segunda-feira, 9 de dezembro de 2013






A FONTE DAS TRÊS COMADRES
(Folclore nordestino, coletado por Sílvio Romero e adaptado por Monteiro Lobato)
Versão Poética de WILLIAM LAGOS, 20 out 13.

A FONTE DAS TRÊS COMADRES I

Havia um rei, que por qualquer motivo
tornou-se cego, quase totalmente,
olhos castanhos tornados azulados,
por “catarata”, mal então sem lenitivo...
E embora mil remédios lhe aplicassem,
não houve unguento ou salva que adiantassem,
seus olhos cada vez mais apagados,
a escuridão já a dominá-lo totalmente...

Chegou um dia ao castelo uma mendiga,
que afirmou cura certa conhecer,
a única capaz, em toda a Terra,
de devolver-lhe a luz do olhar, amiga;
lavar com água de uma oculta fonte,
em um país do outro lado do horizonte,
além do mar, depois de uma alta serra:
somente assim o rei voltava a ver...

A Fonte das Três Comadres é o seu nome,
pois ela brota das lágrimas das três;
quem for buscar, precisará da amizade
dessas três velhas, para que o dragão dome,
que o local guarda como sentinela
e dia e noite sobre a fonte vela;
só essas três velhas é que sabem da verdade
e a ensinarão a quem portar-se sem dobrez.

Com a informação, ficou o rei agradecido
e indagou para essa fonte qual o caminho;
a mendiga fez-lhe um mapa, facilmente
e o rei, querendo o olhar ter devolvido,
mandou-lhe dar um saquitel de ouro;
a velhinha agradeceu por tal tesouro
e retirou-se dali, muito contente,
dentro da roupa carregando o seu saquinho...

A FONTE DAS TRÊS COMADRES II

O rei chamou o seu filho mais velho
e mandou aprestar potente armada,
para enfrentar os perigos da viagem;
jurou o príncipe seguir o bom conselho
de seu pai, para que nada o distraísse
e, no máximo em um ano, conseguisse
demonstrando ante o dragão grande coragem,
trazer de volta essa água desejada.

Mas na viagem, enfrentou uma tempestade
e dos navios somente um não afundou;
finalmente em um porto eles chegaram...
Sentiu-se o príncipe em plena liberdade
para o namoro com as moças que lá haviam;
os marinheiros seu exemplo mau seguiam
e doze meses bem rápido passaram:
jamais o príncipe a tal fonte procurou...

Porém, perdido assim nessa folia,
bebeu, jogou e gastou todo o dinheiro;
no final, precisou o navio vender;
cada marujo o seu destino então seguia,
os soldados como guardas se empregaram,
alguns partiram, outros se casaram,
ficou o príncipe sem ter ninguém a recorrer
e em calabouço acabou sendo prisioneiro...

Passado um ano, ficou o rei desapontado
e nova esquadra mandou aparelhar,
cujo comando ao segundo filho concedeu,
que lhe jurou, por quanto havia sagrado,
que seguiria somente atrás da fonte,
cruzando o mar empós o horizonte;
se não voltasse, mau destino fora o seu,
na dura luta com o dragão a batalhar!...

A FONTE DAS TRÊS COMADRES III

Mas no caminho, atacaram-nos corsários
e somente um dos navios sobreviveu
às terríveis batalhas de alto-mar...
Pondo de lado os planos originários,
no mesmo porto, afinal, desembarcaram,
e as tentações depressa os dominaram...
Ficou o príncipe a beber e a namorar,
todo o dinheiro que trazia ele perdeu...

Mas quando foi vender o seu navio,
descobriu que não estava mais no porto;
seus marinheiros e soldados desertaram,
vendo que o príncipe perdera todo o brio
e se juntaram aos piratas no alto-mar,
para os navios mercantes assaltar;
e por suas dívidas ao príncipe condenaram
a uma masmorra, sem o menor conforto...

Assim, um outro ano chegou ao fim,
sem que chegasse a água milagrosa,
dos ministros dependendo o pobre rei;
o filho mais moço apresentou-se, enfim,
dizendo: “Pai, permita que eu procure
essa água santa, que sua vista cure...”
“Duas esquadras a teus irmãos eu dei
e não voltaram!...  Ai, que sina pavorosa!...”

“Não posso consentir que também vás,
pois agora de meu trono és o herdeiro!
Além disso, ainda és uma criança!...
Se meu remédio nenhum adulto traz,
de que jeito obterás um resultado?
Se não retornas, eu cá fico desfilhado!
A dinastia perderá toda a esperança...
Não podes ir!... És meu filho derradeiro!...

A FONTE DAS TRÊS COMADRES IV

Mas tanto que insistiu o rapazinho
que o rei cego, chorando, consentiu,
mas que voltasse no máximo em um ano!
Pois se da fonte não achasse seu caminho,
que não ficasse a navegar a esmo,
que para o reino voltasse ele assim mesmo,
ainda que tudo resultasse em desengano...
O príncipe prometeu e então partiu...

Porém ganhou apenas um navio,
para no mar chamar pouca atenção,
nem de piratas, nem de alguma tempestade,
sem dar inveja a raio ou a vento frio.
De fato, ficara o reino empobrecido
e nem o porto podia mais ser defendido,
mas a sua gente mostrava lealdade
e pelo príncipe grande estimação...

Durante a viagem, ele esgrima praticou,
para poder defender-se do dragão,
sendo treinado pelo melhor soldado;
e sem percalços, no destino ele aportou,
justamente no porto da cidade
que a seus irmãos tirara a liberdade;
deixou o navio nas docas ancorado,
comprou um cavalo e partiu, sem proteção.

Foi cavalgando ao longo do caminho,
segundo a cópia do mapa que levava,
que seus irmãos não haviam acompanhado;
mas viu fechada por matagal de espinho
aquela estrada que conduzia à fonte,
mato cerrado indo até o horizonte...
E pôs-se a procurar, sem ter achado,
qualquer atalho para a fonte que buscava...

A FONTE DAS TRÊS COMADRES V

Finalmente, ele encontrou uma senhora,
enterrada no chão até a cintura!
“Comadre, por que está aqui enterrada?”
“Quando minha ama precisou, eu fui embora
e estou aqui, condenada a meu penar,
até que alguém queira me desenterrar...”
Não tinha o príncipe picareta nem enxada,
só uma faquinha de lâmina bem dura...

E começou toda a terra a escavar,
mas o buraco era mais fundo que pensava,
chegou a noite em sua tarefa a continuar!
“Você não vai conseguir-me libertar,
desista agora!” – dizia ela, bem frequente,
enquanto o pranto escorria, amargamente.
Seguia o príncipe na obra ainda a teimar,
porém da velha os pés não encontrava!...

Já no outro dia, chegada a luz da aurora,
a comadre soltou longo suspiro
e se firmou nas beiradas do buraco,
longa raiz a puxar, bem nessa hora
e o príncipe recuou, muito espantado!
Mas ela disse: “Não precisa ter cuidado...”
E pareceu tirar os pés de um saco,
começando a caminhar, tonta, num giro...

“Pronto, afilhado, você quebrou o encanto!
Agora, siga em frente, que o espinheiro
crescia de meus pés, como raiz,
alimentado pela força de meu pranto!...
Pode seguir agora o seu caminho,
em que não irá encontrar sequer um espinho.
Esta Primeira Comadre lhe bendiz,
prossiga agora em sua missão, ligeiro!...”

A FONTE DAS TRÊS COMADRES VI

Seguiu então o príncipe seu caminho;
de fato, a mata inteira havia sumido,
mas logo ele encontrou rio caudaloso.
Foi procurar um vau, devagarinho,
mas onde entrava, o cavalo refugava
e rio acima e abaixo ele marchava,
mas para cima era o leito penhascoso
e para baixo, por largura era impedido!

Finalmente, outra velhinha ele encontrou,
mergulhada na água até o pescoço!
“Comadre, por que está aí mergulhada?”
“Ah, meu netinho, ninguém veio e me tirou!”
E o jovem príncipe quis puxá-la para fora,
até o laço lhe amarrou e, hora após hora,
seguiu na luta, mas a velha era pesada
e o rio estava largo e muito grosso...

Caiu a noite e a senhora lhe falou:
“Desista, afilhadinho, que não pode
me puxar fora daqui, sua força é pouca!”
Mas o rapaz não desistiu e se esforçou,
continuando a puxar por toda a noite,
um vento forte soprando como açoite,
a correnteza com uma força louca,
pediu ajuda, mas ninguém o acode!...

Finalmente, quando já raiava a aurora,
a velhinha ele puxou até a margem...
E diminuiu, de repente, a correnteza!
“Eram minhas lágrimas,” – disse-lhe a senhora.
“Eu deixei de cumprir o meu dever,
a minha ama abandonei para sofrer;
este o castigo foi por minha vileza,
mas quebraste o encantamento da miragem!”

A FONTE DAS TRÊS COMADRES VII

“Agora podes seguir em rumo à fonte...”
“Mas não falei a razão de minha viagem!”
“Aqui não vem ninguém com outro motivo;
podes seguir, já apareceu a ponte,
vai com cuidado, até encontrar minha irmã;
ela te ajudará, pois tua alma é sã;
és generoso, honesto e muito ativo
e a Segunda Comadre bendiz a tua coragem!”

E dito e feito, seguiu estrada avante,
até se ver envolto num nevoeiro,
dentro do qual encontrou, bem amarrada,
terceira velha, com igual semblante.
“Comadre, por que razão está presa aí?”
“Pois ninguém veio para me tirar daqui!...
Por culpa minha estou aqui encantada
e pela estrada a cruzar, você é o primeiro!”

E o rapazinho tentou desamarrá-la,
mas havia cordas dos pés até a cabeça,
que a umidade tinha deixado corredias...
Enfim, o príncipe tomou a faca e foi cortá-la.
Assim que o rolo de corda caiu ao chão,
desapareceu o nevoeiro em um tufão!...
Surgiu a luz do Sol, em finas guias...
“Quebrou o encanto, dar-lhe-ei o que me peça!”

“Eu quero apenas pegar água da fonte,
para curar a cegueira de meu pai...
Mas dizem que é guardada por dragão!”
“Está ali, logo atrás daquele monte,
as nossas lágrimas formaram a lagoa,
mas o dragão já foi princesa boa;
foi sem querer que uma bruxa ofender vai,
que nos lançou esta terrível maldição!...

A FONTE DAS TRÊS COMADRES VIII

“O dragão dorme com o olhar aberto;
quando se acorda, é com olhos fechados!
Tenha cuidado ao se chegar à fonte...
De olhos fechados se achegaria perto
E o dragão bem depressa o mataria!
Cada uma de nós atrapalhou a via,
você é o primeiro a cruzar por sobre o monte;
se outros viessem seriam devorados!...”

Nossa rainha se tornaria em canibal!
Você, porém, atravessou agora
e é preciso ter cuidado com o que faz:
se a cabeça cortar, não lhe faz mal,
furar-lhe os olhos, não a cegaria
e nem um golpe no coração a mataria!
Vai precisar de correr, chegar por trás,
cortar-lhe a cauda de um golpe nessa hora!”

O príncipe agradeceu e aproximou-se,
já de espada na mão, por precaução...
A fera estava com os olhos bem abertos;
pegou o frasco que trazia e agachou-se,
para enchê-lo com a água dessa fonte;
o Sol já estava alto no horizonte...
Fechou os olhos o dragão, e a passos certos
do rapaz se aproximou, com má intenção!

Mas o príncipe empunhou de novo a espada
e começou a duelar com o dragão;
nenhum corte causava dano ao animal!...
Pôs-se a girar em torno da encantada,
até que lhe chegou pelo traseiro!...
E o rabo lhe cortou, golpe certeiro!
Correu-lhe o sangue, porém sem fazer mal,
pois o encanto se quebrou, de sopetão!

A FONTE DAS TRÊS COMADRES IX

“Quebraste-me o encanto, jovem belo!
Devo, portanto, me casar contigo,
mas ainda não és homem crescido,
não posso te levar a meu castelo...
Terás um ano para crescer e me encontrares,
mas se sofreres acidentes ou azares,
eu mesma irei te buscar para marido:
Serás meu rei, meu amado e meu amigo!...”

Os dois se namoraram por um mês;
enquanto isso, um lindo lenço ela lhe tece:
“Vai agora, com a cura de teu pai,
mas não te esqueças, por tudo quanto crês,
de voltar para este reino e para mim...
Caso contrário, irei buscar-te!  Enfim,
leva meu lenço como prenda e agora vai!
Usa este ano, fica forte e cresce!...”

O príncipe retornou à capital,
trazendo o frasco com a água milagrosa
e procurou saber do paradeiro
de seus irmãos, se estavam bem ou mal;
e descobriu que ainda estavam na prisão;
pagou-lhes dívidas e multas, sem questão,
e os levou para seu barco que, certeiro
ainda o esperava, com a equipagem valorosa.

Tratou os irmãos com o maior carinho,
mas não contava com sua maldade e inveja...
Quando souberam que a água ele trazia,
fizeram-no beber bastante vinho
e o conteúdo do frasco então trocaram,
por outra água, que do mar tiraram,
sabendo que ele nem desconfiaria
da tremenda traição que assim se enseja!

A FONTE DAS TRÊS COMADRES X

Com grandes festas os recebeu o rei.
Mentiram os príncipes estarem procurando
todo esse tempo pela abençoada fonte.
O mais moço era leal à própria grei
e desse modo, não desmentiu os dois,
entregando seu frasco ao rei depois...
Mas a água salgada, em tal reponte,
ardeu nos olhos do rei, só o piorando!...

Foi então que os dois irmãos traiçoeiros
apresentaram uma outra garrafinha,
que a cegueira do pai logo curou!...
Que o menor mentira juraram, bem faceiros
e o velho rei o condenou à morte;
se bem que o povo lhe lamentasse a sorte,
grande festejo no país se celebrou,
embora muito chorasse a mãe-rainha!...

Porém o príncipe era por todos muito amado
e com o carrasco se reuniram os marinheiros
e os soldados, contando-lhe a verdade...
Assim, um dedo apenas foi cortado
e o carrasco o levou para a floresta,
enquanto na cidade havia festa;
mostrou o dedo como prova da maldade,
deixando o príncipe no mato com uns carvoeiros.

Os homens rudes, sem saber quem ele era,
o colocaram no serviço mais pesado
e assim o ano inteiro foi passando...
Trabalho duro musculatura gera;
o príncipe espichou, ficou bem forte,
cresceu-lhe a barba, alcançou um alto porte,
sua origem a nenhum deles revelando,
pois ficara contra os parentes revoltado!

A FONTE DAS TRÊS COMADRES XI

Enquanto isso, a princesa recobrara
pleno domínio sobre seu reino inteiro
e ao ver cumprido o prazo combinado
que algo errado havia, adivinhara...
E mandou aprestar grandiosa armada,
cruzando o oceano em viagem apressada,
até chegar ao porto demandado,
mandando ao rei um formoso mensageiro.

“O seu filho quebrou meu encantamento
e prometeu então casar comigo;
venho buscá-lo, conforme manda a lei.”
Só tinha o reino um navio nesse momento
e não havia como a pátria defender,
contra uma esquadra poderosa recorrer.
Mandou o filho mais velho então o rei,
Mas a princesa o tratou como inimigo...

“Não foi este que chegou até minha fonte
e com coragem quebrou-me o encantamento,
para trazer-lhe minha água milagrosa!...
Ficará preso até o Sol vir ao horizonte.
Se meu amado até a manhã eu não encontrar,
numa verga do navio o vou enforcar!...”
Tendo medo de igual sina desditosa,
o outro príncipe tentou fugir nesse momento.

E quando a aurora despontou no ar,
a princesa apontou os seus canhões,
exigindo logo a entrega do marido!
E então mandou o outro príncipe enforcar!
O príncipe do meio foi achado
e por um bote foi sendo transportado...
Mas sabendo que seria desmentido,
atirou-se no mar, sem ilusões!...

A FONTE DAS TRÊS COMADRES XII

A princesa insistiu nas ameaças,
ficando o rei então desesperado;
o capitão do barco lhe contou
dos dois príncipes mais velhos as trapaças.
“Mas que farei?  Terei meu reino destruído!
O meu filho mais fiel está perdido!...”
Mas o carrasco então se apresentou
e confessou que ao rapaz havia poupado.

O rei então pediu uma semana,
antes que lhe disparassem os canhões,
para que o príncipe pudesse ser achado.
Deu-lhe três dias a outra soberana!...
E saíram pelo bosque a procurar,
até o príncipe finalmente achar;
de tisne imundo, quando foi encontrado,
mas alto e forte como dois leões!...

Então o príncipe foi ao rei trazido,
que desculpou-se e pediu-lhe mil perdões.
“O senhor via melhor quando era cego!”
Porém banhou-se e em ricos trajos foi vestido
e apresentou-se no navio de sua princesa,
que o aceitou, com a maior certeza:
“Você foi meu salvador, isso não nego,
batem igual os nossos corações!...”

Devolveram à cidade o enforcado
e o afogado foi levado ao rei,
que de tristeza, assim, quase morreu.
Na capitânia foi o casamento celebrado
e o príncipe despediu-se com frieza.
“Tem meu perdão,” falou com delicadeza,
“mas guarde os filhos que amou mais do que eu,
pois vou-me embora e não mais voltarei!...”

EPÍLOGO

E no seu reino foram os dois felizes,
com muitos filhos e com prosperidade,
porém o velho ficou sem descendência;
sofreu o reino tenebrosas crises,
até que ao trono um primo seu subia,
para dar continuidade à dinastia,
governando com justiça e competência...
Mas esta é outra história, na verdade!



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