quarta-feira, 8 de janeiro de 2014






O BURRO E O CÃO
(Para Adhemar de Barros, atribuída a La Fontaine, versão poética William Lagos, 26 dez 13)

O BURRO E O CÃO I

Em uma granja, um burro trabalhava
de sol a sol, puxando uma carroça,
todo tipo de carga a transportar,
sem ter descanso.
Com milho e aveia se alimentava,
água bebia no cocho ou em uma poça,
vivia cansado, mas não podia se queixar.

Mas certo dia, começou a observar
um cachorro que andava pela granja:
corria à toa, latindo sem parar
ou então dormia.
Mas nunca via o outro animal a trabalhar
e era tratado com carinho e toda a ganja,
carne e ossos não parava de ganhar...

Pois tudo bem, não apreciava o burro mesmo
a carne e os ossos que lhe davam na tigela.
Mas por que era o cachorro alimentado
sem trabalhar?
Pior ainda, embora andasse a esmo,
ainda ganhava bolachinhas da janela,
que apanhava no ar, feito esganado!...

O burro via que as crianças riam
quando no ar o cão abocanhava.
Mas, então... o alimentavam por pular?
Ou seria por comer?
Mas aquelas crianças também viam
quanto ele mesmo no trabalho se esforçava
e biscoitinhos nem pensavam em lhe dar!

O BURRO E O CÃO II

E mesmo o dono, a quem ajudava tanto,
cumprindo árduas tarefas diariamente,
nunca pensava em lhe dar a recompensa
de seu esforço...
Era tal qual se o cão tivesse encanto,
pois só gania e pulava alegremente
e de qualquer obrigação tinha dispensa...

E depois, viu outro costume do patrão.
Quando chegavam, retornando do mercado,
vinha o cachorro, a pular e a latir,
até atrapalhando...
Mas o dono achava graça, na ocasião,
metia a mão no bolso e um bom bocado
jogava ao animal, sempre a sorrir...

Que o cachorro dava pulos percebeu,
saltando ao peito e, se o dono se abaixava,
o seu rosto lambendo alegremente
ou então as mãos.
Mas se ele faz assim, por que não eu?
Se por lamber meu patrão o recompensava
e não a mim, é que me porto diferente!

Eu fico quieto, cá no meu varal;
esse outro pula e ganha comidinha,
bolo ou biscoito ou mesmo alguma fruta
e até açúcar!...
Pois então, vou me portar igual:
lambo-lhe a cara e ganho bolachinha!...
Sou maior, do cão eu ganho nessa luta!...

O BURRO E O CÃO III

Assim, o burro esperou, até que um dia
viu o patrão desmontar de seu cavalo
e o cachorro chegou logo de imediato,
dando voltinhas...
E de estar atrelado já esquecia,
soltando um zurro forte como um galo,
o burro se lançou, num desacato!...

Meteu as patas nos ombros do patrão
e toda a cara começou a lhe lamber!
E o dono, no descuido da surpresa,
caiu de costas!...
Viu as rodas já chegando pelo chão,
os dentes grandes do burro a perceber,
qual ameaça de terrível natureza!...

Até o cachorro a dar latidos se escapou!
E o burro lamber mais ainda queria...
Mas, que horror!   Esse bicho endoideceu!
Vai me matar!...
E da cintura uma garrucha ele puxou,
que na boca do animal depressa enfia:
logo dois tiros o pobre bicho recebeu!...

Assim, sua recompensa foi a morte...
E o cachorro, sem sentir mais medo,
começou a morder o pobre bicho,
no chão caído...
Deste modo, gozou da melhor sorte,
ganhou biscoitos, sem maior segredo,
enquanto ao burro só arrastaram para o lixo!

EPÍLOGO

Também se espera, em nossa sociedade,
de cada um, comportamento previsível:
o cavalheiro pode beijar a mão da dama,
mas o mendigo não...
Ganha o famoso mais honra, na verdade,
porém castigo será muito possível
a qualquer outro que igual valor a si reclama...

HISTÓRIAS EDIFICANTES II
A CHUVA DE OURO – (Folclore português, recolhida por Viriato Padilha, versificada por William Lagos, 27 dez 13.)

A CHUVA DE OURO I

Conta uma lenda do antigo Portugal
e que talvez nos chegue desde Roma,
que uma órfã, batizada de Adelaide,
foi recolhida pela esposa de um alcaide
de uma pequena cidade do interior,
sem ser tratada bem, tampouco mal,
a trabalhar pelo pouco pão que coma,
além das roupas de ínfimo valor...

Aos poucos, a menina foi crescendo,
botando corpo, em donzela transformando,
dos rapazes a chamar já a atenção,
porém vivia em recatada condição,
sem nem notar qual impressão causava;
mas sua patroa foi tudo percebendo,
do interesse de seu filho suspeitando
e já até mesmo do marido desconfiava...

Então, um dia, enciumada sem motivo,
porque a donzela ainda era inocente,
decidiu cortar o mal pela raiz...
“Vai-te embora daqui!...” – então lhe diz.
“Tua vida vai fazer em outra parte!...”
E à guisa de um pobre lenitivo,
pôs-lhe na mão um meio pão dormente,
abriu-lhe a porta e expulsou-a, qual descarte!

Adelaide, que era ainda adolescente,
tentou bater às portas da cidade,
mas era noitinha e ninguém quis atender...
Finalmente, cansou-se de bater
e foi buscar abrigo na floresta...
Já era outono, o frio cortava rente...
Ela trazia um bom xale, na verdade,
que os ombros lhe cobria em dia de festa.

A CHUVA DE OURO II

Tinha um casaco e também vestido velho,
que usava por sobre a camisola
e mais um par de chinelinhos finos,
com que cobria os pezinhos pequeninos.
Meias não tinha e nem roupa interior.
“Quer se exibir na frente de um espelho?
Abaixe a saia e levante bem a gola,
ou quer envergonhar seu protetor?...”

Adelaide então seguiu pela estradinha
e encontrou uma velhinha ali tremendo:
“Ai, que frio, minha filhinha!  Me proteja,
Nossa Senhora a abençoará aonde esteja!...”
E Adelaide, sem pensar, lhe deu o xale
e despediu-se, alegre, da velhinha,
que ficou a balbuciar, agradecendo:
“Que Deus lhe dê em dobro o que isto vale!”

Mais adiante, ela encontrou um garotinho,
contra uma árvore as costas apoiadas,
que lhe pediu: “Dê-me um pouco de comida!”
Sem pensar duas vezes, decidida,
ela entregou-lhe todo o seu naco de pão!
O menino não agradeceu nem um pouquinho,
a roer o pão dormido, de esfomeado!
Mas Adelaide seguiu em frente, comovida...

E mais adiante, um mendigo esfarrapado
pediu-lhe esmola... E lhe deu o seu casaco!
Para uma mãe entregou o vestido fino,
que dava o bico do seio a seu menino...
E finalmente, encontrou outra criança,
parecendo um bichinho abandonado,
encolhido e a tremer dentro de um saco,
sem poder nada fazer em sua bonança!...

A CHUVA DE OURO III

Então, pensou: Minha camisola é grossa;
agora é noite, já estou chegando ao mato;
ali me escondo, sem ser vista por ninguém!...
E a camisola retirou, também,
aconchegando-a em torno do menino,
que ao invés de agradecer, as penas coça...
Ela está nua agora, triste fato!
Nada mais tem que o chinelinho fino...

Mas entrando na floresta, tropeçou
e até os dois chinelinhos se perderam...
Cerrada a noite, trouxe frio ainda maior,
os pés gelaram, causando grande dor;
entre raízes ela se encolheu
e contra um tronco as costas apoiou;
mas, de repente, as raízes se romperam
e o solo inteiro sob seu peso então cedeu!...

Ela caiu numa espécie de caverna,
mas não era um buraco muito fundo;
o vento, ao menos, ali não a atingiria!
Pouco depois, Adelaide já dormia...
Já de manhã, sentiu umas pancadas,
muito de leve, qual mãozinha terna;
abriu os olhos, no espanto mais profundo:
de um bom tecido viu as abas balançadas!

Ela puxou o pano para si
e uma estranha cascata desabou!
À luz do sol brilhando, como ouro...
No oco do carvalho havia um tesouro!
E descobriu que o pano era um vestido,
em que as moedas haviam enrolado ali,
que, sem grande dificuldade, se ajustou
no seu pequeno corpo desnutrido...

EPÍLOGO

Então seguiu até a porta de um convento,
em que pediu abrigo e refeição,
suas moedas no forro do vestido,
invisíveis na bainha do tecido...
Ficou morando com as freiras e estudou:
afinal, conseguiu bom casamento,
em que viveu feliz, sem ter paixão,
porém seus filhos com muito amor criou...

HISTÓRIAS EDIFICANTES III
O URSO E O ROUXINOL
(Folclore português, versão poética de
William Lagos, 28 dez 13)

O URSO E O ROUXINOL I

O Rei das Aves sempre foi o Rouxinol;
entre todos, seu canto é o mais mavioso,
embora de se olhar pouca atenção
nos chame.   Haverá mesmo ocasião
que o mais comum até pareça ser pardal;
outros têm papo de amarelo girassol,
mas se iniciam sua ária, é delicioso
o seu chilreio, que nem parece ter final!...

Mas sendo pássaro, o seu palácio é um ninho,
que em nada se destaca em imponência;
seus filhos são apenas passarinhos,
sem grande brilho ou pluma tais bichinhos,
escanifrados quando dos ovos saem,
sem lindos berços de carvalho e arminho,
apenas palha, reunida com paciência,
que bem protege, pois nunca ao solo caem.

Também se conta que preferem os lariços
para montar as suas habitações;
é difícil aos predadores se enfiar
entre seus ramos, que ali podem se espetar,
mas tem o Rouxinol a habilidade
de penetrar por entre os seus eriços,
ao retornar de suas muitas excursões,
alimento a lhes trazer de qualidade.

Ora, um dia, saíram os rouxinóis
a buscar mais alimento para os filhos;
e andando um Urso procurando mel
enxergou dos rouxinóis o seu quartel.
Subiu o lariço, sem qualquer maldade,
seu pelo grosso o protegia dos anzóis
daqueles galhos pontiagudos como atilhos,
movido apenas pela curiosidade...

O URSO E O ROUXINOL II

E afastando dos espinhos a beirada,
farejando, espiou dentro do ninho.
Cinco filhotes viu ali, encolhidinhos.
e resmungou: “Mas que feios os bichinhos!
E que lugar inadequado para um rei!
De palácio, este ninho não tem nada...
É como a casa de qualquer outro passarinho!
Hoje à noite, a meus amigos contarei...”

Mas protestaram os rouxinoizinhos:
“Nós somos príncipes e nosso pai modesto!
Bem diferente do barbudo Rei Leão,
com uma caverna imensa e a proteção
de um regimento de súditos valentes!...”
Falou o Urso: “Olha só os vaidosinhos!...”
E foi descendo, com indiferente gesto:
“Ora, pensei fossem locais mais imponentes...”

Mas exigiram os pequenos rouxinóis:
“Ajoelhe agora, para nos pedir perdão!
Ou daremos queixa para nosso pai
e sofrer grande castigo você vai!...”
Mas o Urso saiu às gargalhadas:
“Vão me furar com os biquinhos, feito anzóis?
Pois se nem temo das abelhas o ferrão!...”
E seu caminho seguiu, dando risadas...

Dentro em pouco, chegou a Rouxinola,
bom alimento trazendo no seu bico
e eles disseram: “Mãe, nos ofenderam!
De nossa casa pouco nos fizeram!...”
Mas disse, calmamente, a passarinha:
“Ora, queridos, a vida é boa escola,
não se dá bola só de ouvir um mexerico!”
“Não, mãe, veio o Urso aqui fazer trocinha!...”

O URSO E O ROUXINOL III

“Esqueçam isso, queridinhos... Olha a comida!”
“Nós não queremos!... Estamos ofendidos
e todos cinco vamos dar queixa pro Papai!...”
“Ora, o mesmo que eu, lhes falar vai!...”
Mas teimaram os cinco passarinhos
e quando o Rouxinol chegou à guarida,
eles seguiam sem comer e desnutridos,
preocupada já a mãe com os filhotinhos!...

“Papai,” disseram os cinco rouxinóis,
“o Urso esteve aqui no nosso ninho!...
Abriu a porta, sem pedir licença
e ainda fez troça da sua imprevidência,
que era ninho de bem má qualidade,
sem proteção contra chuva ou arrebóis,
que era lugar para algum outro passarinho...
Disse que nós éramos feios! – que maldade!”

“Mas que importância tem o que o Urso fale?”
Falou o Rouxinol, sem querer se aborrecer.
“Ele tem de se ajoelhar e pedir perdão!
Caso contrário, nenhum de nós faz refeição!...”
O Rouxinol e a fêmea se entreolharam.
“Está bem – eu farei com que ele cale...
Comam agora.  O papai vai prometer
falar com ele...”  Só então se alimentaram...

No outro dia, bem cedo de manhã,
saiu em busca do Urso o Rouxinol.
Seria inútil durante a noite procurar;
mas em sua busca, deparou com certo azar:
estava o Urso junto a outros animais
e foi a conversa totalmente vã...
Gabou-se o Urso, com grande farol:
“Vai me encarar?  Você e quantos mais?”

O URSO E O ROUXINOL IV

O Rouxinol o ameaçou então com guerra:
“Se não se desculpar com meus Borrachos
(como era o titulo dos príncipes imperiais),
eu reunirei meus batalhões reais
e o ferirei com centenas de bicadas!...”
E disse o Urso: “Tenho gente nesta terra!
Nós, animais de pelo, somos machos
e nosso rei me apoiará em suas ciladas!...

Foi então o Urso ao Leão, acompanhado
por um bando de amigos animais
e recebeu o apoio de seu rei:
“As minhas tropas também convocarei,
caso se mostre o Rouxinol mais atrevido!...”
Logo chegou um embaixador alado:
“Entreguem o Urso a nossos arraiais,
para pagar o hediondo crime cometido!...”

Mas ofendeu-se, então, o Rei Leão:
“Que crime é esse?  Ele apenas espiou
dentro de um ninho, sem os pássaros ferir!
É demasiado o que me está a pedir!...”
“Não,” – disse o pássaro. “Após se desculpar,
perante os príncipes, na real mansão,
nada faremos, depois que demonstrou
da grande ofensa arrependido estar!...”

Mas disse o rei: “Será grave o precedente!
Depois disso, vão querer nos dominar...”
“Sem o pedido de desculpas, será a guerra
a ferir cada recanto desta terra!...”
“Pois muito bem,” disse o rei, “a culpa é vossa!
Caia a derrota sobre a emplumada gente
que nossa paz veio hoje perturbar,
por um motivo que só nos merece troça!...”

O URSO E O ROUXINOL V

E convocou suas tropas o Leão;
e o Raposo nomeou como general...
Vieram os pássaros, em vastas revoadas,
porém caíam, feridos por patadas
e acabaram por se retirar...
O Rouxinol insistiu em retaliação,
em campo aberto, um lugar mais natural...
E o Leão, vaidoso, acabou por concordar...

O Rouxinol alegara covardia,
que sob as árvores era difícil combater!
Queria travar então campal batalha,
a desigualdade então seria menos falha...
Bem que o Raposo não queria concordar.
“Mas a honra,” disse o Leão, “nos exigia!
Somos mais fortes, voltaremos a vencer!”
Ordens do rei tem o Raposo de aceitar...

“Mas os animais tem de me prometer
obedecer ao que eu disser, sem recusar!”
O Rei Leão prontamente concordou:
que ao Raposo seguissem, ordenou!...
E disse este: “Minha cauda é o estandarte!
É bem vermelha e muito fácil de se ver!...
Terão de me seguir aonde eu marchar!...
Será estratégia, qualquer que seja a parte!...”

Assim, no outro dia, de manhã,
o combate na planície se travou;
os animais pegando galhos e capim,
os passarinhos a derrubar assim...
E o Rouxinol já temia outra derrota,
quando apelou para astúcia bem vilã:
um Marimbondo depressa convocou
que a voar por ali no instante nota.

O URSO E O ROUXINOL VI

E prometeu: “Se você hoje me ajudar,
a toda ave proibirei que o cacem!...”
E o Marimbondo falou: “O que me quer?”
“Derrubar esse Raposo é o seu mister:
dos animais ele é o general;
com sua queda, os demais vão se espalhar,
enquanto as aves sobre eles passem!...”
E com zumbido, ele anuiu, bem natural...

E o foi picar direto na traseira,
logo abaixo da cauda do Raposo!
O coitado baixou o rabo bem depressa
e a sua tropa perdeu o seu cabeça!...
E o Marimbondo picou-o no focinho:
saiu o Raposo numa corredeira,
os animais atrás do chefe valoroso,
que parecia não acertar caminho!

E o Marimbondo não parava de picar:
fazia o Raposo correr, desatinado!...
Seguiam os bichos numa direção
e logo a oposta, sem orientação...
E foi assim que perderam o combate,
para a floresta indo se refugiar,
o Rei Leão, a deixar desapontado,
quando a coragem dos animais se abate!

E no outro dia, ao Urso comandou
que fosse ao Rouxinol se desculpar...
O animal obedeceu e se ajoelhou
e o Rouxinol, bem rápido, o perdoou,
que aquela guerra lhe custara até demais.
Cada filhote seu orgulho dominou,
senão o pai o iria castigar,
sem desejar outra guerra nunca mais!...

EPÍLOGO

O Rouxinol se mostrou mais ponderado
que muito rei ou humano presidente,
sem exigir qualquer reparação,
pondo de lado outra retaliação,
como fizeram nas humanas guerras,
por um pedido de desculpas contentado,
talvez a compreender, naturalmente,
a importância da paz em quaisquer terras...



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