RIMAS DE AREIA I
(16/2/2009)
(Cyd Charisse, apogeu de Hollywood)
Não são minhas perdas que recordo agora,
mas os dias em que não tive o que perder.
Como eu queria ter perdido o meu outrora,
junto de ti, sem tempo de esquecer!...
Mas nada tenho a esquecer, embora
tanto quisesse lembrar, sem nada ter.
Porém nem tive a sombra de uma hora
que pudesse de nós dois remanescer...
Que dois não fomos. Fomos um e uma,
não um mais uma por um só momento.
Como posso então perder esse tormento
de ter perdido o que não tive, em suma?
Mas eu tanto queria ter perdido
um breve amor real, mas esquecido!...
RIMAS DE AREIA II
Talvez, se
consultasse feiticeira,
conseguiria
adquirir memória
do que nunca fez
parte de minha história,
pois sozinho vivi,
sem que a parceira
dessa ilusão que
desejei primeira
partilhasse sequer
uma irrisória
visão comum; meu
sonho foi escória
raspada do ouro, a
jaça verdadeira
da pirita
ilusória; e a feiticeira
(que não daria
amor por falso ouro),
talvez por ouro
bom concederia
não o desejo de
minhalma inteira,
mas ao menos um
momento de desdouro,
em que a tivesse
minha e a perderia.
RIMAS DE AREIA
III
Vou tomar a lua
crescente como faca
e descascar o
sol, feito laranja:
numa espiral
resultará sua franja,
que porei a
secar, presa em estaca.
Vou devorar o
sol, que é saboroso
e soprar meus
humores sobre a pele,
grossa e áspera,
de tal modo que revele
galáxia nova, de
brilho vigoroso,
da qual serei o
deus onipotente
(senhor de
destruir a galáxia inteira,
mas não de a
refazer, tremenda asneira):
por devorar o
sol, sem compaixão,
talvez surja
qualquer vida inteligente,
capaz até de
adorar-me com paixão...
RIMAS DE AREIA IV – 2 SETEMBRO 2023
Talvez consiga destemperar o vento
e reduzi-lo a tiras. Como cinto
usarei uma delas e pressinto
que ao cingir-me, em singular portento,
nunca mais sofrerei o desalento,
dos frios ou dos calores, porque sinto
que o vento em minha cintura é o absinto
do desvario que me inspira tal momento.
De outras tiras de vento, te farei
vestidos, jóias, buquê de casamento,
colar, grinalda e cauda. Serás minha.
Com correntes de vento prenderei
de teu amor o puro sentimento
de igual ardor que meu amor continha.
RIMAS DE AREIA V
A neuropediatria se tornará em verso,
ao cair de outra noite. Seus problemas
serão examinados, tantos temas
que a geriatria estudará ao inverso.
Estou confuso, neste pendor converso:
se cada noite é jovem ou se os lemas
apenas se repetem, nas extremas
combinações do tempo mal disperso.
É a noite uma só, pelos milênios?
Interrompida na sucessão dos dias,
esses monótonos pedaços em que o céu
se torna azul e branco ou em tungstênios,
de sabor causticante de elegias,
que se rasgam e recobrem de um só véu.
RIMAS DE AREIA VI
Bem sei que
algures a noite ali perdura
da mesma forma que
o dia em contraponto,
metade do planeta
em desaponto,
cada hemisfério em
diuturna agrura,
a lamentar de seu
dia a sorte dura,
a lamentar de sua
noite o falso ponto,
doze horas
balbuciando em passo tonto,
doze horas do
calor a esperar a plena cura
ou no transcurso
anual das estações
fica o inverno
desapropriado por verão,
fica o verão
espoliado pelo inverno,
cresce o despeito
nessas ilusões,
dezoito horas em
total destituição
e apenas seis da
noite ou dia terno!
RIMAS DE AREIA VII – 3 set 2023
Até que ponto se ressente o hemisfério,
quando perdeu meia noite no verão,
quando perdeu meio dia em espoliação,
sem o equilíbrio que lhe dava o refrigério?
Até que ponto aceita o dia o despautério
das noites longas sem solar clarão?
Até que ponto as noites chorarão
essas seis horas de verão no eremitério?
Pior ainda, perto do equador
ou junto aos polos, maior a vilania,
seis meses a durar a noite fria,
vinte horas sofrendo no calor...
Será que o verão nesse instante pediria
lhe desse a noite um pouco de frescor?
RIMAS DE AREIA VIII
Será que o inverno
não se ressentiria
pelas seis horas
de dia que o verão
lhe toma,
indiferente à sua paixão?
Qual estação mais
tristeza sentiria?
E quando a
primavera exigiria
quatorze horas do
dia em brotação
ou quando o
outono, a primeira invernação,
quatorze horas da
noite tiraria?
Para os antigos de
helênica expressão
havia deuses que
tudo presidiam
e esses quatro
dias e noites repartiam
com a mais justa
ou fingida aceitação,
mas certas noites
os invernos se inseriam
em dias nublados
no meio da estação...
RIMAS DE AREIA IX
Ou então o Deus
Verão se intrometia
bem no meio do
inverno, justamente
Verão dos
Índios, Veranico, pela gente
chamada assim a
invasão que aparecia.
Será que em
algum jogo de dados se iludia
as estações em
seu passo permanente?
Cartas marcadas,
talvez, roubo frequente
de algumas horas
da noite ou claro dia?
Ou dias inteiros
que ao Deus Verão roubava,
Meses inteiros ganhando
o Deus Inverno,
sem por humanos
ter comiseração,
cuja colheita
fosse assim prejudicada,
quer o plantio
sofresse dano eterno,
fome a espalhar
entre a população?
RIMAS DE AREIA X – 4 setembro 2023
Ou serão as quatro deidades submetidas
aos grãozinhos de areia que descem na ampulheta,
já de antemão sendo a conta mais secreta,
noites e luzes para todos distribuídas
ou em balança do Deus Tempo sopesadas
as estações-deusas, até que cada aleta
se encostasse nas outras ou um deus-poeta
em seu capricho interferisse nas coitadas?
Moiras ou Parcas presidem ao destino,
os dias fiando para toda a humanidade,
qual o deus que sopesava tal balança
para a inclusão de a tantos dias dar o tino,
por preconceitos ou por meio de equidade
que a mente humana nem sequer alcança?
RIMAS DE AREIA XI
Em sua tragédia
não interferia a pitonisa,
hoje estão
vazios todos os santuários,
hoje só vejo os
santos multifários
que comem velas
na capela em que se pisa.
Por mil passos
de fiéis o dia se alisa,
mudas madonas de
sorrisos solidários,
não mais
oráculos nos templos perdulários
de ouro barroco
sobre a talha incisa.
E nem os orixás
em seus terreiros
sabem de fato
sussurrar as profecias,
por mais que
fumem desbragadamente
e muito menos os
astrólogos altaneiros,
seus horóscopos
a redigir em mil orgias,
que em turbilhão
de signos se assenta!
RIMAS DE AREIA XII
E sobre mim quais
serão os turbilhões
nos quais se
erguem os areais em redemoinhos?
Alguma deusa
presidirá os meus caminhos,
deusa de areia,
adorada há gerações?
Qual é a sílfide
ou nereida das gestões
do tempo bom e
feito de carinhos?
Qual hidra ou
troll recobre-me de espinhos,
para furtar-me até
do amor recordações?
Queria lembranças
de ti, mesmo de areia,
queria a perda de
ti, mesmo de barro,
melhor seria que
não ter nada a lembrar!
Como do nada a
saudade me incendeia!
Como o desejo é
inútil e bizarro
de em algum canto
da memória te encontrar!
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