segunda-feira, 7 de setembro de 2020

 

A CURA DO REI

WILLIAM LAGOS, 21 MAR 2018

(Para minha linda neta, Sophia Eleonora Guedes,

baseado num conto em prosa do Thesouro da Juventude.

 

A ilustração mostra El-Rei Dom Affonso Henriques, mas a lenda

não menciona a qual rei se refere.

 PRIMEIRA PARTE

A CURA DO REI I

                                   Dizem que houve um rei de Portugal

                                   que muito jovem ascendeu ao trono;

vencera os mouros e, como é natural,

de suas fronteiras com a Espanha era o dono.

Depois de mil escaramuças, afinal,

um tratado assinara com Aragão,

reconhecida a sua independência;

pelo comércio a ganhar grande potência,

vastos impostos depositados em sua mão.

 

                       A CURA DO REI II

 

E obtendo pelo comércio grã riqueza,

desenvolveu uma frota poderosa

e um grande exército, para maior proeza,

bem equipado para a arte belicosa;

De outras vitórias para ter maior certeza,

contratou igualmente mercenários,

cavaleiros, infantes, balestreiros,

comprou canhões, treinou arcabuseiros,

organizados em regimentos vários.

 

A CURA DO REI III

                                    

Algumas vezes conduziu expedições

a dar combate aos inimigos muçulmanos,

com estratégia dirigindo essas missões,

trazendo espólio, belas jóias, ricos panos,

moedas de ouro e prata em medalhões,

que distribuía entre os vassalos mais fiéis,

ainda mais próspero o seu real erário,

belas igrejas a construir, mas de ordinário,

fazia visitas tão somente a seus quartéis.

 

A CURA DO REI IV

 

                                   Era, de fato, um jovem orgulhoso,

a honra e glória julgando apenas suas

ou dessas tropas de que era tão vaidoso,

em seus desfiles brilhantes pelas ruas,

demonstrações de quanto era poderoso.

Se, por acaso, bispo ou sacerdote

o reprobasse por nunca se ajoelhar,

com donativos logo os fazia calar,

a suas igrejas oferecendo um novo dote.

 

A CURA DO REI V

 

                                   Por mais que o aconselhassem, não casara,

pois facilmente pudera namorar

as mais belas mulheres que encontrara,

mas a nenhuma querendo desposar,

que amor real jamais nelas achara,

bem percebia que somente por ser rei

é que elas facilmente o abraçavam;

perfume e jóias dele apenas esperavam,

nobres que fossem nos termos de sua lei.

 

A CURA DO REI VI

                                   Contudo, um processo surpreendente

                                   ocorrer começou com sua pessoa,

                                   viu-se assombrado por pensamento permanente,

                                   sendo alguns planos de consequência boa,

mas outros de repetição inconsequente,

com o resultado de não poder dormir

e durante os Conselhos da Coroa,

ou nas caçadas que empreendia à toa,

vagava a mente num constante distrair...

 

A CURA DO REI VII

 

                                   Finalmente, o pobre rei se descobriu,

                                   inteiramente incapaz de adormecer;

sua saúde, aos poucos, diminuiu,

toda a paciências acabando por perder

e a dar sentenças sem motivo então se viu,

para depois arrepender-se dessa ação,

a insônia a lhe afetar o julgamento,

tornado errático o seu pensamento...

(de sua loucura alguns até murmurarão).

 

                                              

                                                           A CURA DO REI VIII

                                   Mas como tinha amplo apoio da nobreza,

sendo por todos recordado como herói

e da Marinha e do Exército a inteireza,

apesar dessa insônia que lhe rói,

aos boateiros condenavam por vileza,

os dignitários mais altos de sua igreja

diariamente a celebrar em sua intenção

muitas missas de bem longa duração:

mas cura alguma tal ladainha enseja...

 

A CURA DO REI IX

 

                                   Muito o amavam seus reais conselheiros,

que se atreveram a fazer-lhe sugestão:

“Quem sabe, nobre rei, nos travesseiros

com uma esposa carinhosa, acabarão

seus pesadelos, somente sonhos verdadeiros

e não seus tão confusos devaneios

que a cada noite vos impedem de dormir...”

Porém o rei não queria se iludir,

um casamento só lhe dava mais receio...

 

                                                           A CURA DO REI X

                                   E como era nessa época o costume,

alguns trataram de lhe fazer sangria;

outros tentavam com algum forte lume,

que o aposento real aqueceria,

o soberano curar desse azedume;

tisanas e emplastros receitavam

e as drogas mais fortes conhecidas;

nada adiantava, sempre eram vencidas

por essa tropa de ideias que o assaltavam

 

A CURA DO REI XI

 

                                   Alguns disseram que se exercitasse,

                                   seu real corpo deixando bem cansado;

                                   e embora o rei aos javalis caçasse,

ou marchas longas a pé, como um soldado,

ao se deitar, por mais exausto que ficasse,

seus pensamentos pelo cérebro corriam:

“Não são de medo, de fome ou de desejo,

porém me acordo se lembro de algum beijo...”

Quaisquer ruídos também ao rei perturbariam...

 

                                                           A CURA DO REI XII

                                   Foram chamados os mais ilustres menestréis,

que melodia interpretassem delicada;

também conjuntos de câmara fiéis,

nenhum galo a anunciar a madrugada,

todo o silêncio no palácio e nos quartéis...

Porém o rei não conseguia dormir,

andando às tontas pelos corredores,

batalhas planejando em estertores

e em vão os bobos o fazer tentavam rir...

 

A CURA DO REI XIII

 

                                   Finalmente, um edito publicou:

Que caso alguém adormecê-lo conseguisse

a noite inteira, ele assim determinou,

metade das riquezas que possuísse

concederia e até mesmo mencionou

que a metade de seu reino cederia

se sua insônia lhe curasse totalmente...

mas que ninguém o perturbasse inutilmente,

pois numa forca ao infrator penduraria!

 

                                                           A CURA DO REI XIV

                                   Mesmo assim, era tão grande a recompensa

que alguns tentaram a cura pretendida,

sem contudo aliviar-lhe a mente tensa

e assim forçados a pagar com a própria vida

os fracassados, qual se o fôra por ofensa...

Chegou o momento em que já ninguém mais

se apresentava, por temor desse castigo;

deitava o rei qual um morto em seu jazigo,

fechava os olhos, devaneando por demais!

 

 

A CURA DO REI XV

 

Muito tempo deste modo se passou

quando ao palácio chegou bela pastorinha;

mas tão logo o rei doente a contemplou,

sabendo realmente por que vinha,

ao vê-la bela e jovem, lhe falou:

“Retorna agora a teu lar, minha menina,

nem tentes sugerir-me qualquer cura:

sabes a pena para quem descura,

sabes que a forca deverá ser a tua sina!”

                                                          

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