terça-feira, 5 de setembro de 2023


 

 

RIMAS DE AREIA I  (16/2/2009)

 (Cyd Charisse, apogeu de Hollywood)


Não são minhas perdas que recordo agora,

mas os dias em que não tive o que perder.

Como eu queria ter perdido o meu outrora,

junto de ti, sem tempo de esquecer!...

 

Mas nada tenho a esquecer, embora

tanto quisesse lembrar, sem nada ter.

Porém nem tive a sombra de uma hora

que pudesse de nós dois remanescer...

 

Que dois não fomos.  Fomos um e uma,

não um mais uma por um só momento.

Como posso então perder esse tormento

 

de ter perdido o que não tive, em suma?

Mas eu tanto queria ter perdido

um breve amor real, mas esquecido!...

 

RIMAS DE AREIA II

 

Talvez, se consultasse feiticeira,

conseguiria adquirir memória

do que nunca fez parte de minha história,

pois sozinho vivi, sem que a parceira

 

dessa ilusão que desejei primeira

partilhasse sequer uma irrisória

visão comum; meu sonho foi escória

raspada do ouro, a jaça verdadeira

 

da pirita ilusória; e a feiticeira

(que não daria amor por falso ouro),

talvez por ouro bom concederia

 

não o desejo de minhalma inteira,

mas ao menos um momento de desdouro,

em que a tivesse minha e a perderia.

 

RIMAS DE AREIA III

 

Vou tomar a lua crescente como faca

e descascar o sol, feito laranja:

numa espiral resultará sua franja,

que porei a secar, presa em estaca.

 

Vou devorar o sol, que é saboroso

e soprar meus humores sobre a pele,

grossa e áspera, de tal modo que revele

galáxia nova, de brilho vigoroso,

 

da qual serei o deus onipotente

(senhor de destruir a galáxia inteira,

mas não de a refazer, tremenda asneira):

 

por devorar o sol, sem compaixão,

talvez surja qualquer vida inteligente,

capaz até de adorar-me com paixão...

 

RIMAS DE AREIA IV – 2 SETEMBRO 2023

 

Talvez consiga destemperar o vento

e reduzi-lo a tiras.  Como cinto

usarei uma delas e pressinto

que ao cingir-me, em singular portento,

 

nunca mais sofrerei o desalento,

dos frios ou dos calores, porque sinto

que o vento em minha cintura é o absinto

do desvario que me inspira tal momento.

 

De outras tiras de vento, te farei

vestidos, jóias, buquê de casamento,

colar, grinalda e cauda.  Serás minha.

 

Com correntes de vento prenderei

de teu amor o puro sentimento

de igual ardor que meu amor continha.

 

RIMAS DE AREIA V

 

A neuropediatria se tornará em verso,

ao cair de outra noite.  Seus problemas

serão examinados, tantos temas

que a geriatria estudará ao inverso.

 

Estou confuso, neste pendor converso:

se cada noite é jovem ou se os lemas

apenas se repetem, nas extremas

combinações do tempo mal disperso.

 

É a noite uma só, pelos milênios?

Interrompida na sucessão dos dias,

esses monótonos pedaços em que o céu

 

se torna azul e branco ou em tungstênios,

de sabor causticante de elegias,

que se rasgam e recobrem de um só véu.

 

RIMAS DE AREIA VI

 

Bem sei que algures a noite ali perdura

da mesma forma que o dia em contraponto,

metade do planeta em desaponto,

cada hemisfério em diuturna agrura,

 

a lamentar de seu dia a sorte dura,

a lamentar de sua noite o falso ponto,

doze horas balbuciando em passo tonto,

doze horas do calor a esperar a plena cura

 

ou no transcurso anual das estações

fica o inverno desapropriado por verão,

fica o verão espoliado pelo inverno,

 

cresce o despeito nessas ilusões,

dezoito horas em total destituição

e apenas seis da noite ou dia terno!

 

RIMAS DE AREIA VII – 3 set 2023

 

Até que ponto se ressente o hemisfério,

quando perdeu meia noite no verão,

quando perdeu meio dia em espoliação,

sem o equilíbrio que lhe dava o refrigério?

 

Até que ponto aceita o dia o despautério

das noites longas sem solar clarão?

Até que ponto as noites chorarão

essas seis horas de verão no eremitério?

 

Pior ainda, perto do equador

ou junto aos polos, maior a vilania,

seis meses a durar a noite fria,

 

vinte horas sofrendo no calor...

Será que o verão nesse instante pediria

lhe desse a noite um pouco de frescor?

 

RIMAS DE AREIA VIII

 

Será que o inverno não se ressentiria

pelas seis horas de dia que o verão

lhe toma, indiferente à sua paixão?

Qual estação mais tristeza sentiria?

 

E quando a primavera exigiria

quatorze horas do dia em brotação

ou quando o outono, a primeira invernação,

quatorze horas da noite tiraria?

 

Para os antigos de helênica expressão

havia deuses que tudo presidiam

e esses quatro dias e noites repartiam

 

com a mais justa ou fingida aceitação,

mas certas noites os invernos se inseriam

em dias nublados no meio da estação...

 

RIMAS DE AREIA IX

 

Ou então o Deus Verão se intrometia

bem no meio do inverno, justamente

Verão dos Índios, Veranico, pela gente

chamada assim a invasão que aparecia.

 

Será que em algum jogo de dados se iludia

as estações em seu passo permanente?

Cartas marcadas, talvez, roubo frequente

de algumas horas da noite ou claro dia?

 

Ou dias inteiros que ao Deus Verão roubava,

Meses inteiros ganhando o Deus Inverno,

sem por humanos ter comiseração,

 

cuja colheita fosse assim prejudicada,

quer o plantio sofresse dano eterno,

fome a espalhar entre a população?

 

RIMAS DE AREIA X – 4 setembro 2023

 

Ou serão as quatro deidades submetidas

aos grãozinhos de areia que descem na ampulheta,

já de antemão sendo a conta mais secreta,

noites e luzes para todos distribuídas

 

ou em balança do Deus Tempo sopesadas

as estações-deusas, até que cada aleta

se encostasse nas outras ou um deus-poeta

em seu capricho interferisse nas coitadas?

 

Moiras ou Parcas presidem ao destino,

os dias fiando para toda a humanidade,

qual o deus que sopesava tal balança

 

para a inclusão de a tantos dias dar o tino,

por preconceitos ou por meio de equidade

que a mente humana nem sequer alcança?

 

RIMAS DE AREIA XI

 

Em sua tragédia não interferia a pitonisa,

hoje estão vazios todos os santuários,

hoje só vejo os santos multifários

que comem velas na capela em que se pisa.

 

Por mil passos de fiéis o dia se alisa,

mudas madonas de sorrisos solidários,

não mais oráculos nos templos perdulários

de ouro barroco sobre a talha incisa.

 

E nem os orixás em seus terreiros

sabem de fato sussurrar as profecias,

por mais que fumem desbragadamente

 

e muito menos os astrólogos altaneiros,

seus horóscopos a redigir em mil orgias,

que em turbilhão de signos se assenta!

 

RIMAS DE AREIA XII

 

E sobre mim quais serão os turbilhões

nos quais se erguem os areais em redemoinhos?

Alguma deusa presidirá os meus caminhos,

deusa de areia, adorada há gerações?

 

Qual é a sílfide ou nereida das gestões

do tempo bom e feito de carinhos?

Qual hidra ou troll recobre-me de espinhos,

para furtar-me até do amor recordações?

 

Queria lembranças de ti, mesmo de areia,

queria a perda de ti, mesmo de barro,

melhor seria que não ter nada a lembrar!

 

Como do nada a saudade me incendeia!

Como o desejo é inútil e bizarro

de em algum canto da memória te encontrar!

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