A FONTE DAS TRÊS COMADRES
(Folclore nordestino, coletado por Sílvio Romero e adaptado por
Monteiro Lobato)
Versão
Poética de WILLIAM
LAGOS, 20 out 13.
A FONTE DAS TRÊS COMADRES I
Havia um rei, que por qualquer motivo
tornou-se cego, quase totalmente,
olhos castanhos tornados azulados,
por “catarata”, mal então sem lenitivo...
E embora mil remédios lhe aplicassem,
não houve unguento ou salva que adiantassem,
seus olhos cada vez mais apagados,
a escuridão já a dominá-lo totalmente...
Chegou um dia ao castelo uma mendiga,
que afirmou cura certa conhecer,
a única capaz, em toda a Terra,
de devolver-lhe a luz do olhar, amiga;
lavar com água de uma oculta fonte,
em um país do outro lado do horizonte,
além do mar, depois de uma alta serra:
somente assim o rei voltava a ver...
A Fonte das Três Comadres é o seu nome,
pois ela brota das lágrimas das três;
quem for buscar, precisará da amizade
dessas três velhas, para que o dragão dome,
que o local guarda como sentinela
e dia e noite sobre a fonte vela;
só essas três velhas é que sabem da verdade
e a ensinarão a quem portar-se sem dobrez.
Com a informação, ficou o rei agradecido
e indagou para essa fonte qual o caminho;
a mendiga fez-lhe um mapa, facilmente
e o rei, querendo o olhar ter devolvido,
mandou-lhe dar um saquitel de ouro;
a velhinha agradeceu por tal tesouro
e retirou-se dali, muito contente,
dentro da roupa carregando o seu saquinho...
A FONTE DAS TRÊS COMADRES II
O rei chamou o seu filho mais velho
e mandou aprestar potente armada,
para enfrentar os perigos da viagem;
jurou o príncipe seguir o bom conselho
de seu pai, para que nada o distraísse
e, no máximo em um ano, conseguisse
demonstrando ante o dragão grande coragem,
trazer de volta essa água desejada.
Mas na viagem, enfrentou uma tempestade
e dos navios somente um não afundou;
finalmente em um porto eles chegaram...
Sentiu-se o príncipe em plena liberdade
para o namoro com as moças que lá haviam;
os marinheiros seu exemplo mau seguiam
e doze meses bem rápido passaram:
jamais o príncipe a tal fonte procurou...
Porém, perdido assim nessa folia,
bebeu, jogou e gastou todo o dinheiro;
no final, precisou o navio vender;
cada marujo o seu destino então seguia,
os soldados como guardas se empregaram,
alguns partiram, outros se casaram,
ficou o príncipe sem ter ninguém a recorrer
e em calabouço acabou sendo prisioneiro...
Passado um ano, ficou o rei desapontado
e nova esquadra mandou aparelhar,
cujo comando ao segundo filho concedeu,
que lhe jurou, por quanto havia sagrado,
que seguiria somente atrás da fonte,
cruzando o mar empós o horizonte;
se não voltasse, mau destino fora o seu,
na dura luta com o dragão a batalhar!...
A FONTE DAS TRÊS COMADRES III
Mas no caminho, atacaram-nos corsários
e somente um dos navios sobreviveu
às terríveis batalhas de alto-mar...
Pondo de lado os planos originários,
no mesmo porto, afinal, desembarcaram,
e as tentações depressa os dominaram...
Ficou o príncipe a beber e a namorar,
todo o dinheiro que trazia ele perdeu...
Mas quando foi vender o seu navio,
descobriu que não estava mais no porto;
seus marinheiros e soldados desertaram,
vendo que o príncipe perdera todo o brio
e se juntaram aos piratas no alto-mar,
para os navios mercantes assaltar;
e por suas dívidas ao príncipe condenaram
a uma masmorra, sem o menor conforto...
Assim, um outro ano chegou ao fim,
sem que chegasse a água milagrosa,
dos ministros dependendo o pobre rei;
o filho mais moço apresentou-se, enfim,
dizendo: “Pai, permita que
eu procure
essa água
santa, que sua vista cure...”
“Duas
esquadras a teus irmãos eu dei
e não
voltaram!... Ai, que sina pavorosa!...”
“Não posso
consentir que também vás,
pois agora
de meu trono és o herdeiro!
Além disso,
ainda és uma criança!...
Se meu
remédio nenhum adulto traz,
de que jeito
obterás um resultado?
Se não
retornas, eu cá fico desfilhado!
A dinastia
perderá toda a esperança...
Não podes
ir!... És meu filho derradeiro!...
A FONTE DAS TRÊS COMADRES IV
Mas tanto que insistiu o rapazinho
que o rei cego, chorando, consentiu,
mas que voltasse no máximo em um ano!
Pois se da fonte não achasse seu caminho,
que não ficasse a navegar a esmo,
que para o reino voltasse ele assim mesmo,
ainda que tudo resultasse em desengano...
O príncipe prometeu e então partiu...
Porém ganhou apenas um navio,
para no mar chamar pouca atenção,
nem de piratas, nem de alguma tempestade,
sem dar inveja a raio ou a vento frio.
De fato, ficara o reino empobrecido
e nem o porto podia mais ser defendido,
mas a sua gente mostrava lealdade
e pelo príncipe grande estimação...
Durante a viagem, ele esgrima praticou,
para poder defender-se do dragão,
sendo treinado pelo melhor soldado;
e sem percalços, no destino ele aportou,
justamente no porto da cidade
que a seus irmãos tirara a liberdade;
deixou o navio nas docas ancorado,
comprou um cavalo e partiu, sem proteção.
Foi cavalgando ao longo do caminho,
segundo a cópia do mapa que levava,
que seus irmãos não haviam acompanhado;
mas viu fechada por matagal de espinho
aquela estrada que conduzia à fonte,
mato cerrado indo até o horizonte...
E pôs-se a procurar, sem ter achado,
qualquer atalho para a fonte que buscava...
A FONTE DAS TRÊS COMADRES V
Finalmente, ele encontrou uma senhora,
enterrada no chão até a cintura!
“Comadre,
por que está aqui enterrada?”
“Quando
minha ama precisou, eu fui embora
e estou
aqui, condenada a meu penar,
até que
alguém queira me desenterrar...”
Não tinha o príncipe picareta nem enxada,
só uma faquinha de lâmina bem dura...
E começou toda a terra a escavar,
mas o buraco era mais fundo que pensava,
chegou a noite em sua tarefa a continuar!
“Você não
vai conseguir-me libertar,
desista
agora!” – dizia ela, bem frequente,
enquanto o pranto escorria, amargamente.
Seguia o príncipe na obra ainda a teimar,
porém da velha os pés não encontrava!...
Já no outro dia, chegada a luz da aurora,
a comadre soltou longo suspiro
e se firmou nas beiradas do buraco,
longa raiz a puxar, bem nessa hora
e o príncipe recuou, muito espantado!
Mas ela disse: “Não precisa
ter cuidado...”
E pareceu tirar os pés de um saco,
começando a caminhar, tonta, num giro...
“Pronto,
afilhado, você quebrou o encanto!
Agora, siga
em frente, que o espinheiro
crescia de
meus pés, como raiz,
alimentado
pela força de meu pranto!...
Pode seguir
agora o seu caminho,
em que não
irá encontrar sequer um espinho.
Esta
Primeira Comadre lhe bendiz,
prossiga
agora em sua missão, ligeiro!...”
A FONTE DAS
TRÊS COMADRES VI
Seguiu então o príncipe seu caminho;
de fato, a mata inteira havia sumido,
mas logo ele encontrou rio caudaloso.
Foi procurar um vau, devagarinho,
mas onde entrava, o cavalo refugava
e rio acima e abaixo ele marchava,
mas para cima era o leito penhascoso
e para baixo, por largura era impedido!
Finalmente, outra velhinha ele encontrou,
mergulhada na água até o pescoço!
“Comadre,
por que está aí mergulhada?”
“Ah, meu
netinho, ninguém veio e me tirou!”
E o jovem príncipe quis puxá-la para fora,
até o laço lhe amarrou e, hora após hora,
seguiu na luta, mas a velha era pesada
e o rio estava largo e muito grosso...
Caiu a noite e a senhora lhe falou:
“Desista,
afilhadinho, que não pode
me puxar
fora daqui, sua força é pouca!”
Mas o rapaz não desistiu e se esforçou,
continuando a puxar por toda a noite,
um vento forte soprando como açoite,
a correnteza com uma força louca,
pediu ajuda, mas ninguém o acode!...
Finalmente, quando já raiava a aurora,
a velhinha ele puxou até a margem...
E diminuiu, de repente, a correnteza!
“Eram minhas
lágrimas,” – disse-lhe a senhora.
“Eu deixei
de cumprir o meu dever,
a minha ama
abandonei para sofrer;
este o
castigo foi por minha vileza,
mas
quebraste o encantamento da miragem!”
A FONTE DAS TRÊS COMADRES VII
“Agora podes
seguir em rumo à fonte...”
“Mas não falei
a razão de minha viagem!”
“Aqui não
vem ninguém com outro motivo;
podes
seguir, já apareceu a ponte,
vai com
cuidado, até encontrar minha irmã;
ela te
ajudará, pois tua alma é sã;
és generoso,
honesto e muito ativo
e a Segunda
Comadre bendiz a tua coragem!”
E dito e feito, seguiu estrada avante,
até se ver envolto num nevoeiro,
dentro do qual encontrou, bem amarrada,
terceira velha, com igual semblante.
“Comadre,
por que razão está presa aí?”
“Pois
ninguém veio para me tirar daqui!...
Por culpa
minha estou aqui encantada
e pela
estrada a cruzar, você é o primeiro!”
E o rapazinho tentou desamarrá-la,
mas havia cordas dos pés até a cabeça,
que a umidade tinha deixado corredias...
Enfim, o príncipe tomou a faca e foi cortá-la.
Assim que o rolo de corda caiu ao chão,
desapareceu o nevoeiro em um tufão!...
Surgiu a luz do Sol, em finas guias...
“Quebrou o
encanto, dar-lhe-ei o que me peça!”
“Eu quero
apenas pegar água da fonte,
para curar a
cegueira de meu pai...
Mas dizem
que é guardada por dragão!”
“Está ali,
logo atrás daquele monte,
as nossas
lágrimas formaram a lagoa,
mas o dragão
já foi princesa boa;
foi sem
querer que uma bruxa ofender vai,
que nos
lançou esta terrível maldição!...
A FONTE DAS TRÊS COMADRES VIII
“O dragão
dorme com o olhar aberto;
quando se
acorda, é com olhos fechados!
Tenha
cuidado ao se chegar à fonte...
De olhos
fechados se achegaria perto
E o dragão
bem depressa o mataria!
Cada uma de
nós atrapalhou a via,
você é o
primeiro a cruzar por sobre o monte;
se outros
viessem seriam devorados!...”
“Nossa rainha se tornaria em canibal!
Você,
porém, atravessou agora
e
é preciso ter cuidado com o que faz:
se
a cabeça cortar, não lhe faz mal,
furar-lhe
os olhos, não a cegaria
e
nem um golpe no coração a mataria!
Vai
precisar de correr, chegar por trás,
cortar-lhe
a cauda de um golpe nessa hora!”
O príncipe
agradeceu e aproximou-se,
já de espada
na mão, por precaução...
A fera
estava com os olhos bem abertos;
pegou o
frasco que trazia e agachou-se,
para enchê-lo
com a água dessa fonte;
o Sol já
estava alto no horizonte...
Fechou os
olhos o dragão, e a passos certos
do rapaz se
aproximou, com má intenção!
Mas o
príncipe empunhou de novo a espada
e começou a
duelar com o dragão;
nenhum corte
causava dano ao animal!...
Pôs-se a
girar em torno da encantada,
até que lhe
chegou pelo traseiro!...
E o rabo lhe
cortou, golpe certeiro!
Correu-lhe o
sangue, porém sem fazer mal,
pois o
encanto se quebrou, de sopetão!
A FONTE DAS
TRÊS COMADRES IX
“Quebraste-me
o encanto, jovem belo!
Devo,
portanto, me casar contigo,
mas
ainda não és homem crescido,
não
posso te levar a meu castelo...
Terás
um ano para crescer e me encontrares,
mas
se sofreres acidentes ou azares,
eu
mesma irei te buscar para marido:
Serás
meu rei, meu amado e meu amigo!...”
Os dois se
namoraram por um mês;
enquanto
isso, um lindo lenço ela lhe tece:
“Vai agora,
com a cura de teu pai,
mas não te
esqueças, por tudo quanto crês,
de voltar
para este reino e para mim...
Caso contrário,
irei buscar-te! Enfim,
leva meu
lenço como prenda e agora vai!
Usa este
ano, fica forte e cresce!...”
O príncipe
retornou à capital,
trazendo o
frasco com a água milagrosa
e procurou
saber do paradeiro
de seus
irmãos, se estavam bem ou mal;
e descobriu
que ainda estavam na prisão;
pagou-lhes
dívidas e multas, sem questão,
e os levou
para seu barco que, certeiro
ainda o
esperava, com a equipagem valorosa.
Tratou os
irmãos com o maior carinho,
mas não
contava com sua maldade e inveja...
Quando souberam
que a água ele trazia,
fizeram-no
beber bastante vinho
e o conteúdo
do frasco então trocaram,
por outra
água, que do mar tiraram,
sabendo que
ele nem desconfiaria
da tremenda
traição que assim se enseja!
A FONTE DAS
TRÊS COMADRES X
Com grandes
festas os recebeu o rei.
Mentiram os
príncipes estarem procurando
todo esse
tempo pela abençoada fonte.
O mais moço
era leal à própria grei
e desse
modo, não desmentiu os dois,
entregando
seu frasco ao rei depois...
Mas a água
salgada, em tal reponte,
ardeu nos
olhos do rei, só o piorando!...
Foi então
que os dois irmãos traiçoeiros
apresentaram
uma outra garrafinha,
que a
cegueira do pai logo curou!...
Que o menor
mentira juraram, bem faceiros
e o velho
rei o condenou à morte;
se bem que o
povo lhe lamentasse a sorte,
grande
festejo no país se celebrou,
embora muito
chorasse a mãe-rainha!...
Porém o
príncipe era por todos muito amado
e com o
carrasco se reuniram os marinheiros
e os
soldados, contando-lhe a verdade...
Assim, um
dedo apenas foi cortado
e o carrasco
o levou para a floresta,
enquanto na
cidade havia festa;
mostrou o
dedo como prova da maldade,
deixando o
príncipe no mato com uns carvoeiros.
Os homens
rudes, sem saber quem ele era,
o colocaram
no serviço mais pesado
e assim o
ano inteiro foi passando...
Trabalho
duro musculatura gera;
o príncipe
espichou, ficou bem forte,
cresceu-lhe
a barba, alcançou um alto porte,
sua origem a
nenhum deles revelando,
pois ficara
contra os parentes revoltado!
A FONTE DAS
TRÊS COMADRES XI
Enquanto isso,
a princesa recobrara
pleno
domínio sobre seu reino inteiro
e ao ver
cumprido o prazo combinado
que algo
errado havia, adivinhara...
E mandou
aprestar grandiosa armada,
cruzando o
oceano em viagem apressada,
até chegar
ao porto demandado,
mandando ao
rei um formoso mensageiro.
“O
seu filho quebrou meu encantamento
e
prometeu então casar comigo;
venho
buscá-lo, conforme manda a lei.”
Só tinha o
reino um navio nesse momento
e não havia
como a pátria defender,
contra uma
esquadra poderosa recorrer.
Mandou o
filho mais velho então o rei,
Mas a
princesa o tratou como inimigo...
“Não
foi este que chegou até minha fonte
e
com coragem quebrou-me o encantamento,
para
trazer-lhe minha água milagrosa!...
Ficará
preso até o Sol vir ao horizonte.
Se
meu amado até a manhã eu não encontrar,
numa
verga do navio o vou enforcar!...”
Tendo medo
de igual sina desditosa,
o outro
príncipe tentou fugir nesse momento.
E quando a
aurora despontou no ar,
a princesa
apontou os seus canhões,
exigindo
logo a entrega do marido!
E então
mandou o outro príncipe enforcar!
O príncipe
do meio foi achado
e por um
bote foi sendo transportado...
Mas sabendo
que seria desmentido,
atirou-se no
mar, sem ilusões!...
A FONTE DAS
TRÊS COMADRES XII
A princesa
insistiu nas ameaças,
ficando o
rei então desesperado;
o capitão do
barco lhe contou
dos dois
príncipes mais velhos as trapaças.
“Mas
que farei? Terei meu reino destruído!
O
meu filho mais fiel está perdido!...”
Mas o
carrasco então se apresentou
e confessou
que ao rapaz havia poupado.
O rei então
pediu uma semana,
antes que
lhe disparassem os canhões,
para que o
príncipe pudesse ser achado.
Deu-lhe três
dias a outra soberana!...
E saíram
pelo bosque a procurar,
até o
príncipe finalmente achar;
de tisne imundo,
quando foi encontrado,
mas alto e
forte como dois leões!...
Então o
príncipe foi ao rei trazido,
que
desculpou-se e pediu-lhe mil perdões.
“O
senhor via melhor quando era cego!”
Porém
banhou-se e em ricos trajos foi vestido
e
apresentou-se no navio de sua princesa,
que o
aceitou, com a maior certeza:
“Você
foi meu salvador, isso não nego,
batem
igual os nossos corações!...”
Devolveram à
cidade o enforcado
e o afogado
foi levado ao rei,
que de
tristeza, assim, quase morreu.
Na capitânia
foi o casamento celebrado
e o príncipe
despediu-se com frieza.
“Tem
meu perdão,” falou com
delicadeza,
“mas
guarde os filhos que amou mais do que eu,
pois
vou-me embora e não mais voltarei!...”
EPÍLOGO
E no seu
reino foram os dois felizes,
com muitos
filhos e com prosperidade,
porém o
velho ficou sem descendência;
sofreu o
reino tenebrosas crises,
até que ao
trono um primo seu subia,
para dar
continuidade à dinastia,
governando
com justiça e competência...
Mas esta é
outra história, na verdade!
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