domingo, 7 de julho de 2019




USINA DE SANGUE
Novas Séries de William Lagos, 11-20/11/2018



Usina de Sangue V – 11 nov 2018
Mundos Interiores IV – 12 nov 2018
Halkalah (Iluminismo Judeu) VII – 13 nov 2018
Carinhos Silenciosos III – 14 nov 2018
Fase Inicial IV – 15 nov 2018
Amor à Segunda Vista III – 16 nov 2018
O Minúsculo Universo III – 17 nov 2018
Nos Páramos do Meio-dia III – 18 nov 2018
Moléstia de Amor III – 19 nov 2018
Mortalha Invisível IV – 20 nov 2018

USINA DE SANGUE I – 11/11/2018

O tempo é um poema escrito no meu sangue,
cada hemácia uma letra anti-anemia,
cada leucócito a enfrentar leucopenia,
cada plaqueta a combater o exangue.

Da hemorragia atolo-me no mangue,
esmago os versos feitos dia a dia.
em traduções esvaio-me à porfia,
quase sem tempo de assistir ao bangue-bangue

dos duelos desta vida passageira:
vivo perante a tela e nem me ligo
em qualquer site de vulgar pornografia!

Nem que tivesse interesse em tal zoeira,
não sobra tempo para lhe dar abrigo,
sempre ao inglês a traduzir monografia!

USINA DE SANGUE II

Meu tempo tenho escrito na medula,
em seu ritmo de constante produção,
nos meus fractais de completa interação.
meus ossos revelando a intensa gula;

desde o nascer foi redigida a bula
destes milhões a repetir-se sem paixão,
bilhões de glóbulos em fatal interação:
nem por instante a produção se anula,

matéria-prima a recolher do sangue,
para o sangue novamente recompor:
qual o controle que tenho em tal ardor?

Quando o sangue entra e sai qual bumerangue,
qual parte de meu cérebro inconsciente
é responsável por tal dever premente?

USINA DE SANGUE III

Sempre é possível captar seu movimento,
em termos biológicos explicável,
mas há em mim outro processo inviável,
que não posso explicar até o momento.

Como se forma, de fato, o pensamento?
Essa troca de sinais inexorável
entre os neurônios, qual em solo arável...
Qual combustível controla o seu assento?

Não são apenas esses ríspidos lampejos
e nem somente o entrelaçar do fractal,
nem troca axônica de químicos valores,

que minhas ideias conforme em tais arpejos,
sempre inconsútil sua locação real:
de onde vêm, para onde vão tais estertores?

USINA DE SANGUE IV

E mais que o pensamento, essa poesia,
como ela brota, qual hemácia pura,
quais as plaquetas que a coagulam dura,
quais os leucócitos de sua paresia? (*)
(*) Paralisia incompleta

Certamente alguma usina se veria
na formação constante da amargura,
na transição que a depura em sua doçura...
Qual será a matéria-prima da harmonia?

Alguns afirmam que jamais se esquece,
que um retrocesso mental tudo revela,
os quadros da lembrança um hipnótico

repetir de mantras mil em ateia prece,
as ondas repartindo em tal procela,
nessa inerme confusão do semiótico...

USINA DE SANGUE V

Até que ponto serão meus os pensamentos
ou mantem-se um demiurgo no interior,
de meu próprio universo o diretor,
com uma hoste de mil robôs atentos,

a mastigar esses tijolos vermelhentos,
poeira de sonhos a fundir em seu calor,
essa usina a governar como gestor,
destes textos em cópulas e assentos.

Ainda não pude tal enigma quebrar;
só sei que a redoma imponderável
constante gira, energizando a usina:

abre-se a eclusa sem esforço e nem azar
e flui o verso em fio incontrolável,
sem que sequer saiba aonde se destina.

MUNDOS INTERIORES I – 12 NOV 18

De forma permanente fluem sonhos,
perpassando por esferas siderais,
neles me movo em formas perspirais
e me suspendo em átimos bisonhos;
não percebo no sonhar monstros medonhos,
nem onanismos oníricos finais,
concatenados em lógicas reais,
sem que a censura os transforme em antissonhos.

E se me apraz, consigo reverter
sua rota temporária e o timão
dessa quimera mais real que Maya,
girar em torno, consoante meu querer,
senhor do sonho mais que do coração,
por entre apupos de minha própria vaia!

MUNDOS INTERIORES II

Muitas vezes já cheguei a duvidar
que essas horas de meu açodamento
valham mais que as do adormecimento,
que o mundo externo não posso controlar,
mesmo pensando ser rei de meu destino,
coisas ocorrem para meu padecimento,
esperanças a falecer em sofrimento,
meus anos de desgaste a acumular.

Mas não percebo-me em sonho envelhecer,
que sou eu mesmo desde que recordo
e a bel-prazer esse interior eu mordo;
ou quiçá minta, pois posso-me esquecer
do demiurgo as perpétuas instruções
na construção material das ilusões.

MUNDOS INTERIORES III

Bem calculado, não é um mundo só,
nesses cenários de esplendor diverso,
csminho muito nesse Noos converso, (*)
acordo em dor do muscular sem dó;
infelizmente, quase sempre virá pó
essa memória do mundo controverso,
por mais que faça ao despertar esforço terso,
a luz da alma qual impiedosa mó.
(*) O espaço do inconsciente coletivo.

Mas considero, quando estou nesse sonhar,
tampouco lembro o que se passa aqui;
talvez onírica seja a vida material
sem que me esforce a recordar o que vivi,
a luz ou a sombra sendo a mais vital
nessa alternância que vivo a perpassar?

MUNDOS INTERIORES IV

Mas não recordo de escrever poesia
enquanto marcho pelo crepuscular...
Serei real ou tão só corpuscular
nos paralelos mundos desta via?
Mas, e você?  Algo igual não contaria
sobre seus mundos interiores habitar?
Até que ponto os consegue dominar,
Sem os incômodos e as paixões do dia?

Não devo ser só eu.  Também você
teria tanto ou mais a revelar...
E quantos livros assim não se escreveram!
Ao digitar não lhe parece até que lê
num papiro invisível de luar,
o que suas próprias quimeras conceberam?

HALKALAH (ILUMINISMO JUDEU) I – 13/11/2018
(Leia-se halcalá, com o agá aspirado.)

Ah, bela flor, eu me porei de joelhos
perante tua beleza milenar;
declarar-te-ei o meu amor sem par,
refletido de teus olhos nos espelhos!

Ah, bela flor, os teus estames velhos,
a imponência da antera jugular,
pólen e néctar em constante deslizar,
eu te contemplo por baixo de meus celhos!

A flor fenece depressa e se desmancha
e pronto virá pó, mas outra nasce...
Mulher, contudo, fenece devagar
e mesmo quando de si outra deslancha,
esse belo da mulher lento desfaz-se,
tal qual sua alma se evolasse pelo ar...

HALKALAH II

O Iluminismo Judeu foi diferente
do movimento que seguiram os gentios;
estes buscaram transmitir seus cios
pelo seu Naturalismo, então nascente,

em seu delírio do classificar mais permanente
de cada aspecto do mundo em amplos brios,
desde o duro mineral até os pios
de qualquer ave de chilrear plangente.

E se envolveram em mil lucubrações
sobre a matéria do mundo natural,
sobre a existência ou não do espiritual,
até a alvorada em suas longas discussões,
bem desconfiados das atenções da igreja,
na escavação do que o destino real seja.

HALKALAH III

O Iluminismo só se fez possível
pela Reforma Religiosa, que quebrou
a rigidez que meio mundo dominou
o Vaticano em seu poder incrível.

A quebra Ortodoxa foi apenas conducível
ao desrespeito do que ali determinou
a autoridade papal, porém não libertou
os povos para a vista do impossível.

Os Patriarcas, igualmente rigorosos,
não combateram o analfabetismo
entre Europeus do Leste ou os Orientais,
mas a Reforma expôs os trechos mais formosos
das Escrituras aos exames sem modismo,
a Bíblia inteira difundindo entre os demais.

HALKALAH IV

Mas se os Gentios assim se libertaram
do que era mais política opressão,
os literatos alcançando aceitação
e o Paganismo dos antigos estudaram,

tais benefícios não se consignaram
aos Judeus, sob total dominação
de um cultivar de premente tradição,
que as Escrituras, afinal, sempre estudaram!

A influência das noveis filosofias
não foi marcante no seu páramo inicial,
muito mais coisas expandiram seu fanal,
qual o louvor da mulher, que antes não lias,
manifestado num ingênuo manancial:
só no Cantares de Salomão algo verias.

HALKALAH V

Houve então surto a prever o Romantismo,
do amor sexual um brando atrevimento,
o amor espiritual tido em portento,
em desafio quase aberto ao Rabinismo.

Essas sementes provinham do atavismo,
qualquer setor poetizando o julgamento
de algum rabino em indireto assento,
sob o disfarce de interpretar o Judaísmo.

Porém havia esse Segundo Mandamento
de não fazer qualquer imagem de escultura:
nas sinagogas, a devoção figura
mais geométrica, sem a infração do evento,
mas no Halkalah houve desenho e até pintura:
pecaminoso esse seu envolvimento!

HALKALAH VI

Até hoje, não é comum entre os Judeus,
particularmente entre os “Perfeitos” Chassidim,
a forma humana representar, por fim,
mesmo entre muitos dos artistas seus.

Vive essa culpa inconsciente ante seu Deus,
conduzindo ao abstrato ou irreal, enfim,
qual nas figuras de Chagall, voando assim,
sobre as aldeias, bem diverso dos ateus.

E a bela flor rapidamente feneceu,
abafada pelas ciências naturais,
desbravadores em todos os sentidos,
mulher-ciência foi quem mais se compreendeu,
pelas lógicas das sinagogas conventuais,
ao mundo abrindo os olhos seus sofridos!

HALKALAH VII

Na ciência existe mais o simbolismo,
tal e qual foi aprendido no Talmude,
diversamente deste mundo rude,
mas fruto e herança de seu próprio Iluminismo.

Muitos conceitos do atual cientificismo
são encontrados por alguém que estude
esses escritos com que o rabino ilude
e o escritor traz à luz em ficcionismo.

Assim a Física Einstein revolucionou,
foi Mendel a originar a atual Genética,
Mendeleyeff classificou os elementos
e tudo enfim se revitalizou,
até mesmo no seio da poética,
interpretando o Universo em mil portentos.

CARINHOS SILENCIOSOS 1 – 14/11/2018

Do Silêncio os carinhos recebi,
Quando não pude receber os teus;
O Silêncio recobriu-me com seus véus
E dentro dalma, inteiro, o recolhi,
Sem colidir com os pensares meus
E na canção do Silêncio adormeci;
Na ausência de tua voz, pensei em ti,
Silêncio morno da nuvem sobre os céus;
Como em plumas, envolvi-me nesta densa
Absência plena de todo o material;
Mais do que tudo tem Silêncio o dom
De revestir-me de percepçao intensa
E em cada pausa conheci um sinal
Da cor dos beijos de mais ruidoso tom.

CARINHOS SILENCIOSOS 2

Porque teus beijos têm leve estalido,
Quando a pele separa-se da pele,
Quando a saliva, de surpresa, apele
Para o calor no ósculo escondido;
Porque teus beijos tenho recolhido
E guardado na redoma que me vele;
Eles me aguçam caso o peito gele
Ou me refrescam quando em febre desvalido
E cada beijo traz seu próprio som,
Tem seu tipo de carinho singular
Que outro beijo nunca mais repete
E assim escuto o silencioso dom
De cada encontro dos lábios no sonhar,
Sempre que a voz do vácuo me complete.

CARINHOS SILENCIOSOS 3

Porque o Silêncio tem sabor de beijos,
Nos leves toques do mais leve acaso,
Mais do que o beijo em seu afago raso,
Igual que o beijo a preencher ensejos,
Sempre o carinho do Silêncio traz arpejos
Que só ressoam no tintilar do vaso
Que meu sangue propele em cada caso,
Quando as veias se expandem em manejos,
De que não posso escutar vasto fluir,
Somente a pulsação a me iludir
De que o Silêncio vem trazer carinhos,
Nessa ausência dos teus, vastos caminhos,
Em que o Silêncio me percorre inteiro
Onde a saudade me esvaziou primeiro...

FASE INICIAL 1 – 15 NOV 18

Diz uma lenda que, se fores para o Inferno,
Em primeira instância do seu torturar,
Os demônios te arrancam o falar
E te condenam a um mutismo eterno!
Arrependido, não podes suplicar
Ao Grande Deus, por seu perdão superno,
Que até do Hades chega ao mais interno
E das caldeiras te vem a libertar.
Pois não te iludas.  Se a palavra for perdida,
Só muito mal poderás raciocinar
E tão somente com mugidos atordoar
Teus companheiros na mansão sofrida
E nem sequer em pensamentos apelar
À graça infinda, feita agora proibida!

FASE INICIAL 2

Contudo, não te privam do troar
De teus gemidos ou dos uivos de pavor:
De que serve, afinal, um sofredor
Que não consiga de lástima gritar?
Porém palavras não podes pronunciar,
Pois esqueceste de todo o seu valor:
Não só a língua perdeu o seu pendor,
Mas de tua mente a razão fez-se escoar!
E se não tens mais razão, somente a dor
É companheira no reluzir do fogo,
Pois não há trevas no martírio eterno;
Sem compreender a fonte desse horror,
Já sem palavras, tudo esqueces logo,
Sequer recordas te achares já no Inferno!

FASE INICIAL 3

E sem palavras, nem podes protestar
A queixa humana do “Porquê me aconteceu?”
“Todo este sofrimento... Por que eu?”
Como é comum em palavras se expressar...
Não há razão nesse teu martirizar,
Palavra alguma expressa o mal que é teu;
Não há remorso para quem tudo esqueceu,
Só o renovado e perene torturar!
Nem sequer Dante conseguiu imaginar,
Na descrição de seu Inferno, um catecismo,
Que os malditos nem pudessem se queixar,
Pois nada sabem, nesse profundo abismo
E nem ao menos conseguem desvairar,
Dentre o incessante renovar de tal sadismo!

FASE  INICIAL 4

Existe Inferno para quem nele acredita,
No rolar quântico do possibilismo,
Do mesmo modo que existe masoquismo
Para quem de autopunir-se necessita.
Existe o Hades para toda a mente aflita
Que julga merecer-lhe o cruel paroxismo,
Não para quem dele tenha ceticismo,
Que outro destino para o Além concita.
A Descida ao Hades do Credo Apostólico
É interpretada como a Libertação,
É a Anasthasis = o retorno para a vida;
Não prega o Credo um final tão melancólico
De qualquer tipo de eterna danação,
Tão só o silêncio da razão perdida.

AMOR À SEGUNDA VISTA 1 – 16 nov 2018

Nem todo amor nos assalta de repente,
Em especial, quando outros houve no passado;
O coração já está em parte acostumado
Com sensações que o acometam cegamente;
À princípio,  se emociona  vagamente,
Qual se tivesse canção nova escutado
Somente na distância, só o tom adivinhado,
Sem as palavras entender-se claramente.
Esse amor cresce em ternura transparente
E esse tremor se colore de ternura
Que vai crescendo lenta, mas frequente,
Tal ternura a se tornar mais contundente,
Agridoce, talvez, mas sua doçura
Predomina, até tornar-se permanente.

AMOR À SEGUNDA VISTA 2

Surge uma certa suspeita de um destino,
Como se o fado provocasse essa junção,
Qual amizade e simpatia e, então,
Surgisse à luz um amor bem pequenino,
Um sentimento sorrateiro, valdevino,
Que vai aos poucos morder o coração
E se enraíza, chegada sua ocasião,
Sem se notar o seu favor divino,
Como se o mundo nova cor tomasse
E lhe mostrasse os tons dessa palheta,
Pequeno íris de ilusão completa,
Que nem ao menos plena se julgasse,
Mas que se expande e mostra as sete cores
Nessa nuance inconsútil dos amores...

AMOR À SEGUNDA VISTA 3

Só então o mundo como novo se percebe...
Será que foi redescoberto realmente?
Essa amizade de fervor mais redolente,
A empatia que à simpatia sucede...
E então explode, inesperadamente
E um olhar no outro olhar se embebe,
Essa atração do outro se concebe,
Tudo se torna claro, de repente...
Quando não se intrometam incertezas,
Se os prós e contras não se sopesarem,
Se os dois o amor mútuo confessarem,
Lá está ele – o amor sem mais surpresas,
Perene e forte para ser usufruído,
Cremada a lástima do palpitar perdido...

o minúsculo universo um – 17 nov 18

é esse amor que regenera o universo,
seus limites a ultrapassar novas fronteiras,
vales floridos, fontículas brejeiras,
numa floresta o alcantil converso,
nessas paisagens que o coração disperso
nem se atreveu a achar hospitaleiras...

as sensações a se expandir inteiras:
o mundo é dele e dela o mundo é o berço.

vem o mergulho, dado lentamente,
a experimentar maré e temperatura,
qual a potência dessa espuma impura,
mesclado de lembranças seu presente,
nele os distúrbios do passado já contidos,
pelas novas certezas perseguidos...

o minúsculo universo dois

um universo só no início contemplado,
não por esforço de imaginação,
nem por grandioso palpitar do coração,
mas com palavras simples desvendado,
um gesto belo de ensejo inesperado,
um sorriso de fantástico condão...

certa fatia a compartir dessa emoção,
um brando aceno, apenas desenhado.

e aquela ânsia inconfessada de que seja
o objeto concreto e inusitado,
tão diverso do desdém do desaponto,
aquela dor intensa que se almeja
nos domine, sem mais ter duvidado,
breve vertigem no mais breve confronto...

o minúsculo universo três

porque esse amor é um universo tão pequeno,
que se acredita poder tomar inteiro,
nesse soluço de que seja o derradeiro
dos mundos paralelos sem aceno,
tal universo uma mescla de veneno
e da ambrosia do divino pegureiro...

num abraço farfalhante e sorrateiro,
troca de sexos em talho cantileno.

palavras doces, desnudas de promessa,
prenhes somente de significado,
como inocente seu sentido interpretado,
embora cada alma assim se aqueça,
e cada fímbria do peito assim palpita,
sem confessar qual o zéfiro que a agita.

nos páramos do meio-dia um – 18 nov 18

quando enfim um tão leve amor se instala,
os prados dalma a percorrer ao meio-dia,
noites do peito a preencher de salmodia,
quanta riqueza se encontra em cada fala!

e por um simples alô!... o céu se embala,
novas estrelas a brilhar nessa folia,
de esconderijos cada faísca tripudia
e essa alegria dentro dalma nao se cala!

em cada riso todo o mundo resplandece,
em cada hesitação se escuta prece,
na menor afirmação novo calor,
toda a certeza da incredulidade
feita quimera de imortalidade,
a repicar nas sonatas desse amor!...

nos páramos do meio-dia dois

em cada gesto efervesce a companhia,
basta a certeza de juntos se encontrar,
sem ser preciso mais nada se expressar,
fadas aladas tecendo a nostalgia...

meia incerteza da lealdade fugidia,
manifestada quando a mão na mão tocar,
a voz de outrem com a nossa a ressonar,
coloração de quanto a mente via...

pelas janelas a distância a contemplar,
numa tevê a compartilhar falsa distância,
na refeição vida inteira a partilhar,
no farejar das palavras a fragrância,
os feronemas não mais que a imaginar,
que tal amor não decorre dessa ânsia...

nos páramos do meio-dia três

é a maravilha do silêncio partilhado,
é a maravalha da visão dourada,
é a saliva do beijo percolada,
é o tatear sobre um corpo desejado,

embora apenas consequência desse achado
e não sua causa de febre incontrolada,
carne na carne totalmente entrelaçada,
morta a tristeza de um antanho desbotado.

amor gracioso o da maturidade,
conservado com cuidado e prevenção,
mortos amores em morto escrínio estão,
no cristal frágil de tal felicidade,
enquanto as horas até fingem não passar
para a mútua escravidão não perturbar...

moléstia de amor um – 19 nov 18

quando se ama alguém, nos é preciso
acreditar na inevitabilidade.

que mais cedo ou mais tarde, na verdade,
a persistência conduzirá ao riso
da conquista total, mesmo que o siso
diga o contrário, que a possibilidade,
de se chegar até lá, probabilidade
terá mui pouca de gerar amor conciso.

por isso é que o amor unilateral
já deu margem a tanta dor e a tanto dolo,
que não existe o amor inevitável,
existe, apenas, esse ressaibo virginal
do beijo nunca dado e o desconsolo
dessa ausência de sabor interminável.

moléstia de amor dois

mas quando alguém nos ama realmente
não se deve a um destino inevitável.

 deriva mais de coincidência imponderável,
mas se aceito, se conforma em permanente
possibilidade, essa coisa onipresente,
em cada rito de um sorriso amável,
em cada olor de qualquer corpo saudável,
ou mesmo na tristeza ali jacente.

porém que seja tal amor autoritário
é objeto totalmente discutível,
é mais provável ser fruto do arbitrário,
uma escolha que se fez nesse momento
para uma entrega plenamente incrível,
arrebatada no final de seu tormento.

moléstia de amor três

torna-se mais uma virose tal amor,
que de forma espontânea se contrai.

então de um beijo casual a gula vai
contaminar de um místico calor,
mas depois de deglutir-se seu sabor
ao nosso próprio livre-arbítrio a gente trai
e na trilha do destino então se cai:
foi nossa escolha e se tornou nosso pendor.

mas ai de quem se recuse a tal escolha
e de si mesmo conserve-se o senhor,
no breve encontro, sem mais compromisso,
que a vida é curta e esvai-se como bolha
e tão somente o sentimento é redentor
de um malviver de todo o amor omisso.

MORTALHA INVISÍVEL I – 20 NOV 2018

Antigamente, era costume amortalhar
aos nossos mortos.   Envoltos em sudário,
sendo entregues a destino atrabiliário,
em um lençol, com faixas a apertar.
Por isso o vezo de se representar
os fantasmas nesse manto compulsório;
deixou o c costume de ser obrigatório,
vão os defuntos em seu normal trajar...

Houve um tempo, também, que se chamava
de mortalha ao papel, fino envoltório,
em que se distribuía o fumo em rama...
Dupla alusão no termo se encontrava:
era o fumo a se queimar nesse ostensório,
como a doença a que o tabaco nos conclama.

MORTALHA INVISÍVEL II

Mas há mortalha, também, que não se vê,
essa mágoa e desdém da natureza
que a todos nós envolve, com firmeza,
qualquer que seja o nome que se dê:
seja destino para quem fadário crê,
seja o castigo para quem remorso presa,
seja o injustiça com que o social nos lesa,
seja a maldade que em outro olhar se lê.

Somos assim fantasmas sem saber,
assombrações perante o próprio espelho,
doença interna que teu soma torna velho,
nosso inferno a deglutir nosso viver,
no fogo-fátuo de nosso desalento,
na punição que a mim mesmo me apresento.

MORTALHA INVISÍVEL III

Até mesmo no entregar do coração,
quando por outrem nos apaixonamos,
de certo modo nos amortalhamos,
com faixas frágeis de mumificação,
que as escolhas nos então limitarão,
por este anseio com que as desprezamos,
se a um só amor então nos dedicamos,
quer seja amor correspondido ou não.

pois a mortalha do amor é mais sutil,
que ao invés de faixas nos dá asas
e com frequência com outro ser assim voamos,
nessas correntes de amor mais juvenil
ou de um amor mais velho em tristes brasas,
que a bem do amor assim nos condenamos.

MORTALHA INVISÍVEL IV

Amor confere certos privilégios,
consoante a fala dos românticos, um clima
que se assimila ou então nos assassina,
nesse baraço total dos sortilégios;
de certo modo, parecem mesmo sacrilégios
as suspeitas desse amor a que se inclina
com nosso amor de modo algum se rima,
atolados em caixão de florilégios.

Mas privilégios são somente trágicos,
quando a luz de nosso olhar não se reflete
no olhar velado que, às vezes, só nos fita...
Pensar que amor nos dá poderes mágicos
é a ilusão humana que compete
a quem se entrega à maldição bendita...

William Lagos
Tradutor e Poeta – lhwltg@alternet.com.br
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com
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