
palavra alguma terá real significado,
somente o amor que nos tenha demonstrado.

Funerais de bonecos 1 – 5 dezembro 2018

Marcha papel, cabeça de soldado!
Quando menino, eu tinha regimentos
De soldados de chumbo; quatrocentos
E mais soldados de um album ilustrado,
Que a Editora Abril havia publicado;
Outros de pano, uniformes opulentos
Que eu mesmo costurara, dedos bentos,
Que me serviram para tanto fado.

Mas de todos, mais gostava dos calungas,
Recortados em papel, sem qualquer molde,
Que fazia aos milhares e, em batalhas,
Degolava às centenas, pobres dungas!...
Já os de chumbo precisavam quem os solde;
Nos de papel desenhava mil medalhas...

Funerais de bonecos 2

Quantas horas, na infância e adolescência,
Assim gastei, general de mil batalhas
E nem deixava perdidas essas malhas:
Relatórios de combate, com frequência
Datilografava depois, com excelência,
Sobre a conquista de cidades com muralhas,
Meu próprio mundo a construir sem falhas,
Mas sem magia de singular potência.

Salvo, talvez, na medicina de meu forte,
Que os ferimentos, até de maior porte,
Eram tratados com mágica adesiva,
Pois, afinal, eram calungas de papel,
Ressuscitados para seu quartel!...
Dos “inimigos” tão só o viver se priva...

Funerais de bonecos 3

Repassei os relatórios de combate
E mesmo os mapas que havia elaborado
A um filho meu; ao exílio condenado
O meu exército, mas furtado ao próprio abate,
Junto aos soldados de chumbo, nesse engate,
Cada um deles com esmalte repintado,
Um quebrado com gesso e cera consertado,
Para o comando transitório de outro vate.

Os de plástico um outro filho recebeu,
Incluindo os caminhões e a artilharia;
Para meus netos talvez guardar podia;
Espero assim ter-lhes dado algum prazer,
Antes do incêncio que minha casa queimaria,
Com tudo o mais que a mim coubera pertencer.

Funerais de bonecos 4

Os soldados colocava sobre a mesa,
Uma tropa a cada lado, separados,
Em cada ponta os inimigos afastados
E um pedacinho de madeira, sem defesa,
Se deslizava sobre o tampo, com certeza
Maior ou menor, para morrer os derrubados,
Ao “cemitério” então sendo transportados,
Substituídos por reservas na proeza,

Até “morrerem” todos os de um lado,
O jogo assim concluído e terminado,
E então se combinar nova partida...
Pensando em morte, tudo isto foi lembrado,
Na lembrança tantos anos de minha vida,
Cada soldado na memória conservado...

Funerais de bonecos 5

Não me recordo se os da Editora Abril
Para quem foram eventualmente destinados;
De um segundo fascículo recortados,
Dobraram os efetivos – quase mil!
Esses de pano a teatrinho bem gentil
Se destinavam, em fantoches consagrados;
Seus espetáculos depois descontinuados,
Eu os guardei, na ambição mais infantil.

E outros tantos fui depois confeccionar,
Embora todos do sexo masculino,
Só os antigos tendo as suas esposas,
Porém ricos uniformes a ostentar,
Com nomes árabes em seu registro fino,
Talvez janízaros para lutas portentosas!

Funerais de bonecos 6

Pois realmente nunca me importei
Se me diziam que menino não brincava
Com bonecas... De soldados os chamava
E escaramuças com os meus organizei;
Para minha irmã, finalmente, os entreguei,
Diariamente para ela os emprestava
E enfim, meu pai até o determinava:
“São coisa de menina!” – e assim, os dei.

Mas vejam só!  Tão logo fez-se a dona,
Praticamente nunca mais brincou!
Com os demais segui em minhas batalhas,
Até que um dia abri uma caixa pesadona,
Todos mofados, depois que ali os desprezou...
Pobres fantoches, enterrados sem mortalhas!

William Lagos
Tradutor e Poeta – lhwltg@alternet.com.br
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com
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