MAMMILARIA & MAIS
William Lagos
MAMMILARIA I –
23 NOV 13
Prazer eu sinto
é nesse sol de inverno,
que aquece
suavemente e com carinho,
que penetra nos
ossos de mansinho
e o corpo
revigora em beijo terno.
Não entendo por
que o monstro eterno
desse sol de
verão de ardor mesquinho
é apreciado
pela gente, um pelourinho
que me antecipa
a vastidão do inferno.
Ainda mais
agora que o ozônio
está calvo
sobre nós e assim os raios
do ultravioleta
nos calcinam.
De fato, uma
urdidura do demônio,
a transtornar
os beijos antes gaios
em melanomas
que à morte nos malsinam.
MAMMILARIA II
As mamilárias
são cactos de espinhos,
arredondados
como seios de mulher;
cada mamilo
nova flor requer,
temporária, em
brotas comezinhos.
Não se podem
colher esses carinhos,
servem de
encanto para o olhar sequer,
para a tortura
dos dedos o mister:
no abraçar de
tal seio há descaminhos.
E se quisermos
algo mais usufruir,
com um machete
ou faca a gente talha
esse fruto do
chão para beber,
o que nos leva
assim a destruir,
por ação louca
em que a razão nos falha,
da delicada
flor o renascer.
MAMMILARIA III
De modo igual,
um seio de mulher
foi feito
apenas para acariciar
e não para
morder ou retalhar,
igual que se
desfolha o mal-me-quer.
Pois cada seio
de tuas mãos requer
carinho e
gentileza ao manusear,
para as flores
dos mamilos te mostrar,
na plenitude do
calor que mais se quer.
Não foram
feitos para te aleitar,
mas para te
atrair às relações
que a outras
boquinhas podem conduzir,
mas foram
feitos para te alentar,
nessa perfeita
forma de botões
de que a seiva
ira brotar a reluzir.
MAMMILARIA IV
Igual que os
cactos, também possuem espinhos
esses pomos
redondos e encarnados,
ou em sua
turgidez acastanhados,
maçãs redondas
a sugerir carinhos.
Assim não cabem
a ti outros caminhos,
maternos seios
no antanho já deixados,
o canto agreste
dos cactos empinados,
amado leite,
como querem alguns vinhos.
E não te cabe
prender-te a tais passados,
quer sejam
doces tais recordações
ou
inconsistente o amor das intenções,
pois fundo cravam
tais acúleos procurados,
em vez de
flores só te trarão desgosto,
caso busques a
tua mãe no seio exposto.
MAMMILARIA V
No céu eu vejo
um sol a fervilhar,
igual que um
seio de mulher dourado;
durante o frio,
abraça-me, encantado,
igual que a mãe
ou amante a acalentar.
Como são doces
tais raios a brilhar
permeio ao
vento de silvar gelado,
leite de ouro
sobre a testa derramado,
mãe e pai de
toda a vida a se mostrar.
Mas são seus
raios qual coroa de espinhos
que a geada
rasgam em nova redenção,
sem provocar
degelo ou inundação,
sol hibernal
sobre todos os caminhos,
das noites
longas calmo prisioneiro,
igual redondo
violão de seresteiro.
MAMMILARIA VI
Que pena que
entre nós se faz carrasco
durante os
longos dias do verão,
a vida a
calcinar sem proteção,
seio maligno
sem leite no seu frasco,
qual mamilária
espinhosa no seu casco,
negando flor e
sem dar sequer botão,
enquanto à
beira do caminho lanço mão
das hastes
secas que inutilmente masco.
Maçã impura que
nos céus lampeja,
queimando a
pele e a extrair suor,
cada raio um
espinho que me beija,
para sugar de
mim linfa e vigor,
sol de verão
que sobre a terra veja,
em galhos secos
transformando o amor...
DALLEBONA I – 24 NOV 13
Eu me lembro de ti é pelas noites,
das vezes que te vi, já à tardinha,
ou após o escurecer, que se avizinha
o momento de sonhar em meus
pernoites...
Mas em geral, nem espero que te afoites
de tocaia em meus sonhos, prenda minha,
senão no instante em que a aurora vem
sozinha,
pois só então é que vou para os acoites
dos travesseiros e lençóis, só então eu
sonho
visões miríficas de realização,
quando sou vítima de meus devaneios,
que é mais frugal o dia e mais
tristonho,
pois jamais posso te estender a mão
e enxergar-me abraçado nos teus seios.
DALLEBONA II
Assim te esqueço ao decorrer de dias
inteiros
e nem sequer recordo de tua voz;
completada uma tarefa, em seu após
surgem de leve, em rasgos pegureiros,
teus cílios a voar, olhos traiçoeiros,
desprovidos de empatias ou de dós,
que a alma me mastigam como em nós,
feroz conquista de anzóis
aventureiros...
Cada cílio em minha memória retorcido,
sem precisar de isca, em sua aguçada
pesca finíssima de metálica atração;
e então sacudo a testa, desvalido,
a esquivar-me dos dardos da caçada,
apenas sangue pingando de minha mão.
DALLEBONA III
Recordo mais é no meio das manhãs,
quando o sonho se apresenta em
fragmentos,
qualquer perfume a recordar os teus
unguentos,
corriqueiros a brotar dessas louçãs
faces de amora em raiz de buscas vãs,
sem relembrar quaisquer integumentos;
só surgem cílios nos meus pensamentos,
fisgando a mente quais felpas de lãs,
imagem a brincar com meu consciente,
como se fosse da mulher mais
inclemente,
de seu poder segura e seu prestígio,
nessas pestanas de negror potente...
Como as tésseras compor desse virente
mosaico puro que não me traz qualquer
alívio?
DALLEDONA IV
Pois a mim mesmo tenho de reconhecer
essa paixão por mulher que nunca vi,
mas somente em meus sonhos pressenti
e aos quais não posso, ao menos,
recorrer.
Não sei se foges ou te dás a conhecer,
se te fui indiferente ou persegui;
quando desperto, face e corpo já
esqueci,
nem roupas nem cabelos posso ver.
É só depois, se talvez um escarlate,
ou verdigris, ou meigo rosicler
perpassa num lampejo o meu olhar,
que essa imagem recortada então se
abate
e me persegue esse anseio de mulher
que jamais vejo no meu despertar...
DALLEBONA V
Se a conhecesse na vida, era explicável
que a amasse, sem dizer, secretamente,
ou a recordasse num clarão nascente,
como joia cintilante e inalcançável;
somente a sinto como estrela memorável,
com quem contracenei inadvertidamente;
nem sei se foi erótico o presente
do travesseiro... ou se sequer foi
desejável.
Os longos cílios como escama de
serpente,
de lâmia ou súcubo que sugou-me a vida
e que furtou de mim conchas de
sonhos...
Ou num relance, assim percebo
diferente:
serem pestanas de uma égua perseguida
ou talvez lêmures de olhares tão
tristonhos...
DALLEBONA VI
E nem controlo esse tolo romantismo
que cavalga para longe ao amanhecer;
mulheres vivas poderia perceber
com as quais compartilhasse o cataclismo,
nesse explosão que requer um neologismo
para que caiba num exato descrever;
a sedução devia lembrar-me de algum ser
que ao paraíso me levasse ou então ao abismo.
Mas é mística essa hora matutina,
quando tal musa ou deusa vem e pisca,
sem a cor me mostrar sequer dos olhos;
e só me resta a tal imagem peregrina
com que a mente a alma e o peito arrisca,
sem conseguir se lançar em tais escolhos...
EXCEÇÕES I – 25 NOV
13
Como dormem pela
rua, sem ter esmola,
os príncipes de
sangue desta terra!
Incapazes de lutar
na diária guerra,
para o combate
inadequados desde a escola!
Aos deficientes,
hoje a piedade rola:
muito recurso se
reúne e assim se enterra:
nas Ongues e
entidades a verba emperra;
parte importante a
diretoria dela esfola!...
Porém o que se faz
com aqueles mais dotados,
no outro extremo do
que é excepcional?
Quais os esforços
para amparar os tais,
Cujos poderes
devidamente aproveitados
à sociedade trariam
lucro natural:
só medo e inveja é
que eles causam aos demais?
EXCEÇÕES II
É certo,
infelizmente, que a nossa educação
é muito limitada e
milhares nem recebem;
recursos quando
sobram, os governantes cedem
para aos cursos
primários dar mais ampliação;
há anos que por baixo
a gente faz nivelação
e aos cursos
superiores raras frações acedem;
e no vezo do
presente, menos valores pedem
nesse modismo das
quotas para atual avaliação.
E caso aí se
arranjem recursos excedentes,
vão para o esporte
empregar, precipuamente,
e nem sequer no
verdadeiro treinamento do atletismo,
mas nos esporte de
equipe, que têm por excelentes,
seus votos o governo a garantir, principalmente,
sem quaisquer
resultados, senão diletantismo.
EXCEÇÕES III
Algum consenso
existe, de má orientação,
a afirmar que o
gênio acaba por se impor;
que de uma forma ou
outra o músico ou escritor
se fará conhecido
entre a pública opinião.
Porém é com
frequência que os gênios em botão
são tímidos demais
em relação a seu valor,
perseguidos por
colegas e até por professor,
pois socialmente
são de pouca aceitação.
Como se espera que
um astrônomo ou astrofísico
encontre ambiente
em cidade do interior?
Ou em química,
biologia ou arqueologia,
se anda de óculos,
parece gordo ou tísico?
Quando muito
alcançará ser professor
de seus alunos
ainda sofrendo zombaria!
IGUARIAS I – 26 nov 13
O homem vai à pesca e
seu pescado
é recolhido na rede ou
por anzol;
retorna à praia,
orientado por farol,
onde seu peixe será
cozido ou assado.
A morte vai à pesca e
seu buscado
são cabeças ceifadas sob
o sol
ou são almas caçadas no
arrebol,
cujo destino é tão só
imaginado.
Os peixes, nós
comemos. Quem duvida
que a ceifadora apenas
um festim
esteja
preparando...? E quem nos diz
quais serão os convivas
dessa lida...?
Que não nos plantam,
quais flores num jardim,
mas nos devoram, com
sorrisos senhoris...
IGUARIAS II
A carne não desejam de
nós as criaturas,
porém nacos de alma de
múltiplo sentido:
raiva e rancor, inveja,
de todo amor o olvido,
malícia e rebelião
contra todas desventuras;
pois amam as tristezas e
maldições impuras;
e como sobremesa o
humano tédio é tido;
já alegria e prazer têm
gosto amanhecido,
a gula dos gourmets para
aflições bem duras.
Não sei se de demônios
aqui os chamaria:
não buscam nosso mal,
são apenas maus pastores
e é raro nas fazendas
tratar-se mal ao gado;
dá-se pasto e ração,
vacina em cada cria;
quanto mais forem
saudáveis, melhores os sabores;
apenas raramente um
borrego é espancado...
IGUARIAS III
Então, se nós sofremos,
é devido ao tratamento:
ao puro pessimismo
alguém é destinado,
um outro por doenças deverá ser trespassado,
o cordeiro abatem cedo,
tem outro longo passamento
e algum por infortúnio
dia e noite é esmagado
(reação contra a vacina
aplicada no momento),
alguma especialidade se
espera em cada evento,
ao tom das emoções cada
qual amplificado.
Acostumado à gula, igual
se engorda ganso;
fervido na sua casca,
vivo ainda, qual lagosta;
desenvolvido às pressas,
em hormônio crescimento,
por impuros alquimistas
que descrever não canso,
tão só alucinação em
delírio se me é imposta,
na tonta incompreensão
de meu padecimento.
IGUARIAS IV
De forma semelhante,
receberam encomendas
desta fazenda humana os
atentos criadores;
a melhor alma enviada a
seus senhores,
conforme determina o pedido
para as vendas.
Em condições normais,
assim, sem mais contendas,
quotas diárias e normais
de sofredores,
morrendo de velhice ou
em longas dores:
almas servidas em
celofane e rendas...
Mas outras vezes, para
banquetes especiais,
é necessário abater
mais, em quantidade,
por acidentes de carro
ou tsunamis,
assassinatos, tornados
triunfais,
um trem que descarrila
na cidade
ou alguma guerra de
patrióticos reclames.
IGUARIAS V
Porém não é preciso
buscar seres malignos
longe de nós, no
abstrato ou espiritual;
a própria raça humana
aos outros faz o mal;
não necessita sequer
sofrer da guerra os signos.
Quantos há por aí, sob a
capa de benignos
nos quais a ação egoísta
é pronta e natural,
os outros pisoteando no
seu festim carnal,
galgando os altos postos
de que jamais são dignos?
Que se pode dizer de
tantos traficantes
a transformar clientes
em finas iguarias,
tomando seu dinheiro sem
cuidar das consequências
ou desses diretores de
corporações gigantes,
a vender medicamentos
com mínimas valias,
do mercado escondendo os
de reais potências?
IGUARIAS VI
Que se pode dizer de
tantos governantes
que só querem devorar os
frutos da ambição,
gozando a vida à larga,
em sua corrupção
e contra os mais
honestos mostrando-se intrigantes?
Que se pode dizer de
tantos comerciantes
que adulterado vendem
alimento à multidão
ou dos advogados de vil
rabulação
que assassinos libertam
para que ajam como dantes?
Ah, sim, possui a morte
milhares de ajudantes,
que nos caçam e nos
pescam sem a menor piedade,
nas ruas, nas igrejas ou
em tantas profissões.
Por que inventar diabos
se já temos os meliantes
a cometerem atos da
maior barbaridade
e que a justiça protege
em suas mil apelações...?
DESDÉM I – 27 nov 13
Todos pensamos ter
franquia da tristeza,
que nos fornece, com exclusividade,
ocasiões de despeito, de
mágoa e de maldade,
que podemos expor em
vitrinas, com certeza,
e exibir para os outros,
em tola singeleza,
tal como nos exibem, com
plena liberdade,
suas próprias lamúrias,
em total sinceridade,
a julgar que apreciamos
desditas sem beleza;
mas se algo aprendi e
sinto verdadeiro
é que o interesse
dos demais é só por si
e quando me
procuram, não é por simpatia,
mas porque vêm
encontrar em mim alvo certeiro
para o que buscam, em
incontido frenesi:
por receber de mim franquia
da alegria!...
DESDÉM II
Em geral, os aceito com
total sinceridade
e escuto tais problemas
sem aborrecimento
ou pelo menos finjo
solidário sentimento,
no rosto a revelar tão
só equanimidade.
Adotar esta atitude não
revela falsidade:
é real de tais pessoas o
meu aceitamento,
desde que saibam mais ou
menos o momento
de parar de verter seu
vaso de maldade...
Então saem por aí a
gabar a minha conversa,
quando de fato nada mais
fiz do que escutar,
sem responder demais ou
dar minha opinião,
que a maioria deseja, em
sua prosa tersa,
nem tanto se queixar ou
o mal descarregar,
porém de alguém sentir
somente aceitação.
DESDÉM III
Contudo existe aquele de
si mesmo tão seguro
que aos outros não
limita contar as suas mazelas;
falando francamente, até
se gaba delas
e insiste com o amigo
partilhar destino duro,
que reconta com prazer,
acrescentando juro,
denegrindo da vida as
coisas mais singelas,
os outros caluniando por
terem vidas belas,
chafurdando no azar que
afirma ter escuro.
Também a tais escuto,
porém sem simpatia,
pois de fato de suas
vidas não sinto compaixão;
talvez até me apiade do
jeito que eles são,
tendo tudo na mão, sem a
nada dar valia,
a se queixar de coisas
de que tantos sofrem mais,
a paciência extinguindo
de todos os demais...
DESDÉM IV
Afinal, esses também apreciam minha conversa,
por idêntico processo de equânime escutar;
são tão autoimportantes em seu própria avaliar
que veem obrigação na atenção mais tersa.
Mas quanto a mim, por que atenção pedir dispersa,
se em qualquer lamúria ninguém vai se interessar?
O máximo que faço é em versos expressar
igual padecimento que em muita vida versa
ou de mim faço troça, sem ter comiseração.
Não sou pior que tu, comparto teus problemas,
comuns à vida humana, são teus e meus também
e destarte sinto pena desses que ingênuos são
a ponto de julgarem representar-me cenas
das quais eu me envergonho de até mostrar desdém.
XIRCA I – 28 NOV 13
Que puro e claro é o canto
do xircal!
No descampado, de permeio
ao alecrim
é roxa a flor em pleno inverno,
assim,
quanto é amarela a flor do
alecrinal...
A solidaga a mesma cor
tem, outrossim,
(que erva-lanceta chamam
no seival).
Será que a cada arbusto
faz rival,
da outra planta o amor
buscando assim?
Deseja ela a xirca
purpurina
ou o plácido alecrim, em
ardor de ouro?
Que faz ali o
espinho-de-carneiro,
cada pétala verdigris
folha assassina
a disputar com a folha
escassa o seu tesouro
e a carniceira no meio do
terreiro?
XIRCA II
A xirca se transforma em
rubra chama
quando inicia o fulgor das
olarias;
só depois que a lenha seca
a queimar vias,
na caloria que produz a
verde rama.
Com picareta o cortador
reclama
grossa raiz que no campo
encontrarias;
na sua pobreza ganha o
preço de dois dias,
um potreiro a limpar, que
alguém o chama...
E então recolhe arbustos
às dezenas,
a carregar nas costas ou
em carrinho
de mão – ou, às vezes, em
“paviola”,
se tem alguém a partilhar
suas penas;
e os conduz por talvez
longo caminho,
sem se importar com a flor
que amor consola.
XIRCA III
Ditado antigo diz que amor
é a flor roxa,
alimentada por ingênuo
devaneio,
a nascer em inocente
bamboleio,
num coração que dizem ser
“de trouxa”...
Amor se sente quando a
lágrima se afrouxa,
a contemplar a xirca em
cada esteio,
as frondes ásperas movendo
em seu meneio,
só tem braços e raízes,
sem ter coxa...
Mas se pode dizer que tem
cabeça
envolta em purpurina
inflorescência
e em ramas duras a zurzir
ao vento.
Quem já viu o seu bailar
jamais se esqueça
de como a xirca tem gaúcha
permanência,
dentro do pampa a soprar
seu silvo lento.
XIRCA IV
Quando o minuano então se
manifesta,
encontra o abraço das
xircas em seu cio;
elas respondem ao vigor
desse assobio,
as hastes agitando como em
festa
e no calor, durante a hora
da sesta,
o seu ciciar atrai até o
bugio
que apenas ronca... e no coro
de seu brio
são mil arbustos a entoar
canções de gesta.
A recordar aquelas longas
cavalhadas,
os mil tropeiros que por
ali passaram
e cujos ossos por ali,
quem sabem, estão.
E nesse canto de agrestes
invernadas
ainda se mescla o dos
gaiteiros que calaram
no verde sangue de seu
coração!
A RUAZINHA I – 29 NOV 13
Se abre minha janela em rua estreita,
estreita rua da cidade antiga;
é fácil encontrar a sombra amiga
na pouca altura que a casa em frente ajeita.
Do sul ao norte
estende-se, perfeita,
a velha rua
original, mística figa,
que tentado a
repetir, talvez consiga...
Ou já esqueci da
forma como é feita...
Só da rua não me
esqueço, diariamente
percorro suas
calçadas ou a atravesso
(que nenhum carro
venha então eu peço).
Quero cruzar sem
pressa e bem contente,
bem cedo de manhã a
sombra certa
que do sol o
esplendor ainda acoberta.
A RUAZINHA II
Somente ao meio-dia, hora do cão
(chamavam de canícula os já passados
ou, pelo menos, os que se tinham por letrados),
derrama o Sol suas gotas de paixão.
Aqui não tenho dele
a proteção,
senão de meus bonés
colecionados;
então evito, igual
que a meus pecados,
sair à rua, temendo
insolação!...
Mas logo após,
lidando para o oeste,
o Sol se escondo
logo atrás de minha casa
e das casas
habitadas por vizinhos;
Só molha com vigor a
calçada leste
e a linha da sombra
aos poucos vaza
de cada pedra a
recobrir os escaninhos.
A RUAZINHA III
Há duas centenas de anos foi fundada,
perto daqui, minha cidadezinha,
traçada muito reta a ruazinha,
ao portão do cemitério endereçada.
Cada casinha de torrão enfileirada
e cada pedra, em irregular redinha,
sob saias a espiar, atrevidinha,
as pernas de mulher mais apressada.
Aqui passaram também
tantas procissões,
carregando, com
esforço, seus caixões,
em direção à última
morada.
E quando saio, por
qualquer motivo
ou contemplo do
portão de ferro altivo,
ainda as vejo, em
plena madrugada...
ARQUIVIA I – 30 NOV 13
Há muito tempo a cidade transformou-se:
já são maiores as casas de minha rua;
mas se o reboco retirar, parede nua
ainda mostra de que barro originou-se;
tijolos grossos que talvez queimou-se
em velhas olarias, sob a pua
do vento, aqui por perto, à luz da lua:
mortos os calos... nem sei onde enterrou-se
aqueles homens de rostos enrugados,
curtidos pelo vento e pelo sol,
menos que carne, alimentados pela canha;
ou os pedreiros, nos tijolos debruçados,
atarefados, talvez, desde o arrebol,
ao meio-dia do calor fugindo à sanha...
ARQUIVIA II
Porém as minhas paredes ainda arquivam,
enrodilhadas sob a tinta e a argamassa,
as impressões digitais, de forma escassa,
das mãos calosas que as paredes primitivam.
Sob o reboco velhas almas se cultivam,
aprisionadas nesse hálito que repassa;
que sob as mãos de tinta não se esfaça:
são sombras mortas que dormem e se esquivam.
Do mesmo modo, do piso as tijoletas
prendem suores e lembranças no cimento,
cada greta obliterada pelo banho,
adormecidas e a ferver raivas secretas
que inda acordadas afloravam o pensamento
dos braços desnutridos desse antanho...
ARQUIVIA III
Mais acima, foi a cidade planejada,
todo o centro retilíneo em avenidas,
um hectare para as quadras permitidas,
um cerco firme a exercer cada calçada.
As novas casas a erigir gente abastada,
rentes à rua, nos quintais longas guaridas,
para árvores de fruto ali contidas,
por altos muros de uma em uma separada.
Bastante raras as de estilo colonial,
entrançadas pelo estilo do art-nouveau,
as mais recentes a mostrar art-déco,
aqui e ali plantado um palmeiral,
com mudas transplantadas desde o norte,
adaptada a maioria à nova sorte...
ARQUIVIA IV
Hoje chegaram da ausência as pinceladas,
muitas casas de minha infância demolidas,
em seu lugar, por ganância, construídas
novas gaiolas para muitos dedicadas...
A maioria até assisti serem plantadas,
seus alicerces quais sementes incontidas,
água do solo atrapalhando as investidas,
com bomba em catadupas retiradas...
As grandes casas da rua em que cresci,
antigamente com famílias nas calçadas,
na fresca sombra e zéfiro da noite,
ou desmancharam ou em comércio eu vi,
com vitrinas e espalhafato transformadas,
nenhuma fruta a encontrar no pátio acoite.
ARQUIVIA V
Há muitos anos, porém do chão antigo,
pelos percalços da vida me mudei;
duas casas em que vivi observei
demolidas, cada qual com seu castigo.
A cidade se expandiu e hoje dá abrigo
a milhares por quem nas ruas não passei
quando era jovem – e como reza a lei,
muitos se foram, sem estarem mais comigo.
Se eu fosse gótico ou rude masoquista,
sempre os iria visitar em suas gavetas
ou talvez, nas capitais, revê-los ia,
mas me limito a escrever, pobre copista,
as memórias abertas ou secretas
que ante meus olhos expõe esta arquivia.
ARQUIVIA VI
Uma arqueológica via me contempla
a cada vez que trilho o calçamento;
dos passeios já trocado o pavimento,
vezes sem conta esta calçada se retempla.
Porém redondas cada pedra ainda se alenta,
perpétuas são, mais que a memória adentro,
em suas moléculas, pedra e saibro a dentro,
todo o passado seu código acalenta.
A rua é antiga e a arquivia arquiva
os esgares pertinentes do passado,
os cascos tristes marchando ao matadouro,
as cavalhadas dessa gente altiva,
os imigrantes de passo desconfiado,
em seus pétreos escaninhos de tesouro!...
KARINAB I – 1º DEZ 13
A MEMÓRIA DESSA RUA AINDA ME
INCITA:
SEI QUE HOUVE POR AQUI
ASSASSINATOS
OU, PELO MENOS, ASSIM CORREM OS
BOATOS;
BEM NO ALTO DA RUA ECOA A GRITA
DO CERCO E TIROTEIO QUE SE
AGITA,
DE TRÊS REVOLUÇÕES OS VELHOS
FATOS,
DO CONTRATO SOCIAL OS
DESACATOS,
MORTE TRAZENDO POR DIVERSA COR
DE FITA.
ERAM LAJES DE PEDRA NUM RETÂNGULO,
ALGUMAS POUCAS AINDA EM SEU
LUGAR,
A MAIORIA DE HÁ MUITO JÁ
ARRANCADA,
UTILIZADA, PORÉM, EM NOVO
ÂNGULO,
CADA LAJEDO EM ALICERCE A
TRANSFORMAR
ESSA LEMBRANÇA DO PASSADO
SOTERRADA.
KARINAB II
GUARDARAM AS LAJES CINZA A LUZ
ROSADA
DAS MANHÃS QUE LEVAVAM À
CATEDRAL;
DOS SINOS RECORDAVAM O CAUDAL
E DAS CARRUAGENS CADA RODA
ATAREFADA.
FOI A PRAÇA DIANTEIRA
REFORMADA,
DEPOIS QUE IGREJA SERVIU COMO
HOSPITAL;
AUTORIDADES ACHARAM NATURAL
COPIAR DE NIEMEYER A ONDULADA
IMAGERIA ENCONTRADA JUNTO ÀS PRAIAS
DESSA CIDADE QUE JÁ FOI A
CAPITAL,
PARA MARÍTIMAS ORLAS PROJETADA;
PORÉM NO PAMPA, PERMEIO ÀS
VERDES SAIAS,
MELHOR SERIA O LAJEDO ORIGINAL,
SOLENE A RECOBRIR CADA CALÇADA.
KARINAB III
QUANTA CRIANÇA AQUI FOI
ARQUIVADA,
SOLAS MACIAS NESSAS LAJES REQUEIMANDO,
COM SUA MOEDA NA MÃOZINHA
ANDANDO
ATÉ ACHAR DO SORVETEIRO A SUA
PARADA!
E QUANTA ADOLESCÊNCIA AQUI
PASSADA,
AS SOLAS DOS SAPATOS RETOMANDO
IDÊNTICO DESTINO DEMANDANDO,
PARA AO CINEMA LEVAR A
NAMORADA!
E QUANTO ADULTO, A VIDA
APRESSURADA,
DEPRESSA PASSA, EM BUSCA DO
SERVIÇO,
QUANDO A NOITE NÃO SOLTAVA O
SEU ABRAÇO!
E O ANDAR MAIS LENTO DA VIDA JÁ
CANSADA,
A MESMA LAGE REGISTRANDO MENOS
VIÇO
NO CURTO ESPAÇO SEPARANDO CADA
PASSO...
KARINAB IV
HOJE NA ESQUINA VEJO LUGAR
BALDIO:
AINDA HÁ POUCO AI SE ERGUIA
CASA ANTIGA,
O QUARTEIRÃO COMPLETANDO COMO
LIGA,
PRENDENDO AS CASAS, SEM
ESCORRER O FIO...
NÃO SEI EM QUAL ATERRO ESSE
ARREDIO
ENTULHO FOI LEVADO... AONDE
SIGA
ESSA MEMÓRIA QUE A
INCONSISTÊNCIA OBRIGA
A SER LANÇADA TALVEZ JUNTO DO
RIO...
EXISTE AGORA APENAS UM TAPUME,
TÁBUAS DO FORRO SÃO, TALVEZ DO
ASSOALHO;
POR ENTRE AS FRESTAS É FÁCIL
VER O MATO
DO PAMPA A RECOBRAR O SEU
APRUME;
ENTRE OS DESTROÇOS É O CAPIM
VERDE COALHO,
EM PROTEÇÃO AO ESCONDERIJO DE
ALGUM GATO!
RECOMPENSA I – 2 DEZ 13
Eu tenho para o mundo uma
janela
bem mais concreta que a
imaginação;
não preciso nem sonhar, que
aqui estão
as mentiras e certezas da
procela.
Diante de mim, qual luminosa
vela,
a refletir em sua lona a
insolação,
eu trago a imagem de cada
brotação,
gerando o brilho fantástico da
estrela.
Mas amealhei com cuidado cada
imagem,
para lambê-la de novo com o
olhar,
tocá-la posso com a ponta de
meus dedos,
ainda embora não escute essa
miragem
e seus sabores possa só
imaginar,
seu perfume usufruindo em mil
segredos...
RECOMPENSA II
Anos levei a recolher essas
figuras,
com a polpa dos dedos a
evocar...
Tenho milhares para convocar,
umas lascivas, outras todas
puras...
E nem preciso folhear essas
gravuras;
elas se abrem ante mim, basta
chamar
(salvo se a luz elétrica
faltar!):
são meus arquivos, minhas
iluminuras.
Noutra semana foi do Tibet uma
paisagem:
festucas ondulantes, azul
lagoa,
ao fundo uma montanha
alcantilada
e muitas árvores, do verão
feita a contagem,
já terminando, igual que a vida
escoa,
a sua folharem já em arco-íris
mutilada...
RECOMPENSA III
Hoje troquei por retrato de
mulher,
deitada sobre rocha de basalto,
à beira-mar, erguendo-se em
ressalto,
seus lábios entreabertos, qual
quem quer
não o meu beijo, (nunca me viu
sequer!),
mas seduzir, pele creme contra
asfalto,
essa câmera que a enfoca desde
o alto;
sem dúvida, de modelo é seu
mister.
Ali ela pousa, toda lânguida
mostrada,
porém sua pele, para mim é
certo,
é machucada pelas pontas da
aspereza;
artificial, totalmente
maquilada,
biquíni verde e a carne num
concerto,
mostrando apenas a cor de sua
beleza.
RECOMPENSA IV
É claro que já foi
recompensada,
que esse retrato lhe valeu
cachê;
uma revista pagou-a, já se vê,
por seu reflexo, na praia
reclinada.
Tanta beleza humana já mostrada
pela arte antiga ou em
histórias que se lê;
tanta beleza louvada, como se
não fosse em breve totalmente
transformada...
É para mim satisfação estética,
pelo prazer que encontro na
minha raça,
não diferente do que à mente me
compensa
essa visão tibetana, em igual
poética,
que por minha rede de neurônios
se desfaça,
igual que os pixels desta breve
recompensa...
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