A
MAÇÃ VERMELHA (Lenda portuguesa recolhida
em
o Thesouro da Juventude, versão poética de William Lagos.
A
MAÇÃ VERMELHA I – 11 nov 13
Havia
em Portugal um menino muito pobre,
cujo
nome era Antônio, a quem chamavam de Tonita,
em homenagem
a Santo Antônio de Lisboa,
que
foi visto a um só tempo em duas cidades...
Era
inverno e a escassa roupa que assim cobre
o
tal menino, velha, fina e esfarrapada,
do
vento frio e forte o defendia um quase nada;
descalço
andava até na tempestade;
sapatos
nunca tinha, embora, às vezes, com uma fita,
uns
panos amarrasse, entre os quais a chuva escoa...
Tampouco
tinha casa e dormia pelos becos;
de
sua gente não sabia, enjeitado desde cedo,
se
dava por feliz quando achava o que comer;
por
sorte, era saudável e tinha sangue bom...
Nunca
tomava banho durante os dias secos;
se
havia uma tormenta, lavava-se na chuva
e
as roupas se grudavam, então, igual que luva...
Movia-se
entre o povo sem emitir um som,
não
porque fosse mudo, mas porque tinha medo,
que
alguém o espancasse ou o pusesse a bom correr...
Certo
dia de inverno, caía espessa a neve,
encolheu-se
numa porta, querendo-se abrigar,
gelados
os seus pés, enrolados mesmo em trapos;
sob
aquela projeção, a neve não o tocava
e
mesmo o forte vento o judiava só de leve...
Tonita
se encolhera ainda em meio à noite;
somente
agora o vento abrandara o seu açoite...
Com
os flocos muito brancos, a sede ele matava,
enchia
o seu estômago, mas sem se alimentar,
a
neve como manto em torno a seus farrapos...
Mas
de repente, começou a ouvir um sino;
um
som, de fato, com que estava acostumado,
mas
bem mais forte então que o costumeiro;
e
então a portalada em que ele se abrigara
foi
sem aviso aberta... Assim, logo o menino
escorregou
para dentro, sem ter nenhum apoio,
empurrado
pelo vento, como palha ou como joio,
e
enquanto rola e gira, só o movimento apara
a
batina do sacristão, que ficou muito assustado,
os
santos invocou, persignando-se, ligeiro!...
A
MAÇÃ VERMELHA II
Porém,
logo a seguir, o sacristão se recupera:
aquela
bola escura que no piso assim rolava
não
era criatura ou duende do Capeta,
nada
mais representava que um infeliz mendigo...
Contudo,
com o susto, seu ânimo exaspera
e
bem depressa sai a dar-lhe pontapés:
“Corre
daqui, ô atrevido! Não sabe que estas
sés
só
a pessoas de respeito estendem seu abrigo?
Vá
procurar outra igreja!” – furioso, ele exclamava.
“Quer
esmola dos fiéis? Patife, nem se
meta!...”
“O
dinheiro que eles trazem é para a Santa Igreja!
Vá
mendigar pelas ruas ou busque alguma praça!”
“Eu
só fugi do frio...” – protestava o garotinho.
“Pois
vá pedir abrigo por aí, nalgum convento!
Aos
monges e às irmãs é tarefa que se enseja
cuidar
dos que tem frio e pão dar aos famintos...
Aqui
é o lugar de Deus!... Vocês, pobres
retintos
da
sujeira das ruas... que vão buscar assento
nos
lugares destinados ao alívio da desgraça!
Ande,
vá até o convento! Lá tem pão ainda
quentinho...”
“Mas
aqui, não!... Esta é a hora mais social,
A
missa da nobreza e da rica burguesia!...”
Tonita
se afastou, marcando o branco chão
com
as pegadas calosas de seus gélidos pés...
Encostou-se
numa esquina, pensando: Qual o mal
que minha presença na catedral enseja...?
Pois nem sequer pretendo entrar na igreja!
Sempre
olhara só de fora; e dos sopés
os
longos círios e os altares percebia,
enquanto,
aos poucos, se enchia o tal salão!
Mas
a música ele ouvia, com prazer,
do
órgão e do coro, se a Solene
Missa
lá dentro fosse celebrada;
e
suas narinas se enchiam do perfume,
quando
o incenso queimavam, sem entender
do
que ocorria lá dentro coisa alguma...
Lá
entendia de santos ou da Suma
Santidade
da Virgem, entre o lume
de
tantas velas e círios cor de creme,
sobre
o altar-mor, serena, entronizada...
A
MAÇÃ VERMELHA III
Começaram
a chegar os visitantes;
vinham
a pé os que moravam perto;
a
maioria chegava mesmo de carruagem,
algumas
delas que as outras bem mais ricas:
quatro
cavalos de xairel, rédeas impantes,
um
cocheiro uniformizado de libré;
dois
lacaios na traseira sempre em pé,
com
frio no inverno, no verão suando em bicas,
mas
satisfeitos por ter emprego certo,
os
solavancos enfrentando com coragem...
Quando
os cocheiros as rédeas empuxavam,
os
lacaios desciam a abrir as portas:
os
degraus dobradiços desviravam
e
colocavam mantas sobre a neve,
de
tal modo que os pés nunca sujavam
os
senhores de andar empertigado
e
as damas, os chapéus postos de lado...
Às
menores da crianças, já se atreve
um
dos lacaios a arrumar as meias tortas,
enquanto
no seu colo as transportavam...
Ficou
o menino contemplando esse cortejo,
a
pouco e pouco da entrada se achegando,
para
ver mais de perto a bela gente,
sem
intenção de lhes pedir qualquer esmola,
só
o desfile apreciando nesse ensejo...
E
as pessoas iam passando sem o olhar,
imaginando
que se achava a mendigar,
ajeitando
os chapéus, punhos e golas,
do
vento frio depressa se afastando,
para
encontrar na igreja abrigo quente...
Finalmente,
um dos padres já no altar,
chegou
uma última carruagem apressada
e
desceram, sem os lacaios esperar,
temendo
os olhos da congregação
pelo
andamento da missa atrapalhar.
Subiu
a escada uma senhora muito fina
que
consigo só trazia uma menina,
ambas
louras e da mais alta posição.
Ficou
o menino, então, maravilhado:
de
tão bonitas, nem sabia qual olhar!...
A MAÇÃ
VERMELHA IV
Mas
para o imenso espanto de Tonita
essa
menina rica lhe sorriu...
E
com sua mãe, bem depressa foi falar;
a
senhora demonstrou ter muita pressa,
mas
na insistência da menina tão bonita,
abriu
a bolsa e tirou dela uma maçã...
A menina
correu, linda e louçã,
e
entregou, sem que o menino nada peça,
aquela
mesma maçã, sem dar um pio,
ao
menino, embasbacado de assombrar!...
Palavras
nem trocaram... E a menina,
atrás
da mãe, para a nave já correu;
ficou
Tonita com a maçã na mão...
Mas que fruta vermelha e perfumada!
Pois só podia ser comida fina,
madura e fresca na neve desse inverno!
Ficou
o garoto espiando para o interno
da
catedral, porém ser ter localizado
qual
o assento que as duas acolheu,
enquanto
ouvia do coral a introdução...
Nunca
dantes a entrar na catedral
Tonita
se atrevera... O átrio imenso,
as
capelas laterais, Doze Estações
da
Cruz ao longo das paredes afixadas...
Tudo
lhe dava um espanto natural!...
Do
sacristão aquela péssima acolhida
era
de molde a espantar até atrevida
criança,
mesmo que usasse roupas adequadas...
Embriagador
era também aquele incenso,
que
dos turíbulos saía em profusão!...
E
se ele entrou na igreja, desta vez,
por
bravura não foi ou atrevimento;
nem
sequer ele entendeu o que o levara,
talvez
quisesse ver de novo a tal menina,
quem
sabe a música do coral é que o fez
entrar
encolhidinho, até um canto,
de
esguelha olhando a cara de algum santo,
olhos
erguidos para o céu, na sina
de
quem tem no Paraíso acolhimento,
que
em outro domingo, decerto, o espantara!...
A
MAÇÃ VERMELHA V
Por
perto não se achava o sacristão
e
ali o menino permaneceu quietinho,
sem
ninguém a disputar o seu lugar,
maravilhado
pela missa que assistia...
As
campainhas a chamar a sua atenção,
os
incensários em movimento compassado,
o
ritual a pouco e pouco realizado,
sonoras
frases em latim, nada entendia,
mas
lhe tiravam do coração o espinho
do
frio e fome em seu constante atormentar...
Os
padres, em suas vestes eclesiásticas,
de
casulas, sobrepelizes e dalmáticas,
o
velho bispo com a mitra na cabeça...
Para
ele uma coroa, com certeza...
Decerto que era o rei! Coisas fantásticas
a
sua mente ainda pura a confundir,
que
só assistia, pouco ou nada a perquirir,
desde
o vazio em que o mantinha sua pobreza,
até
então só envolvido em coisas práticas,
pelos
reclamos com que o estômago não cessa...
Chegou
um momento em que a gente levantou,
em
longas filas, por receber a eucaristia.
Imaginou
que era ali que se comia,
porém
estava tão sujo e esfarrapado!...
Decerto, era a quem melhor trajava
que os padres davam aquela refeição!...
Até
os lacaios, ante sua imaginação,
em
suas librés, com rendas e babados,
usavam
vestes de formosa confraria:
tinham
sapatos e em todos meias via!...
Mesmo
com fome, levantar não se animou...
E o
que faria, caso a hóstia então lhe dessem?
Dir-lhe-ia
alguém que não a devia mastigar?
E
será que lha daria o celebrante...?
Como
num sonho, tão só observou
a
multidão, de andares compassados,
os
fraques e os vestidos variegados...
E
num momento, luziu-se-lhe o semblante,
Que
nesse dia, as maravilhas nunca cessem?
Porque
a menina também vira a comungar!...
A
MAÇÃ VERMELHA VI
Da
maçã entre suas mãos então lembrou,
com
menos brilho, porém ainda vermelha,
de seus
dedinhos tinha alguma sujidade...
Então
pensou em morder, mas se conteve,
para
após o meio-dia ele a deixou...
Se a devorasse, já não teria mais nada
para lembrá-lo da criaturinha amada!...
E
aquela fruta vermelha, assim tão leve,
na
claridade dos archotes, a luz espelha:
era uma coisa perfeita, na verdade!...
Talvez
sequer ao meio-dia se animasse:
iria
guardá-la por um tempo bem comprido...
Mas, se murchar? – pensou,
desapontado.
Comerei hoje à noite!... –
decidiu,
para
que à noite sua fome o abandonasse...
Com
o sabor da fruta assim sonhando,
uma
singela esperança acalentando
de
que a miséria não impedisse o seu dormir...
E
mal notou já estar o ofício concluído,
cantando
o coro pelo órgão acompanhado...
Chegara
o instante da doxologia
e
viu dois padres, com salvas de ouro,
percorrendo,
devagar, os corredores,
dinheiro
o povo ali a depositar...
Mas como a salva de ouro reluzia!...
Só que ele nada tinha para dar...
E
quando um padre viu se aproximar,
ele
estendeu a mão, sem nem pensar
e
sobre a salva depositou o seu tesouro:
maçã
vermelha de seus jovens amores!...
Não
era o padre igual ao sacristão
e
quando viu-lhe a pobre oferta, ele sorriu,
ao
que Tonita respondeu, timidamente...
Com
sua maçã, o padre se afastou...
Ficou
a bater-lhe, descompassado, o coração.
Fizera bem? Ou quiçá,
fizera mal?
Mas fora impulso momentâneo e natural!
E
lá no altar, qualquer coisa rebrilhou;
mais
um milagre, então, ele assistiu:
virara
ouro a sua maçã, inteiramente!...
EPÍLOGO
Pois
de todas as ofertas da coleta,
Enquanto
o coro o ofertório descantava,
Deus
escolhera a de maior valor,
que
os outros deram do que lhes sobrava,
dinheiro
ou ouro a um rico pouco afeta,
mas
ele dera todo o seu sustento,
a
maçã vermelha, seu único alimento,
que
era a lembrança da menina que já amava;
tal
o presente que ao Senhor mais agradou,
de
quem frio tinha, mas Lhe soube dar calor...
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