O BURRO E O CÃO
(Para Adhemar de Barros,
atribuída a La Fontaine, versão poética William Lagos, 26 dez 13)
O BURRO E O CÃO I
Em uma granja, um burro
trabalhava
de sol a sol, puxando uma
carroça,
todo tipo de carga a
transportar,
sem ter descanso.
Com milho e aveia se
alimentava,
água bebia no cocho ou em
uma poça,
vivia cansado, mas não podia
se queixar.
Mas certo dia, começou a
observar
um cachorro que andava pela
granja:
corria à toa, latindo sem
parar
ou então dormia.
Mas nunca via o outro animal
a trabalhar
e era tratado com carinho e
toda a ganja,
carne e ossos não parava de
ganhar...
Pois tudo bem, não apreciava
o burro mesmo
a carne e os ossos que lhe
davam na tigela.
Mas por que era o cachorro
alimentado
sem trabalhar?
Pior ainda, embora andasse a
esmo,
ainda ganhava bolachinhas da
janela,
que apanhava no ar, feito
esganado!...
O burro via que as crianças
riam
quando no ar o cão
abocanhava.
Mas, então... o alimentavam
por pular?
Ou seria por comer?
Mas aquelas crianças também
viam
quanto ele mesmo no trabalho
se esforçava
e biscoitinhos nem pensavam
em lhe dar!
O BURRO E O CÃO II
E mesmo o dono, a quem
ajudava tanto,
cumprindo árduas tarefas
diariamente,
nunca pensava em lhe dar a
recompensa
de seu esforço...
Era tal qual se o cão tivesse
encanto,
pois só gania e pulava
alegremente
e de qualquer obrigação
tinha dispensa...
E depois, viu outro costume
do patrão.
Quando chegavam, retornando
do mercado,
vinha o cachorro, a pular e
a latir,
até atrapalhando...
Mas o dono achava graça, na
ocasião,
metia a mão no bolso e um
bom bocado
jogava ao animal, sempre a
sorrir...
Que o cachorro dava pulos
percebeu,
saltando ao peito e, se o
dono se abaixava,
o seu rosto lambendo
alegremente
ou então as mãos.
Mas se ele faz assim, por que não eu?
Se por lamber meu patrão o recompensava
e não a mim, é que me porto diferente!
Eu fico quieto, cá no meu varal;
esse outro pula e ganha comidinha,
bolo ou biscoito ou mesmo alguma fruta
e até açúcar!...
Pois então, vou me portar igual:
lambo-lhe a cara e ganho bolachinha!...
Sou maior, do cão eu ganho nessa luta!...
O BURRO E O CÃO III
Assim, o burro esperou, até
que um dia
viu o patrão desmontar de
seu cavalo
e o cachorro chegou logo de
imediato,
dando voltinhas...
E de estar atrelado já
esquecia,
soltando um zurro forte como
um galo,
o burro se lançou, num
desacato!...
Meteu as patas nos ombros do
patrão
e toda a cara começou a lhe
lamber!
E o dono, no descuido da
surpresa,
caiu de costas!...
Viu as rodas já chegando
pelo chão,
os dentes grandes do burro a
perceber,
qual ameaça de terrível
natureza!...
Até o cachorro a dar latidos
se escapou!
E o burro lamber mais ainda
queria...
Mas, que horror!
Esse bicho endoideceu!
Vai me matar!...
E da cintura uma garrucha
ele puxou,
que na boca do animal
depressa enfia:
logo dois tiros o pobre
bicho recebeu!...
Assim, sua recompensa foi a
morte...
E o cachorro, sem sentir
mais medo,
começou a morder o pobre
bicho,
no chão caído...
Deste modo, gozou da melhor
sorte,
ganhou biscoitos, sem maior
segredo,
enquanto ao burro só
arrastaram para o lixo!
EPÍLOGO
Também se espera, em nossa
sociedade,
de cada um, comportamento
previsível:
o cavalheiro pode beijar a
mão da dama,
mas o mendigo não...
Ganha o famoso mais honra,
na verdade,
porém castigo será muito
possível
a qualquer outro que igual
valor a si reclama...
HISTÓRIAS EDIFICANTES II
A CHUVA DE OURO –
(Folclore português, recolhida por Viriato Padilha, versificada por William Lagos, 27 dez 13.)
A CHUVA DE OURO I
Conta uma lenda do antigo
Portugal
e que talvez nos chegue
desde Roma,
que uma órfã, batizada de
Adelaide,
foi recolhida pela esposa de
um alcaide
de uma pequena cidade do
interior,
sem ser tratada bem,
tampouco mal,
a trabalhar pelo pouco pão
que coma,
além das roupas de ínfimo
valor...
Aos poucos, a menina foi
crescendo,
botando corpo, em donzela
transformando,
dos rapazes a chamar já a
atenção,
porém vivia em recatada
condição,
sem nem notar qual impressão
causava;
mas sua patroa foi tudo
percebendo,
do interesse de seu filho
suspeitando
e já até mesmo do marido
desconfiava...
Então, um dia, enciumada sem
motivo,
porque a donzela ainda era
inocente,
decidiu cortar o mal pela
raiz...
“Vai-te embora daqui!...” –
então lhe diz.
“Tua vida vai fazer em outra
parte!...”
E à guisa de um pobre
lenitivo,
pôs-lhe na mão um meio pão
dormente,
abriu-lhe a porta e
expulsou-a, qual descarte!
Adelaide, que era ainda
adolescente,
tentou bater às portas da
cidade,
mas era noitinha e ninguém
quis atender...
Finalmente, cansou-se de bater
e foi buscar abrigo na
floresta...
Já era outono, o frio
cortava rente...
Ela trazia um bom xale, na
verdade,
que os ombros lhe cobria em
dia de festa.
A CHUVA DE OURO II
Tinha um casaco e também
vestido velho,
que usava por sobre a
camisola
e mais um par de chinelinhos
finos,
com que cobria os pezinhos
pequeninos.
Meias não tinha e nem roupa
interior.
“Quer se exibir na frente de
um espelho?
Abaixe a saia e levante bem
a gola,
ou quer envergonhar seu
protetor?...”
Adelaide então seguiu pela estradinha
e encontrou uma velhinha ali
tremendo:
“Ai, que frio, minha
filhinha! Me proteja,
Nossa Senhora a abençoará
aonde esteja!...”
E Adelaide, sem pensar, lhe
deu o xale
e despediu-se, alegre, da
velhinha,
que ficou a balbuciar,
agradecendo:
“Que Deus lhe dê em dobro o
que isto vale!”
Mais adiante, ela encontrou
um garotinho,
contra uma árvore as costas
apoiadas,
que lhe pediu: “Dê-me um
pouco de comida!”
Sem pensar duas vezes,
decidida,
ela entregou-lhe todo o seu
naco de pão!
O menino não agradeceu nem
um pouquinho,
a roer o pão dormido, de
esfomeado!
Mas Adelaide seguiu em
frente, comovida...
E mais adiante, um mendigo
esfarrapado
pediu-lhe esmola... E lhe
deu o seu casaco!
Para uma mãe entregou o
vestido fino,
que dava o bico do seio a
seu menino...
E finalmente, encontrou
outra criança,
parecendo um bichinho
abandonado,
encolhido e a tremer dentro
de um saco,
sem poder nada fazer em sua
bonança!...
A CHUVA DE OURO III
Então, pensou: Minha camisola é grossa;
agora é noite, já estou chegando ao mato;
ali me escondo, sem ser vista por ninguém!...
E a camisola retirou,
também,
aconchegando-a em torno do
menino,
que ao invés de agradecer,
as penas coça...
Ela está nua agora, triste
fato!
Nada mais tem que o
chinelinho fino...
Mas entrando na floresta,
tropeçou
e até os dois chinelinhos se
perderam...
Cerrada a noite, trouxe frio
ainda maior,
os pés gelaram, causando
grande dor;
entre raízes ela se encolheu
e contra um tronco as costas
apoiou;
mas, de repente, as raízes
se romperam
e o solo inteiro sob seu
peso então cedeu!...
Ela caiu numa espécie de
caverna,
mas não era um buraco muito
fundo;
o vento, ao menos, ali não a
atingiria!
Pouco depois, Adelaide já
dormia...
Já de manhã, sentiu umas
pancadas,
muito de leve, qual mãozinha
terna;
abriu os olhos, no espanto
mais profundo:
de um bom tecido viu as abas
balançadas!
Ela puxou o pano para si
e uma estranha cascata
desabou!
À luz do sol brilhando, como
ouro...
No oco do carvalho havia um
tesouro!
E descobriu que o pano era
um vestido,
em que as moedas haviam
enrolado ali,
que, sem grande dificuldade,
se ajustou
no seu pequeno corpo
desnutrido...
EPÍLOGO
Então seguiu até a porta de
um convento,
em que pediu abrigo e
refeição,
suas moedas no forro do
vestido,
invisíveis na bainha do
tecido...
Ficou morando com as freiras
e estudou:
afinal, conseguiu bom
casamento,
em que viveu feliz, sem ter
paixão,
porém seus filhos com muito
amor criou...
HISTÓRIAS EDIFICANTES III
O URSO E O ROUXINOL
(Folclore português, versão
poética de
William Lagos, 28 dez 13)
O URSO E O ROUXINOL I
O Rei das Aves sempre foi o
Rouxinol;
entre todos, seu canto é o
mais mavioso,
embora de se olhar pouca
atenção
nos chame. Haverá mesmo ocasião
que o mais comum até pareça ser
pardal;
outros têm papo de amarelo
girassol,
mas se iniciam sua ária, é
delicioso
o seu chilreio, que nem
parece ter final!...
Mas sendo pássaro, o seu
palácio é um ninho,
que em nada se destaca em
imponência;
seus filhos são apenas
passarinhos,
sem grande brilho ou pluma
tais bichinhos,
escanifrados quando dos ovos
saem,
sem lindos berços de
carvalho e arminho,
apenas palha, reunida com
paciência,
que bem protege, pois nunca
ao solo caem.
Também se conta que preferem
os lariços
para montar as suas habitações;
é difícil aos predadores se
enfiar
entre seus ramos, que ali
podem se espetar,
mas tem o Rouxinol a
habilidade
de penetrar por entre os
seus eriços,
ao retornar de suas muitas
excursões,
alimento a lhes trazer de
qualidade.
Ora, um dia, saíram os
rouxinóis
a buscar mais alimento para
os filhos;
e andando um Urso procurando
mel
enxergou dos rouxinóis o seu
quartel.
Subiu o lariço, sem qualquer
maldade,
seu pelo grosso o protegia
dos anzóis
daqueles galhos pontiagudos
como atilhos,
movido apenas pela
curiosidade...
O URSO E O ROUXINOL II
E afastando dos espinhos a
beirada,
farejando, espiou dentro do
ninho.
Cinco filhotes viu ali,
encolhidinhos.
e resmungou: “Mas que feios
os bichinhos!
E que lugar inadequado para
um rei!
De palácio, este ninho não
tem nada...
É como a casa de qualquer
outro passarinho!
Hoje à noite, a meus amigos
contarei...”
Mas protestaram os
rouxinoizinhos:
“Nós somos príncipes e nosso
pai modesto!
Bem diferente do barbudo Rei
Leão,
com uma caverna imensa e a proteção
de um regimento de súditos
valentes!...”
Falou o Urso: “Olha só os
vaidosinhos!...”
E foi descendo, com
indiferente gesto:
“Ora, pensei fossem locais
mais imponentes...”
Mas exigiram os pequenos
rouxinóis:
“Ajoelhe agora, para nos
pedir perdão!
Ou daremos queixa para nosso
pai
e sofrer grande castigo você
vai!...”
Mas o Urso saiu às
gargalhadas:
“Vão me furar com os
biquinhos, feito anzóis?
Pois se nem temo das abelhas
o ferrão!...”
E seu caminho seguiu, dando
risadas...
Dentro em pouco, chegou a Rouxinola,
bom alimento trazendo no seu
bico
e eles disseram: “Mãe, nos
ofenderam!
De nossa casa pouco nos
fizeram!...”
Mas disse, calmamente, a
passarinha:
“Ora, queridos, a vida é boa
escola,
não se dá bola só de ouvir
um mexerico!”
“Não, mãe, veio o Urso aqui
fazer trocinha!...”
O URSO E O ROUXINOL III
“Esqueçam isso,
queridinhos... Olha a comida!”
“Nós não queremos!...
Estamos ofendidos
e todos cinco vamos dar
queixa pro Papai!...”
“Ora, o mesmo que eu, lhes
falar vai!...”
Mas teimaram os cinco passarinhos
e quando o Rouxinol chegou à
guarida,
eles seguiam sem comer e
desnutridos,
preocupada já a mãe com os
filhotinhos!...
“Papai,” disseram os cinco
rouxinóis,
“o Urso esteve aqui no nosso
ninho!...
Abriu a porta, sem pedir
licença
e ainda fez troça da sua
imprevidência,
que era ninho de bem má
qualidade,
sem proteção contra chuva ou
arrebóis,
que era lugar para algum
outro passarinho...
Disse que nós éramos feios!
– que maldade!”
“Mas que importância tem o
que o Urso fale?”
Falou o Rouxinol, sem querer
se aborrecer.
“Ele tem de se ajoelhar e
pedir perdão!
Caso contrário, nenhum de
nós faz refeição!...”
O Rouxinol e a fêmea se
entreolharam.
“Está bem – eu farei com que
ele cale...
Comam agora. O papai vai prometer
falar com ele...” Só então se alimentaram...
No outro dia, bem cedo de
manhã,
saiu em busca do Urso o
Rouxinol.
Seria inútil durante a noite
procurar;
mas em sua busca, deparou
com certo azar:
estava o Urso junto a outros
animais
e foi a conversa totalmente
vã...
Gabou-se o Urso, com grande
farol:
“Vai me encarar? Você e quantos mais?”
O URSO E O ROUXINOL IV
O Rouxinol o ameaçou então
com guerra:
“Se não se desculpar com
meus Borrachos
(como era o titulo dos
príncipes imperiais),
eu reunirei meus batalhões
reais
e o ferirei com centenas de
bicadas!...”
E disse o Urso: “Tenho gente
nesta terra!
Nós, animais de pelo, somos
machos
e nosso rei me apoiará em
suas ciladas!...
Foi então o Urso ao Leão,
acompanhado
por um bando de amigos
animais
e recebeu o apoio de seu rei:
“As minhas tropas também
convocarei,
caso se mostre o Rouxinol
mais atrevido!...”
Logo chegou um embaixador
alado:
“Entreguem o Urso a nossos
arraiais,
para pagar o hediondo crime
cometido!...”
Mas ofendeu-se, então, o Rei
Leão:
“Que crime é esse? Ele apenas espiou
dentro de um ninho, sem os
pássaros ferir!
É demasiado o que me está a
pedir!...”
“Não,” – disse o pássaro.
“Após se desculpar,
perante os príncipes, na
real mansão,
nada faremos, depois que
demonstrou
da grande ofensa arrependido
estar!...”
Mas disse o rei: “Será grave
o precedente!
Depois disso, vão querer nos
dominar...”
“Sem o pedido de desculpas,
será a guerra
a ferir cada recanto desta
terra!...”
“Pois muito bem,” disse o
rei, “a culpa é vossa!
Caia a derrota sobre a
emplumada gente
que nossa paz veio hoje
perturbar,
por um motivo que só nos
merece troça!...”
O URSO E O ROUXINOL V
E convocou suas tropas o
Leão;
e o Raposo nomeou como
general...
Vieram os pássaros, em
vastas revoadas,
porém caíam, feridos por
patadas
e acabaram por se retirar...
O Rouxinol insistiu em
retaliação,
em campo aberto, um lugar
mais natural...
E o Leão, vaidoso, acabou
por concordar...
O Rouxinol alegara covardia,
que sob as árvores era
difícil combater!
Queria travar então campal
batalha,
a desigualdade então seria
menos falha...
Bem que o Raposo não queria
concordar.
“Mas a honra,” disse o Leão,
“nos exigia!
Somos mais fortes,
voltaremos a vencer!”
Ordens do rei tem o Raposo
de aceitar...
“Mas os animais tem de me
prometer
obedecer ao que eu disser,
sem recusar!”
O Rei Leão prontamente
concordou:
que ao Raposo seguissem,
ordenou!...
E disse este: “Minha cauda é
o estandarte!
É bem vermelha e muito fácil
de se ver!...
Terão de me seguir aonde eu
marchar!...
Será estratégia, qualquer
que seja a parte!...”
Assim, no outro dia, de
manhã,
o combate na planície se
travou;
os animais pegando galhos e
capim,
os passarinhos a derrubar
assim...
E o Rouxinol já temia outra
derrota,
quando apelou para astúcia
bem vilã:
um Marimbondo depressa
convocou
que a voar por ali no
instante nota.
O URSO E O ROUXINOL VI
E prometeu: “Se você hoje me
ajudar,
a toda ave proibirei que o
cacem!...”
E o Marimbondo falou: “O que
me quer?”
“Derrubar esse Raposo é o
seu mister:
dos animais ele é o general;
com sua queda, os demais vão
se espalhar,
enquanto as aves sobre eles
passem!...”
E com zumbido, ele anuiu,
bem natural...
E o foi picar direto na
traseira,
logo abaixo da cauda do
Raposo!
O coitado baixou o rabo bem
depressa
e a sua tropa perdeu o seu
cabeça!...
E o Marimbondo picou-o no
focinho:
saiu o Raposo numa
corredeira,
os animais atrás do chefe
valoroso,
que parecia não acertar
caminho!
E o Marimbondo não parava de
picar:
fazia o Raposo correr,
desatinado!...
Seguiam os bichos numa
direção
e logo a oposta, sem
orientação...
E foi assim que perderam o
combate,
para a floresta indo se
refugiar,
o Rei Leão, a deixar
desapontado,
quando a coragem dos animais
se abate!
E no outro dia, ao Urso
comandou
que fosse ao Rouxinol se
desculpar...
O animal obedeceu e se
ajoelhou
e o Rouxinol, bem rápido, o
perdoou,
que aquela guerra lhe
custara até demais.
Cada filhote seu orgulho
dominou,
senão o pai o iria castigar,
sem desejar outra guerra
nunca mais!...
EPÍLOGO
O Rouxinol se mostrou mais
ponderado
que muito rei ou humano
presidente,
sem exigir qualquer
reparação,
pondo de lado outra
retaliação,
como fizeram nas humanas
guerras,
por um pedido de desculpas
contentado,
talvez a compreender,
naturalmente,
a importância da paz em
quaisquer terras...
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