quinta-feira, 26 de dezembro de 2013






   MAMMILARIA & MAIS
   William Lagos


MAMMILARIA I – 23 NOV 13

Prazer eu sinto é nesse sol de inverno,
que aquece suavemente e com carinho,
que penetra nos ossos de mansinho
e o corpo revigora em beijo terno.

Não entendo por que o monstro eterno
desse sol de verão de ardor mesquinho
é apreciado pela gente, um pelourinho
que me antecipa a vastidão do inferno.

Ainda mais agora que o ozônio
está calvo sobre nós e assim os raios
do ultravioleta nos calcinam.

De fato, uma urdidura do demônio,
a transtornar os beijos antes gaios
em melanomas que à morte nos malsinam.

MAMMILARIA II

As mamilárias são cactos de espinhos,
arredondados como seios de mulher;
cada mamilo nova flor requer,
temporária, em brotas comezinhos.

Não se podem colher esses carinhos,
servem de encanto para o olhar sequer,
para a tortura dos dedos o mister:
no abraçar de tal seio há descaminhos.

E se quisermos algo mais usufruir,
com um machete ou faca a gente talha
esse fruto do chão para beber,

o que nos leva assim a destruir,
por ação louca em que a razão nos falha,
da delicada flor o renascer.

MAMMILARIA III

De modo igual, um seio de mulher
foi feito apenas para acariciar
e não para morder ou retalhar,
igual que se desfolha o mal-me-quer.

Pois cada seio de tuas mãos requer
carinho e gentileza ao manusear,
para as flores dos mamilos te mostrar,
na plenitude do calor que mais se quer.

Não foram feitos para te aleitar,
mas para te atrair às relações
que a outras boquinhas podem conduzir,

mas foram feitos para te alentar,
nessa perfeita forma de botões
de que a seiva ira brotar a reluzir.

MAMMILARIA IV

Igual que os cactos, também possuem espinhos
esses pomos redondos e encarnados,
ou em sua turgidez acastanhados,
maçãs redondas a sugerir carinhos.

Assim não cabem a ti outros caminhos,
maternos seios no antanho já deixados,
o canto agreste dos cactos empinados,
amado leite, como querem alguns vinhos.

E não te cabe prender-te a tais passados,
quer sejam doces tais recordações
ou inconsistente o amor das intenções,

pois fundo cravam tais acúleos procurados,
em vez de flores só te trarão desgosto,
caso busques a tua mãe no seio exposto.

MAMMILARIA V

No céu eu vejo um sol a fervilhar,
igual que um seio de mulher dourado;
durante o frio, abraça-me, encantado,
igual que a mãe ou amante a acalentar.

Como são doces tais  raios a brilhar
permeio ao vento de silvar gelado,
leite de ouro sobre a testa derramado,
mãe e pai de toda a vida a se mostrar.

Mas são seus raios qual coroa de espinhos
que a geada rasgam em nova redenção,
sem provocar degelo ou inundação,

sol hibernal sobre todos os caminhos,
das noites longas calmo prisioneiro,
igual redondo violão de seresteiro.

MAMMILARIA VI

Que pena que entre nós se faz carrasco
durante os longos dias do verão,
a vida a calcinar sem proteção,
seio maligno sem leite no seu frasco,

qual mamilária espinhosa no seu casco,
negando flor e sem dar sequer botão,
enquanto à beira do caminho lanço mão
das hastes secas que inutilmente masco.

Maçã impura que nos céus lampeja,
queimando a pele e a extrair suor,
cada raio um espinho que me beija,

para sugar de mim linfa e vigor,
sol de verão que sobre a terra veja,
em galhos secos transformando o amor...

DALLEBONA I – 24 NOV 13

Eu me lembro de ti é pelas noites,
das vezes que te vi, já à tardinha,
ou após o escurecer, que se avizinha
o momento de sonhar em meus pernoites...

Mas em geral, nem espero que te afoites
de tocaia em meus sonhos, prenda minha,
senão no instante em que a aurora vem sozinha,
pois só então é que vou para os acoites

dos travesseiros e lençóis, só então eu sonho
visões miríficas de realização,
quando sou vítima de meus devaneios,

que é mais frugal o dia e mais tristonho,
pois jamais posso te estender a mão
e enxergar-me abraçado nos teus seios.

DALLEBONA II

Assim te esqueço ao decorrer de dias inteiros
e nem sequer recordo de tua voz;
completada uma tarefa, em seu após
surgem de leve, em rasgos pegureiros,

teus cílios a voar, olhos traiçoeiros,
desprovidos de empatias ou de dós,
que a alma me mastigam como em nós,
feroz conquista de anzóis aventureiros...

Cada cílio em minha memória retorcido,
sem precisar de isca, em sua aguçada
pesca finíssima de metálica atração;

e então sacudo a testa, desvalido,
a esquivar-me dos dardos da caçada,
apenas sangue pingando de minha mão.

DALLEBONA III

Recordo mais é no meio das manhãs,
quando o sonho se apresenta em fragmentos,
qualquer perfume a recordar os teus unguentos,
corriqueiros a brotar dessas louçãs

faces de amora em raiz de buscas vãs,
sem relembrar quaisquer integumentos;
só surgem cílios nos meus pensamentos,
fisgando a mente quais felpas de lãs,

imagem a brincar com meu consciente,
como se fosse da mulher mais inclemente,
de seu poder segura e seu prestígio,

nessas pestanas de negror potente...
Como as tésseras compor desse virente
mosaico puro que não me traz qualquer alívio?

DALLEDONA IV

Pois a mim mesmo tenho de reconhecer
essa paixão por mulher que nunca vi,
mas somente em meus sonhos pressenti
e aos quais não posso, ao menos, recorrer.

Não sei se foges ou te dás a conhecer,
se te fui indiferente ou persegui;
quando desperto, face e corpo já esqueci,
nem roupas nem cabelos posso ver.

É só depois, se talvez um escarlate,
ou verdigris, ou meigo rosicler
perpassa num lampejo o meu olhar,

que essa imagem recortada então se abate
e me persegue esse anseio de mulher
que jamais vejo no meu despertar...

DALLEBONA V

Se a conhecesse na vida, era explicável
que a amasse, sem dizer, secretamente,
ou a recordasse num clarão nascente,
como joia cintilante e inalcançável;

somente a sinto como estrela memorável,
com quem contracenei inadvertidamente;
nem sei se foi erótico o presente
do travesseiro... ou se sequer foi desejável.

Os longos cílios como escama de serpente,
de lâmia ou súcubo que sugou-me a vida
e que furtou de mim conchas de sonhos...

Ou num relance, assim percebo diferente:
serem pestanas de uma égua perseguida
ou talvez lêmures de olhares tão tristonhos...

DALLEBONA VI

E nem controlo esse tolo romantismo
que cavalga para longe ao amanhecer;
mulheres vivas poderia perceber
com as quais compartilhasse o cataclismo,

nesse explosão que requer um neologismo
para que caiba num exato descrever;
a sedução devia lembrar-me de algum ser
que ao paraíso me levasse ou então ao abismo.

Mas é mística essa hora matutina,
quando tal musa ou deusa vem e pisca,
sem a cor me mostrar sequer dos olhos;

e só me resta a tal imagem peregrina
com que a mente a alma e o peito arrisca,
sem conseguir se lançar em tais escolhos...

EXCEÇÕES I – 25 NOV 13

Como dormem pela rua, sem ter esmola,
os príncipes de sangue desta terra!
Incapazes de lutar na diária guerra,
para o combate inadequados desde a escola!

Aos deficientes, hoje a piedade rola:
muito recurso se reúne e assim se enterra:
nas Ongues e entidades a verba emperra;
parte importante a diretoria dela esfola!...

Porém o que se faz com aqueles mais dotados,
no outro extremo do que é excepcional?
Quais os esforços para amparar os tais,

Cujos poderes devidamente aproveitados
à sociedade trariam lucro natural:
só medo e inveja é que eles causam aos demais?

EXCEÇÕES II

É certo, infelizmente, que a nossa educação
é muito limitada e milhares nem recebem;
recursos quando sobram, os governantes cedem
para aos cursos primários dar mais ampliação;

há anos que por baixo a gente faz nivelação
e aos cursos superiores raras frações acedem;
e no vezo do presente, menos valores pedem
nesse modismo das quotas para atual avaliação.

E caso aí se arranjem recursos excedentes,
vão para o esporte empregar, precipuamente,
e nem sequer no verdadeiro treinamento do atletismo,

mas nos esporte de equipe, que têm por excelentes,
seus votos  o governo a garantir, principalmente,
sem quaisquer resultados, senão diletantismo.

EXCEÇÕES III

Algum consenso existe, de má orientação,
a afirmar que o gênio acaba por se impor;
que de uma forma ou outra o músico ou escritor
se fará conhecido entre a pública opinião.

Porém é com frequência que os gênios em botão
são tímidos demais em relação a seu valor,
perseguidos por colegas e até por professor,
pois socialmente são de pouca aceitação.

Como se espera que um astrônomo ou astrofísico
encontre ambiente em cidade do interior?
Ou em química, biologia ou arqueologia,

se anda de óculos, parece gordo ou tísico?
Quando muito alcançará ser professor
de seus alunos ainda sofrendo zombaria!

IGUARIAS I – 26 nov 13

O homem vai à pesca e seu pescado
é recolhido na rede ou por anzol;
retorna à praia, orientado por farol,
onde seu peixe será cozido ou assado.

A morte vai à pesca e seu buscado
são cabeças ceifadas sob o sol
ou são almas caçadas no arrebol,
cujo destino é tão só imaginado.

Os peixes, nós comemos.  Quem duvida
que a ceifadora apenas um festim
esteja preparando...?  E quem nos diz

quais serão os convivas dessa lida...?
Que não nos plantam, quais flores num jardim,
mas nos devoram, com sorrisos senhoris...

IGUARIAS II

A carne não desejam de nós as criaturas,
porém nacos de alma de múltiplo sentido:
raiva e rancor, inveja, de todo amor o olvido,
malícia e rebelião contra todas desventuras;

pois amam as tristezas e maldições impuras;
e como sobremesa o humano tédio é tido;
já alegria e prazer têm gosto amanhecido,
a gula dos gourmets para aflições bem duras.

Não sei se de demônios aqui os chamaria:
não buscam nosso mal, são apenas maus pastores
e é raro nas fazendas tratar-se mal ao gado;

dá-se pasto e ração, vacina em cada cria;
quanto mais forem saudáveis, melhores os sabores;
apenas raramente um borrego é espancado...

IGUARIAS III

Então, se nós sofremos, é devido ao tratamento:
ao puro pessimismo alguém é destinado,
um outro por  doenças deverá ser trespassado,
o cordeiro abatem cedo, tem outro longo passamento

e algum por infortúnio dia e noite é esmagado
(reação contra a vacina aplicada no momento),
alguma especialidade se espera em cada evento,
ao tom das emoções cada qual amplificado.

Acostumado à gula, igual se engorda ganso;
fervido na sua casca, vivo ainda, qual lagosta;
desenvolvido às pressas, em hormônio crescimento,

por impuros alquimistas que descrever não canso,
tão só alucinação em delírio se me é imposta,
na tonta incompreensão de meu padecimento.

IGUARIAS IV

De forma semelhante, receberam encomendas
desta fazenda humana os atentos criadores;
a melhor alma enviada a seus senhores,
conforme determina o pedido para as vendas.

Em condições normais, assim, sem mais contendas,
quotas diárias e normais de sofredores,
morrendo de velhice ou em longas dores:
almas servidas em celofane e rendas...

Mas outras vezes, para banquetes especiais,
é necessário abater mais, em quantidade,
por acidentes de carro ou tsunamis,

assassinatos, tornados triunfais,
um trem que descarrila na cidade
ou alguma guerra de patrióticos reclames.

IGUARIAS V

Porém não é preciso buscar seres malignos
longe de nós, no abstrato ou espiritual;
a própria raça humana aos outros faz o mal;
não necessita sequer sofrer da guerra os signos.

Quantos há por aí, sob a capa de benignos
nos quais a ação egoísta é pronta e natural,
os outros pisoteando no seu festim carnal,
galgando os altos postos de que jamais são dignos?

Que se pode dizer de tantos traficantes
a transformar clientes em finas iguarias,
tomando seu dinheiro sem cuidar das consequências

ou desses diretores de corporações gigantes,
a vender medicamentos com mínimas valias,
do mercado escondendo os de reais potências?

IGUARIAS VI

Que se pode dizer de tantos governantes
que só querem devorar os frutos da ambição,
gozando a vida à larga, em sua corrupção
e contra os mais honestos mostrando-se intrigantes?

Que se pode dizer de tantos comerciantes
que adulterado vendem alimento à multidão
ou dos advogados de vil rabulação
que assassinos libertam para que ajam como dantes?

Ah, sim, possui a morte milhares de ajudantes,
que nos caçam e nos pescam sem a menor piedade,
nas ruas, nas igrejas ou em tantas profissões.

Por que inventar diabos se já temos os meliantes
a cometerem atos da maior barbaridade
e que a justiça protege em suas mil apelações...?

DESDÉM  I – 27 nov 13

Todos pensamos ter franquia da tristeza,
que nos fornece, com exclusividade,
ocasiões de despeito, de mágoa e de maldade,
que podemos expor em vitrinas, com certeza,

e exibir para os outros, em tola singeleza,
tal como nos exibem, com plena liberdade,
suas próprias lamúrias, em total sinceridade,
a julgar que apreciamos desditas sem beleza;

mas se algo aprendi e sinto verdadeiro
é que o interesse dos demais é só por si
e quando me procuram, não é por simpatia,

mas porque vêm encontrar em mim alvo certeiro
para o que buscam, em incontido frenesi:
por receber de mim franquia da alegria!...

DESDÉM II

Em geral, os aceito com total sinceridade
e escuto tais problemas sem aborrecimento
ou pelo menos finjo solidário sentimento,
no rosto a revelar tão só equanimidade.

Adotar esta atitude não revela falsidade:
é real de tais pessoas o meu aceitamento,
desde que saibam mais ou menos o momento
de parar de verter seu vaso de maldade...

Então saem por aí a gabar a minha conversa,
quando de fato nada mais fiz do que escutar,
sem responder demais ou dar minha opinião,

que a maioria deseja, em sua prosa tersa,
nem tanto se queixar ou o mal descarregar,
porém de alguém sentir somente aceitação.

DESDÉM III

Contudo existe aquele de si mesmo tão seguro
que aos outros não limita contar as suas mazelas;
falando francamente, até se gaba delas
e insiste com o amigo partilhar destino duro,

que reconta com prazer, acrescentando juro,
denegrindo da vida as coisas mais singelas,
os outros caluniando por terem vidas belas,
chafurdando no azar que afirma ter escuro.

Também a tais escuto, porém sem simpatia,
pois de fato de suas vidas não sinto compaixão;
talvez até me apiade do jeito que eles são,

tendo tudo na mão, sem a nada dar valia,
a se queixar de coisas de que tantos sofrem mais,
a paciência extinguindo de todos os demais...

DESDÉM  IV

Afinal, esses também apreciam minha conversa,
por idêntico processo de equânime escutar;
são tão autoimportantes em seu própria avaliar
que veem obrigação na atenção mais tersa.

Mas quanto a mim, por que atenção pedir dispersa,
se em qualquer lamúria ninguém vai se interessar?
O máximo que faço é em versos expressar
igual padecimento que em muita vida versa

ou de mim faço troça, sem ter comiseração.
Não sou pior que tu, comparto teus problemas,
comuns à vida humana, são teus e meus também

e destarte sinto pena desses que ingênuos são
a ponto de julgarem representar-me cenas
das quais eu me envergonho de até mostrar desdém.

XIRCA I – 28 NOV 13

Que puro e claro é o canto do xircal!
No descampado, de permeio ao alecrim
é roxa a flor em pleno inverno, assim,
quanto é amarela a flor do alecrinal...
A solidaga a mesma cor tem, outrossim,
(que erva-lanceta chamam no seival).
Será que a cada arbusto faz rival,
da outra planta o amor buscando assim?

Deseja ela a xirca purpurina
ou o plácido alecrim, em ardor de ouro?
Que faz ali o espinho-de-carneiro,
cada pétala verdigris folha assassina
a disputar com a folha escassa o seu tesouro
e a carniceira no meio do terreiro?

XIRCA II

A xirca se transforma em rubra chama
quando inicia o fulgor das olarias;
só depois que a lenha seca a queimar vias,
na caloria que produz a verde rama.
Com picareta o cortador reclama
grossa raiz que no campo encontrarias;
na sua pobreza ganha o preço de dois dias,
um potreiro a limpar, que alguém o chama...

E então recolhe arbustos às dezenas,
a carregar nas costas ou em carrinho
de mão – ou, às vezes, em “paviola”,
se tem alguém a partilhar suas penas;
e os conduz por talvez longo caminho,
sem se importar com a flor que amor consola.

XIRCA III

Ditado antigo diz que amor é a flor roxa,
alimentada por ingênuo devaneio,
a nascer em inocente bamboleio,
num coração que dizem ser “de trouxa”...
Amor se sente quando a lágrima se afrouxa,
a contemplar a xirca em cada esteio,
as frondes ásperas movendo em seu meneio,
só tem braços e raízes, sem ter coxa...

Mas se pode dizer que tem cabeça
envolta em purpurina inflorescência
e em ramas duras a zurzir ao vento.
Quem já viu o seu bailar jamais se esqueça
de como a xirca tem gaúcha permanência,
dentro do pampa a soprar seu silvo lento.

XIRCA IV

Quando o minuano então se manifesta,
encontra o abraço das xircas em seu cio;
elas respondem ao vigor desse assobio,
as hastes agitando como em festa
e no calor, durante a hora da sesta,
o seu ciciar atrai até o bugio
que apenas ronca... e no coro de seu brio
são mil arbustos a entoar canções de gesta.

A recordar aquelas longas cavalhadas,
os mil tropeiros que por ali passaram
e cujos ossos por ali, quem sabem, estão.
E nesse canto de agrestes invernadas
ainda se mescla o dos gaiteiros que calaram
no verde sangue de seu coração!

A RUAZINHA I – 29 NOV 13

Se abre minha janela em rua estreita,
estreita rua da cidade antiga;
é fácil encontrar a sombra amiga
na pouca altura que a casa em frente ajeita.

Do sul ao norte estende-se, perfeita,
a velha rua original, mística figa,
que tentado a repetir, talvez consiga...
Ou já esqueci da forma como é feita...

Só da rua não me esqueço, diariamente
percorro suas calçadas ou a atravesso
(que nenhum carro venha então eu peço).

Quero cruzar sem pressa e bem contente,
bem cedo de manhã a sombra certa
que do sol o esplendor ainda acoberta.

A RUAZINHA II

Somente ao meio-dia, hora do cão
(chamavam de canícula os já passados
ou, pelo menos, os que se tinham por letrados),
derrama o Sol suas gotas de paixão.

Aqui não tenho dele a proteção,
senão de meus bonés colecionados;
então evito, igual que a meus pecados,
sair à rua, temendo insolação!...

Mas logo após, lidando para o oeste,
o Sol se escondo logo atrás de minha casa
e das casas habitadas por vizinhos;

Só molha com vigor a calçada leste
e a linha da sombra aos poucos vaza
de cada pedra a recobrir os escaninhos.

A RUAZINHA III

Há duas centenas de anos foi fundada,
perto daqui, minha cidadezinha,
traçada muito reta a ruazinha,
ao portão do cemitério endereçada.

Cada casinha de torrão enfileirada
e cada pedra, em irregular redinha,
sob saias a espiar, atrevidinha,
as pernas de mulher mais apressada.

Aqui passaram também tantas procissões,
carregando, com esforço, seus caixões,
em direção à última morada.

E quando saio, por qualquer motivo
ou contemplo do portão de ferro altivo,
ainda as vejo, em plena madrugada...

ARQUIVIA I – 30 NOV 13

Há muito tempo a cidade transformou-se:
já são maiores as casas de minha rua;
mas se o reboco retirar, parede nua
ainda mostra de que barro originou-se;

tijolos grossos que talvez queimou-se
em velhas olarias, sob a pua
do vento, aqui por perto, à luz da lua:
mortos os calos... nem sei onde enterrou-se

aqueles homens de rostos enrugados,
curtidos pelo vento e pelo sol,
menos que carne, alimentados pela canha;

ou os pedreiros, nos tijolos debruçados,
atarefados, talvez, desde o arrebol,
ao meio-dia do calor fugindo à sanha...

ARQUIVIA II

Porém as minhas paredes ainda arquivam,
enrodilhadas sob a tinta e a argamassa,
as impressões digitais, de forma escassa,
das mãos calosas que as paredes primitivam.

Sob o reboco velhas almas se cultivam,
aprisionadas nesse hálito que repassa;
que sob as mãos de tinta não se esfaça:
são sombras mortas que dormem e se esquivam.

Do mesmo modo, do piso as tijoletas
prendem suores e lembranças no cimento,
cada greta obliterada pelo banho,

adormecidas e a ferver raivas secretas
que inda acordadas afloravam o pensamento
dos braços desnutridos desse antanho...

ARQUIVIA III

Mais acima, foi a cidade planejada,
todo o centro retilíneo em avenidas,
um hectare para as quadras permitidas,
um cerco firme a exercer cada calçada.

As novas casas a erigir gente abastada,
rentes à rua, nos quintais longas guaridas,
para árvores de fruto ali contidas,
por altos muros de uma em uma separada.

Bastante raras as de estilo colonial,
entrançadas pelo estilo do art-nouveau,
as mais recentes a mostrar art-déco,

aqui e ali plantado um palmeiral,
com mudas transplantadas desde o norte,
adaptada a maioria à nova sorte...

ARQUIVIA IV

Hoje chegaram da ausência as pinceladas,
muitas casas de minha infância demolidas,
em seu lugar, por ganância, construídas
novas gaiolas para muitos dedicadas...

A maioria até assisti serem plantadas,
seus alicerces quais sementes incontidas,
água do solo atrapalhando as investidas,
com bomba em catadupas retiradas...

As grandes casas da rua em que cresci,
antigamente com famílias nas calçadas,
na fresca sombra e zéfiro da noite,

ou desmancharam ou em comércio eu vi,
com vitrinas e espalhafato transformadas,
nenhuma fruta a encontrar no pátio acoite.

ARQUIVIA V

Há muitos anos, porém do chão antigo,
pelos percalços da vida me mudei;
duas casas em que vivi observei
demolidas, cada qual com seu castigo.

A cidade se expandiu e hoje dá abrigo
a milhares por quem nas ruas não passei
quando era jovem – e como reza a lei,
muitos se foram, sem estarem mais comigo.

Se eu fosse gótico ou rude masoquista,
sempre os iria visitar em suas gavetas
ou talvez, nas capitais, revê-los ia,

mas me limito a escrever, pobre copista,
as memórias abertas ou secretas
que ante meus olhos expõe esta arquivia.

ARQUIVIA VI

Uma arqueológica via me contempla
a cada vez que trilho o calçamento;
dos passeios já trocado o pavimento,
vezes sem conta esta calçada se retempla.

Porém redondas cada pedra ainda se alenta,
perpétuas são, mais que a memória adentro,
em suas moléculas, pedra e saibro a dentro,
todo o passado seu código acalenta.

A rua é antiga e a arquivia arquiva
os esgares pertinentes do passado,
os cascos tristes marchando ao matadouro,

as cavalhadas dessa gente altiva,
os imigrantes de passo desconfiado,
em seus pétreos escaninhos de tesouro!...

KARINAB I – 1º DEZ 13

A MEMÓRIA DESSA RUA AINDA ME INCITA:
SEI QUE HOUVE POR AQUI ASSASSINATOS
OU, PELO MENOS, ASSIM CORREM OS BOATOS;
BEM NO ALTO DA RUA ECOA A GRITA

DO CERCO E TIROTEIO QUE SE AGITA,
DE TRÊS REVOLUÇÕES OS VELHOS FATOS,
DO CONTRATO SOCIAL OS DESACATOS,
MORTE TRAZENDO POR DIVERSA COR DE FITA.

ERAM LAJES DE PEDRA NUM RETÂNGULO,
ALGUMAS POUCAS AINDA EM SEU LUGAR,
A MAIORIA DE HÁ MUITO JÁ ARRANCADA,

UTILIZADA, PORÉM, EM NOVO ÂNGULO,
CADA LAJEDO EM ALICERCE A TRANSFORMAR
ESSA LEMBRANÇA DO PASSADO SOTERRADA.

KARINAB II

GUARDARAM AS LAJES CINZA A LUZ ROSADA
DAS MANHÃS QUE LEVAVAM À CATEDRAL;
DOS SINOS RECORDAVAM O CAUDAL
E DAS CARRUAGENS CADA RODA ATAREFADA.

FOI A PRAÇA DIANTEIRA REFORMADA,
DEPOIS QUE IGREJA SERVIU COMO HOSPITAL;
AUTORIDADES ACHARAM NATURAL
COPIAR DE NIEMEYER A ONDULADA

IMAGERIA ENCONTRADA JUNTO ÀS PRAIAS
DESSA CIDADE QUE JÁ FOI A CAPITAL,
PARA MARÍTIMAS ORLAS PROJETADA;

PORÉM NO PAMPA, PERMEIO ÀS VERDES SAIAS,
MELHOR SERIA O LAJEDO ORIGINAL,
SOLENE A RECOBRIR CADA CALÇADA.

KARINAB III

QUANTA CRIANÇA AQUI FOI ARQUIVADA,
SOLAS MACIAS NESSAS LAJES REQUEIMANDO,
COM SUA MOEDA NA MÃOZINHA ANDANDO
ATÉ ACHAR DO SORVETEIRO A SUA PARADA!

E QUANTA ADOLESCÊNCIA AQUI PASSADA,
AS SOLAS DOS SAPATOS RETOMANDO
IDÊNTICO DESTINO DEMANDANDO,
PARA AO CINEMA LEVAR A NAMORADA!

E QUANTO ADULTO, A VIDA APRESSURADA,
DEPRESSA PASSA, EM BUSCA DO SERVIÇO,
QUANDO A NOITE NÃO SOLTAVA O SEU ABRAÇO!

E O ANDAR MAIS LENTO DA VIDA JÁ CANSADA,
A MESMA LAGE REGISTRANDO MENOS VIÇO
NO CURTO ESPAÇO SEPARANDO CADA PASSO...

KARINAB IV

HOJE NA ESQUINA VEJO LUGAR BALDIO:
AINDA HÁ POUCO AI SE ERGUIA CASA ANTIGA,
O QUARTEIRÃO COMPLETANDO COMO LIGA,
PRENDENDO AS CASAS, SEM ESCORRER O FIO...

NÃO SEI EM QUAL ATERRO ESSE ARREDIO
ENTULHO FOI LEVADO... AONDE SIGA
ESSA MEMÓRIA QUE A INCONSISTÊNCIA OBRIGA
A SER LANÇADA TALVEZ JUNTO DO RIO...

EXISTE AGORA APENAS UM TAPUME,
TÁBUAS DO FORRO SÃO, TALVEZ DO ASSOALHO;
POR ENTRE AS FRESTAS É FÁCIL VER O MATO

DO PAMPA A RECOBRAR O SEU APRUME;
ENTRE OS DESTROÇOS É O CAPIM VERDE COALHO,
EM PROTEÇÃO AO ESCONDERIJO DE ALGUM GATO!

RECOMPENSA I – 2 DEZ 13

Eu tenho para o mundo uma janela
bem mais concreta que a imaginação;
não preciso nem sonhar, que aqui estão
as mentiras e certezas da procela.

Diante de mim, qual luminosa vela,
a refletir em sua lona a insolação,
eu trago a imagem de cada brotação,
gerando o brilho fantástico da estrela.

Mas amealhei com cuidado cada imagem,
para lambê-la de novo com o olhar,
tocá-la posso com a ponta de meus dedos,

ainda embora não escute essa miragem
e seus sabores possa só imaginar,
seu perfume usufruindo em mil segredos...

RECOMPENSA II

Anos levei a recolher essas figuras,
com a polpa dos dedos a evocar...
Tenho milhares para convocar,
umas lascivas, outras todas puras...

E nem preciso folhear essas gravuras;
elas se abrem ante mim, basta chamar
(salvo se a luz elétrica faltar!):
são meus arquivos, minhas iluminuras.

Noutra semana foi do Tibet uma paisagem:
festucas ondulantes, azul lagoa,
ao fundo uma montanha alcantilada

e muitas árvores, do verão feita a contagem,
já terminando, igual que a vida escoa,
a sua folharem já em arco-íris mutilada...

RECOMPENSA III

Hoje troquei por retrato de mulher,
deitada sobre rocha de basalto,
à beira-mar, erguendo-se em ressalto,
seus lábios entreabertos, qual quem quer

não o meu beijo, (nunca me viu sequer!),
mas seduzir, pele creme contra asfalto,
essa câmera que a enfoca desde o alto;
sem dúvida, de modelo é seu mister.

Ali ela pousa, toda lânguida mostrada,
porém sua pele, para mim é certo,
é machucada pelas pontas da aspereza;

artificial, totalmente maquilada,
biquíni verde e a carne num concerto,
mostrando apenas a cor de sua beleza.

RECOMPENSA IV

É claro que já foi recompensada,
que esse retrato lhe valeu cachê;
uma revista pagou-a, já se vê,
por seu reflexo, na praia reclinada.

Tanta beleza humana já mostrada
pela arte antiga ou em histórias que se lê;
tanta beleza louvada, como se
não fosse em breve totalmente transformada...

É para mim satisfação estética,
pelo prazer que encontro na minha raça,
não diferente do que à mente me compensa

essa visão tibetana, em igual poética,
que por minha rede de neurônios se desfaça,
igual que os pixels desta breve recompensa...


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