sábado, 21 de dezembro de 2013






ACEITAÇÃO & MAIS
William Lagos


ACEITAÇÃO I – 12 NOV 13

Quero saber o que esse ventre pensa,
que me recebe e constringe com firmeza,
que me derrota e esmaga, com certeza,
nessa nuvem de brancor, em chama densa.

Quero saber o que  a passagem tensa
exige assim, no instante de beleza
em que as lágrimas escorrem sem tristeza
e o óvulo se apresta, em luz intensa.

Quero saber o que pensa cada um
desses soldados, que talvez saibam ser escolta
do casual vencedor, em vaga espuma,

pois todos regam, em igual debrum
esse tecido em que a alma fica envolta,
na vã esperança que para a morte ruma. 

ACEITAÇÃO II

Quero saber qual espírito me envolve
e participa de tal ato de amor;
quais o fantasma oculto no torpor,
que em tais alfombras obscuras se revolve.

Qual a plateia que, súbita, dissolve
após o abraço e as gotas de suor;
haverá antepassados nesse ardor,
alguém que já me amou e que então volve?

Qual a pletora que cintila nas paredes
da capa corporal de nossa pele,
que cante em coro nas raízes dos cabelos

e quem exige essas células que cedes
e por fecundação bendita vele,
nesse fulgor inconsútil dos desvelos?

ACEITAÇÃO III

Quero saber se o espírito do tempo
entre nós se confunde com o da raça,
se o espaço se dilata e assim perpassa
dois corpos a ocupar o mesmo alento.

Dois corpos a zunir no mesmo vento,
duas centelhas na fusão da mesma graça,
reconhecendo o porvir que então se enlaça,
sem que haja interferência ou impedimento!

Quem leva o óvulo a essa escolha incognoscível,
pelo cone de atração incontestável,
de uma única célula amorável

e de todas as demais ser desprezível;
o que o faz perceber ser o mais útil
e prendê-lo em sua membrana já inconsútil?

ACEITAÇÃO IV

Quero saber se promana do futuro
essa musa da carne tutelar,
que a concepção permite realizar
de tal modo inexorável e seguro;

ou se retorna do passado auguro,
a reclamar da decisão auricular,
nesse puro sacramento milenar
que leva a raça a um palpitar mais puro?

Quero saber qual ser que então preside,
se é o espírito da raça, obstinado,
determinando a nova evolução

ou se a egrégora da família que reside
nesse ato compulsório, destinado
somente a dar aos ancestrais continuação?

PROTOCOLO I – 13 NOV 13

É num instante apenas que isso ocorre,
quando tocam os sinos e as estrelas,
cintilam loucamente, ainda mais belas,
celebrando esta vida que me escorre.

De minhas sementes a maioria morre
e apenas um dos barcos ergue as velas;
nesse prazer do suicídio as telas
serão pintadas... E numa branca torre

a vida esguichará com valentia,
muitos milhões a empreender a travessia
que só conduz às Trompas de Falópio,

morrendo no caminho tantos entes,
de tantos outros seres as sementes,
disseminadas num torpor de ópio...

PROTOCOLO II

Existirá uma qualquer magistratura
a reprodução da raça humana a presidir?
Consultando seus grimórios, a sorrir,
pelo feitiço, talvez, de escolha impura...

Ou serão monges de angélica tonsura,
que consultam alfarrábios, a pedir
orientação divina para o reproduzir,
cada semente a fecundar somente pura?

Será que existe uma assembleia expectante,
determinado o momento de encarnar,
ou que por vida esteja tanto a ansiar

que lhe sirva qualquer orgasmo delirante,
para que um vínculo se abra nesse instante,
dentro do qual possa a alma penetrar?

PROTOCOLO III

Que animação possuem esses milhões
que jamais se tornarão em organismo?
Ressecados por aí, sem saudosismo,
pois não formaram as novas gerações?

E que dizer dos abortos de ocasiões,
qual rejeição ou moléstia nesse abismo,
carregando o nascituro em cataclismo...
Quem precise às multifárias decisões...?

Quem determina, na prodigalidade
de mil sementes, quais absorvidas
e quais somente expelidas sem piedade?

Quais aquelas que serão, enfim, nutridas
e à geração darão continuidade,
sem por remorsos serem perseguidas...?

TALWYN  I – 14 NOV 13

Lembranças más, como aves de rapina,
Revoluteiam em torno do consciente,
Ansiando debicar, frequentemente,
Quais diabretes e mastigar-me a sina...

Até que ponto tal mazela se destina
A conservar a agudeza do presente,
Que no prazer e paz é complacente
E disposto a conversar em cada esquina...

Porém as más lembranças do passado,
Como o planta dos pés pisando urtiga,
Talvez ajudem até a sobreviver,

Na reação contra o mal desatinado,
Que nos tortura e a resistir instiga,
Quando menos nessa busca do esquecer...

TALWYN II

Pois como é raro ter lembranças dos prazeres
Com a intensidade das lembranças más!
Mentalmente, algum prazer a gente faz
Reluzir entre os presentes perceberes.

Na verdade, há exatidão nos reconheceres
De algum cheiro ou de um gosto no carcás
Das flechas que a memória sempre traz,
Mas que acontece se os tentas descreveres?

Muito mais tênue é a lembrança do sabor
Ou do tato ou até mesmo da audição
Que da ardente queimadura a sensação;

E o mesmo ocorre do sentimento a dor,
Muito mais fácil que o bem do coração
Ou da paixão que se sentiu com tanto ardor...

TALWYN  III

Suspeito, ao menos, que é a própria Natureza
Que nos faz recordar tão bem o ordálio,
Nos ruboriza ao recordar do ato falho
Ou do menor fracasso, com certeza...

Deste modo, com bem maior firmeza,
Nos previne contra o golpe de algum malho,
Contra à ponta subir de fino galho,
Ou cometer os mesmos erros, com leveza...

Mas por que assim se esfaz em fragmentos
Aquele rosto que se viu outrora
E se recorda somente o seu retrato?

E se amenizam, pouco a pouco, esses portentos
Do antigo amor, gozado em prisca hora
E se dilui do beijo o doce tato...?

ÁGUAS DO TEMPO I –15 NOV 13
(Hommage a Michael Marshall)

O tempo é um lago, ou antes, vasto oceano,
que a cada dia que passa se aprofunda;
não tem limites a tigela assim rotunda:
ela se alarga e expande a cada ano.

E nele andamos, sobre a cave tão profunda,
na tensão superficial o nosso engano,
cada um pensando ser da vida soberano,
até afundar na vastidão corcunda...

Porque é o movimento que mantém
as nossas longas pernas, como inseto
correndo sempre para parte alguma;

mas quando a paz tranquila nos convém,
começamos a afundar nesse abjeto
montão de horas para as quais a vida ruma.

ÁGUAS DO TEMPO II

Só nesse instante em que inicia o afundamento
nós percebemos a importância do passado:
o nosso andar inteiro ali apoiado,
sem permissão de suspender o movimento,

pois sob as pernas se forma o integumento
desse côncavo irreal e irrealizado,
sem apoio veraz no que é pisado,
mas tão somente na inércia do momento.

Cada passo a servir como alavanca
que a um novo fluir nos impulsiona,
na linha tênue e insensível do presente;

e se a corrida por momento estanca,
a água do tempo de nossos pés se adona,
ao atoleiro a nos puxar subjacente.

ÁGUAS DO TEMPO III

Só então se nota o grão valor do ontem,
apoiado no anteontem, na semana
que para trás ficou e nos irmana
aos que passaram, sem que sequer os contem,

cada ontem sobre a rede do trasanteontem,
enquanto a gente sobre o hoje aqui se ufana,
na esperança de amanhãs em nova gana,
por mais que as incertezas nos apontem.

E o tempo pinga assim, gota após gota,
banhando o hoje  com as águas do amanhã,
que ao se esgotar em hoje, chama adiante,

enquanto o hoje no ontem já se embota,
toda certeza e permanência vã,
enquanto o sono a vida corta no seu guante.

ÁGUAS DO TEMPO IV

Quando notamos, nos ontens do passado,
quanto de nós deixamos para trás,
qualquer espanto diante a vida se desfaz,
ao ver o povo nesse âmbar conservado.

Mantemos sempre o alvo do traçado,
vemos a gente que ao redor o mesmo faz,
sobre a lâmina flutuante que hoje jaz
e que amanhã se confunde ao ultrapassado.

E quando os olhos erguemos ao horizonte,
vemos a fímbria desse oceano imenso,
acobertado pelo toldo do porvir;

águas do tempo, de toda a vida a fonte,
na superfície fina o voo tenso
de quem se ilude no mundo ainda existir.

LUDANYRA I 16 NOV 13
(Hommage a Richard Harrison)

Há uma aliança entre o morto e o nascituro,
na qual os vivos são apenas travessão,
do fogo aceso e a cinza só o tição,
no seu breve rebrilhar perante o escuro.

Passam os vivos a nutrir-se do monturo
que hoje chamamos de civilização,
o que deixaram no antanho os que lá estão,
petrificados no destino, em bando obscuro.

Enquanto aqueles que ainda esperam gelatina
vão lentamente derramando sobre nós,
desse advir que chamamos de futuro;

sob tal peso a vida dobra e inclina,
na longa espera por viver o após,
do diário empréstimo a se pagar o juro.

LUDANYRA II

Já não vemos os ontens do passado,
entreverados com as vidas que já foram,
nem tampouco o porvir que nos agouram,
nesse futuro que no além já está mesclado.

Pois somos longos vermes nesse adiado
e extenso conservar, mas que só duram,
iguais a dobradiças que se apuram,
no fervilhar do tempo marchetado.

Como podes o teu ontem recobrar,
se já o deixaste ao longo do caminho?
E que futuro podes esperar,

sem saber se é portentoso ou comezinho?
Só tens consciência da presente junta,
como os proglótides que uma larva ajunta.

LUDANYRA III

Ao fim de cada dia, atrás deixaste
esse anel de ti mesmo, irrefragável,
nenhuma parte de ti recuperável,
salvo a memória que ainda conservaste.

E só Deus sabe até que ponto relembraste,
com plena exatidão, essa intocável
vida dos outros, que mantém em memorável
conserva envinagrada que tampaste.

As longas fibras, pouco a pouco, se interrompem,
enquanto tantas outras permanecem
e novas fibras se atêm à tessitura;

e as memórias de teus dias se corrompem,
enquanto os amanhãs te coalescem
e a fibra tua inteira ainda perdura...

LUDANYRA IV

Por isso o impulso para a reprodução,
por que essa liga não venha a se partir;
que as longas fibras já postas a dormir
sejam mantidas pela nova brotação.

Já foi cortada toda a conversação
com os mortos, apesar do perquirir...
Quem se lembra aos não nascidos inquirir,
salvo, talvez, durante a gestação...?

Mas quem nos diz que os mortos não conversam
com a multidão dos que ainda não nasceram,
sem que das vozes tenhamos percepção?

Pois nossas vidas são sinais que versam
os nascituros para os que morreram,
não mais que um permanente travessão...

ESTÁGIOS I  (2008)
  
O dealbar é tanto o fim da noite
como o começo do seguinte dia;
e é assim em tudo: o que fugia
de nossos dedos, ante o feroz açoite

da morte, é tão somente transitório:
algo termina e algo recomeça;
mas se a vida é transitória, não esqueça
que ao fim de cada evento, seja inglório,

seja pleno de triunfo, principia,
viva, nova ocorrência; quando dói,
basta esperar o fim dessa afecção;

até o ditado proclama como um dia
vem após o outro; e o amor que se destrói
fica guardado no teu coração. 

ESTÁGIOS II – 17 nov 13

Até mesmo quando amor em ódio vira,
é a face oposta da mesma moeda;
hastes de trigo se empilha em cada meda,
vão para a eira, sobre elas o trilho gira;

e as mil hastes que amor em sonho inspira,
são como essas sementes, essa leda
cabeleira a ondular, que ao vento ceda,
branda e volúvel quando a brisa a fira.

Uma parte da semente se faz trigo,
quando semeada para a próxima colheita,
enquanto outra se esmaga por farinha.

Existe ódio no pão, se não consigo
a espiga visualizar mais desta feita
ou só há amor só semente pequeninha?

ESTÁGIOS III

Do mesmo modo, se significa morte,
também vida representa o dealbar,
em novo dia amor a continuar...
Rancor existe, quiçá, então na sorte

com que a noite se entrega a seu consorte
ou mais amor ainda no alternar?
A noite sonha o sonho a te entregar
e nasce então o dia em claro esporte. 

Na Lei do Ciclo tudo se transforma,
como queria de Heráclito a visão,
em cada morte vivendo outra paixão,

enquanto a vida é filha dessa forma
que se perdeu e é algures enterrada,
mas sem a qual não haveria mais nada.

ESTÁGIOS IV

Quando sofremos, esperamos para a dor
um fim rápido ou lento, escusa morte
a aliviar para nós a álgida sorte,
da saúde o magnífico sabor...

Mas que seria de nós sem o teor
dessa alternância de constante porte?
Que a dor apenas incomoda o forte,
nessa esperança de seu estertor.

“Panta rei ouden menei”, qual dizia
o filósofo heleno do passado;
assim como tudo mais, a vida passa,

também a morte a terminar um dia;
tem toda a noite da alvorada o fado
e ao por-do-sol cada dia descompassa.

ESTERNUTAÇÃO I – 2008   

Espirrar contra o vento traz má sorte:
borrifas a ti mesmo e então o nojo
te faz limpar o rosto do despojo
dos perdigotos, em desgostante corte.

Reclamar contra a vida ou contra a morte
produz igual efeito; mais trabalho
terás para limpar o tal chocalho
de queixas de pequeno ou grande porte.

Ao espirrar, busca o favor do vento,
que para longe levará toda gotícula;
e quando a vida te trouxer tormento,

enfrenta quieto, ou então, vira-lhe as costas,
pois se puderes perceber quanto é ridícula,
terás enfim da vida o quanto gostas...

ESTERNUTAÇÃO II – 18 nov 13

Só quem aprender a vida a ver com ironia
consegue o mal diário suportar;
chegando o bem, feliz a se encontrar,
mas na consciência de que não perduraria.

Todas as coisas dependem da ideologia:
meio cheio o teu bornal a imaginar,
caso teu ânimo o otimismo possa inflar;
oposta ideia é sentir meio vazia

a tua mochila, quando está pela metade;
e quando a vida te mescla uma tristeza
com uma alegria, aceitar de boa vontade

essa metade de mal com igual leveza
que a metade de bem que se reveza,
nessa balança da equanimidade...

ESTERNUTAÇÃO III

Mas pensa bem, que quando mais reclamas
das partículas de poeira a te acertar,
tais grãos de pó irás assim tragar:
melhor sorrir para o ar com que te irmanas,

dando as costas ao vento em tais inanas,
só nos cabelos a polvadeira a se assentar,
que cedo ou tarde tens mesmo de lavar:
pelos teus ombros o vasto vento encanas

e com ele se vão múltiplas queixas,
sem que precises, de fato, protestar,
contra os talhos de um destino indiferente;

que o bem e o mal, com todas suas endeixas,
são impostores, soube Kipling bem mostrar,
pois tudo passa, igual que passa a gente...

ESTERNUTAÇÃO IV

Mas nem por isso devemos aceitar
nossos percalços de forma indiferente:
resignação é um ato de impotente,
quando o mal vem, chega a hora de enfrentar,

tomar as providências, planejar,
os recursos empregar de antigamente,
sem esquecer de que é uma fase, simplesmente,
que de uma forma ou de outra há de passar.

Do mesmo modo que, ao clarão nascente
de um golpe de sorte inesperado,
a exultação não se recuse, estoicamente,

mas se guarde nos escaninhos do passado,
como reserva contra o vento impertinente,
mais uma vez, contra nós, esternutado!...

FLUXOS  I – 19 nov 13

Unidos, fluiremos como um rio:
cada um de nós, ao invés de diminuir-se,
ver-se-á aumentado ao distribuir-se,
tal como fibras, compondo o mesmo fio.

Unidos, como a neve, que no estio,
depois de em tantos flocos a flutuar-se,
depois de em bancos sólidos firmar-se,
forma torrentes de impetuoso brio.

E em tantas direções, em cujas partes
nunca perdemos a individualidade,
porém multiplicamos pela união,

é assim conosco, ainda mais nas artes,
no que melhor criou a humanidade,
que, ao repartir, se aumenta a inspiração.

FLUXOS II

A humanidade inteira, como um cabo,
feixe composto por incontáveis fios,
alguns mais longos, outros arredios,
mil fios de seda retorcido num só rabo;

de minha já longa vida não me gabo;
há mil fiapos de mim, unidos cios,
as lascas da madeira de meus lios,
em mim coladas e por isso não acabo.

E nessa união se encontra intransigência:
há muito mais de mim no peito alheio
e o sangue alheio em mim se emulsifica,

dos mil impulsos elétricos em vigência,
na isomeria multicor de cada seio,
no entrelaçar ritual que em mim se aplica.

FLUXOS  III

De forma igual, tua energia intensificada
enquanto flui para teus semelhantes,
corre a linfa de ti, em expectantes
gavinhas de expansão plurificada;

cada alma humana assim emulsificada,
interligada a suas próximas ou distantes,
compartilhando os sonhos mais vibrantes,
nessa intenção mais completa e imoderada.

Quando repartes, não se perde o que fluiu,
mas se renova, tal qual humana seiva:
é verdigris a luz da inspiração;

todo o fluir que então de ti saiu
retorna para ti em fértil leiva,
no fruto imarcescível dessa união.

FACETAS XXIV -- A MÃE DE CRIAÇÃO I – 15 JUL 2006

Bondosa é essa mulher, que assim adota,
em lugar desses filhos que não teve,
os filhos de outra mãe, que não manteve
o pacto umbilical e permanece ignota

até que os filhos cresçam e possam trabalhar,
quando retorna e retomar deseja...
E como a mãe-estranha o filho beija,
que a mãe-postiça criou e pôde amar,

com muito mais afeto e abnegação!...
Que surgirá depois dessa explosão,
quais serão os mais verazes dos afetos?...

Os daquela protetora, cujos retos
conselhos a criança conduziram,
ou os da esquecida, que agora ressurgiram?
  
A MÃE DE CRIAÇÃO II

Muito se fala da mãe-preta, cujo leite,
da mesma cor de quem tem a branca pele,
fluiu na boca ávida daquele
bebezinho, garantindo-lhe o deleite;

por um motivo qualquer, que a mãe aceite
seu sangue feito branco a vida sele
nessa criança que em seu colo zele,
numa partilha em que o próprio filho ajeite.

Certamente, aqui foi só contingência:
tanta mãe branca que soube dar o seio
a um pequenino que provém de ventre alheio,

que a fome aplacam de toda a proveniência,
seja ameríndia, mestiça ou japonesa,
em igual generosidade e ideal nobreza.

A MÃE DE CRIAÇÃO III

Não vem ao caso qualquer tonalidade
mostrada na epiderme.  Só a saúde
dessas mulheres, talvez de vida rude,
é que permite tal potencialidade.

Em certos casos, é a enjeitabilidade
que a tal destino uma criança mude;
em outros, a posição social que alude:
não quer do seio a mãe perder a mocidade.

Mas com frequência, no passado, já assisti
que a mãe pobre recuse-se a criar
e o filho entregue para alguma amiga,

talvez irmã ou parente, após intriga
qualquer que a tenha feito separar
do pai casual que só quer cuidar de si.

A MÃE DE CRIAÇÃO IV

E tanta vez, nutrida já essa criança,
velado em muita noite o sofrimento,
já educada, com pleno sentimento,
da mãe-postiça o alvo da esperança,

quando uma idade de trabalhar alcança,
vai ser buscada, no maior desfaçamento
e da justiça tem reconhecimento,
para destino de bem menor bonança.

Muita vez, até adotada legalmente,
é pela mãe-estranha confrontada,
que lhe afirma muito dela precisar

e esse menino, no espasmo da presente
adolescência de alma perturbada,
se permite por ela conquistar...

A MÃE DE CRIAÇÃO V

Ou surge o pai que nunca se importou
e à menina depressa descaminha.
com a promessa de a tratar como rainha,
em recompensa pelo tempo em que a negou.

Por certo, às vezes, boa intenção mostrou
e realmente, na vida que ora tinha,
com boa situação, de fato a alinha,
deixando atrás a família que a criou...

Ou pior ainda, é quando surge um namorado,
a ocultar a pior das intenções,
um cafetão, às vezes um drogado,

que a conduz a inesperadas situações,
muito mais dura a doença que o pecado,
das mães-postiças a partir os corações...

A MÃE DE CRIAÇÃO VI

A quem, de fato, tal criança caberia?
A quem lhe deu o umbigo espiritual
ou a quem a desprezou em inatural
atitude, contra o que o instinto lhe diria?

Será que toda mãe-postiça entenderia
que todo o sacrifício consensual,
bem raramente lhe trará lucro real,
que cedo ou tarde a criança perderia?

Pois quando de seu ventre o próprio fruto
é criado para ser entregue ao mundo,
o que esperar de quem só traz o sangue alheio?

Em cuja própria acolhida traz o luto
e a expectativa de um pesar profundo,
mas, mesmo assim, acolhe no seu seio?

O POÇO DE RAQUEL I – 21 NOV 13

FUGIA UM DIA JACÓ DE SEU IRMÃO,
ESAÚ, O RUIVO, A QUEM ELE OFENDERA;
POR SEU AMOR FORA A PRÓPRIA MÃE TRAIÇOEIRA,
A ENGANAR O CEGO ESPOSO SEM PERDÃO!

PARA QUE ASSIM O ABENÇOASSE EM COMPAIXÃO,
PENSANDO SER O PRIMEIRO QUE NASCERA;
NESSA INJUSTIÇA QUE JÁ PRETENDERA,
ESSE MAIS MOÇO A DESERDAR SEM GRATIDÃO,

PORQUE ERA JACÓ NO ACAMPAMENTO
DOS CRIADOS A CUIDAR E DAS OVELHAS;
ESAÚ ERA, AO CONTRÁRIO, UM CAÇADOR,

MAS POR QUALQUER RAZÃO DE SENTIMENTO,
GUARDARA ISAAC AS SUAS BÊNÇÃO VELHAS
SÓ PARA O FILHO MAIS VELHO, O SEU AMOR!

O POÇO DE RAQUEL II

POR REBECA E JACÓ ASSIM ENGANADO,
ISAAC RECEBEU JUSTO CASTIGO,
SEM QUERER, TRATOU ESAÚ COMO INIMIGO,
NENHUMA BÊNÇÃO LHE HAVENDO RESERVADO.

POIS A JACÓ TERIA ASSIM PREJUDICADO,
ASSIM O EXPONDO A PASSAR MAIOR PERIGO,
TENDO SOMENTE NO ACAMPAMENTO ABRIGO,
POR SEU IRMÃO MAIS VELHO DOMINADO.

TERIA SIDO DE DEUS PLENA VONTADE
OU DE UMA MÃE REVOLTADA O PURO ARDIL,
PORQUE SUAS BÊNÇÃOS NÃO QUERIA REPARTIR

O PATRIARCA QUE SOFRERA A INDIGNIDADE
DA VAIDADE DE ABRAÃO, EM SONHO VIL,
DE IGUAL CARNEIRO UM SACRIFÍCIO CONSTITUIR?

O POÇO DE RAQUEL III

DE FORMA IGUAL FUI TRATADO NO PASSADO
PELO MEU PRÓPRIO PAI, CUJO CUTELO
ERA MAIS ESPIRITUAL, CUJO CASTELO
NÃO DESEJAVA FOSSE EU A TER HERDADO.

DE CERTO MODO, TAMBÉM FUI SACRIFICADO,
SEM QUE À FOGUEIRA VIESSE, POR DESVELO,
QUALQUER CARNEIRO, COM ESPINHOS A CONTÊ-LO,
QUE PODERIA, EM MEU LUGAR, SER DEGOLADO.

NÃO QUE MEU SANGUE ASSIM FOSSE VERTIDO:
O QUE CORTOU DE MIM FOI UM NACO DA ALMA,
PARA QUEIMAR, NÃO A DEUS, MAS À VAIDADE,

O EXEMPLO DE ABRAÃO OBEDECIDO,
QUE A LENHA EM CARREGUEI, EM PLENA CALMA
ENQUANTO O FOGO ELE LEVAVA EM SERIEDADE.

O POÇO DE RAQUEL IV

JACÓ PRECISOU EMPREENDER LONGA VIAGEM,
SOFRENDO FOME E SEDE, A PALMILHAR
OS DESERTOS EMPEDRADOS DE SEU LAR
SEM QUE ALÍVIO O ABENÇOASSE ESSA PAISAGEM.

A JORNADA ELE CUMPRIU COM MAIS CORAGEM
DO QUE JULGARA TER, AO SE ESCAPAR
DE SEU IRMÃO, QUE O PRETENDIA MATAR;
AO INVÉS DE OÁSIS, VIU APENAS A MIRAGEM,

ATÉ QUE UM DIA, JÁ NO ENTARDECER,
ENCONTROU DE GRANDE POÇO A COBERTURA,
LAJE DE PEDRA QUEA ÁGUA LHE NEGAVA;

SÓ BEM DEPOIS VIU RAQUEL COMPARECER,
COM SUAS OVELHAS DE COR LUZENTE E PURA,
QUE JUNTO AO POÇO IGUALMENTE SE ASSENTAVA.

O POÇO DE RAQUEL v

E SE JUNTARAM TAMBÉM OUTROS PASTORES,
MAS SEM QUE A TAMPA FOSSE RETIRADA;
ELE INDAGOU POR QUE TANTA DEMORADA,
NA SUA GARGANTA A SECA DOS ARDORES.

E LHE DISSERAM SER COSTUME, EM TAIS SETORES,
DO TOTAL DOS REBANHOS A CHEGADA
ESPERAR; E SÓ DEPOIS SER LEVANTADA
DO POÇO A TAMPA, PARA EVITAR RANCORES.

MAS CONVERSANDO, JACÓ RECONHECEU
QUE ESSA PASTORA, CUJO NOME ERA RAQUEL,
ERA SUA PRIMA, AINDA QUE AFASTADA

E NUM GESTO QUE A TODOS SURPRENDEU
ERGUEU A TAMPA SOZINHO E DA ÁGUA O MEL
DEU À PARENTA FINALMENTE REENCONTRADA.

O POÇO DE RAQUEL Vi

Também eu tive uma peregrinação,
Embora fosse outro o meu deserto:
O de alguém a quem amor passou por perto,
Porém somente me olhou com suspeição,

Sem da parceira flechar o coração,
O meu próprio coração em chaga aberto;
Mas só aguardava esse deusinho esperto
Que em outro poço eu achasse brotação.

Muito custou, mas encontrei minha raquel,
Os meus músculos empregando na conquista,
Enquanto ela apenas contemplava.

Aberto o poço, beijei lábios de mel,
Conseguindo que ao rebanho então desista,
Na confissão de que também me amava.



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