ESCANINHOS & MAIS
William Lagos – 10/19
FEV 16
ESCANINHOS I – 01 SET
2007
Com este já são vinte e
fiz minha quota:
o que vier, é lucro, se
é que vem...
No descrever das emoções
de alguém
que nunca
conheci... E a face ignota
reproduzir nas paredes desta
grota...
Quero pintar com a bile
que contém
a imagem enevoada, perto
ou além,
igual àquela
que encontro na minha rota,
porém nunca
senti... Aos maus desejos
de meus irmãos
medíocres, cruéis,
que nunca dão, nem
pedirão quartéis...
Pois assim, demonstrarei,
nestes ensejos,
o mesmo lema antigo de
Aretino, (*)
ao partilhar de alheio
desatino...
(*) Pietro Aretino,
1492-1556, poeta veneziano: "Tudo que é humano, me pertence."
ESCANINHOS II – 10 FEV 2016
Como um espelho multifacetado
tal qual os olhos de mosca peregrina,
contemplo ao derredor o que fascina,
tudo por mim destarte assimilado,
sem distinguir a bondade do pecado,
sem preferir aquilo que se inclina
à própria índole, visão bem pequenina
perante um mundo multifário e variegado,..
Quando assim ajo, não faço nada mais
que descrever o humano em seu retrato,
da gentileza até o ato de impiedade:
somente peço que me não levem por demais
a sério, já que é apenas um contrato
que um dia firmei com toda a humanidade.
ESCANINHOS III
Como um pintor gravando o seu modelo,
nada pretendo que seja autorretrato,
embora às vezes dê preferência ao ato
de desenhar suas feições com mais desvelo.
Alguns se entregam a tal impulso sem contê-lo,
sua vaidade ostentando em desacato;
a maioria, porém, busca o contato
de outro modelo, a fim de descrevê-lo.
Não obstante, aos modelos modificam,
neles deixando algo de si mesmos
e o mais das vezes, tais imagens glorificam.
Chamam de estilo o pintar à sua feição;
as pinceladas, porém, não caem a esmos,
mas pingam gotas que lhes brotam da visão.
ESCANINHOS IV
Assim, embora afirme não
ser minhas
as vivências e emoções
hoje descritas,
por mim passaram, em
sensações aflitas,
a me esporear tal qual
galos em suas rinhas...
Caso recordes as emoções
que tinhas,
em tua leitura de
paixões aqui descritas,
foi que as palavras
revestiste com tuas ditas:
sentes em ti o amplo
rastro destas linhas...
Pois cada humano porta o
mesmo substrato,
agridoce de fel todo o
seu mel
e quando os lês, meus
versos pões a crivo
e os reescreves com teu
olhar e tato,
às minhas juntando tuas
cerdas e o pincel,
nessas nuances de teu
peito esquivo...
AS JOVENS DE ROMA LXI (61)
TRANQUILLIA
(Homenagem a
Gaius Valerius Catullus)
ESTE DESEJO QUE SINTO POR TI,
SEM PEJO E SEM REMÉDIO, QUASE INSÍDIA,
ME CORTA O CORAÇÃO, QUAL UMA VÍDIA
RECORTA O AÇO... COM QUE O REVESTI...
MEU OLHAR LANÇO,QUANDO ME APROXIMO,
QUERENDO TER E NÃO, QUERENDO TUDO
E, POR TEMER, NÃO TER... ASSIM, ME ILUDO
QUE NÃO ALMEJO DE FATO TAL DESTINO...
MAS O FULGOR QUE VEJO NO TEU ROSTO,
O RESPLENDOR DE ESTRELA DE TUAS FACES,
NÃO SE ESCONDE DE MIM, INDA QUE ANTOLHOS
SOBRE MINHA VISTA DISFARCE TENHAM POSTO,
NUMA CORTINA MARROM... QUE NÃO REPASSES
O AMOR QUE SENTES, NUM PISCAR DE OLHOS...
ENTELÉQUIA I – 01 SET 2007
(*)
Tão perto estás, enquanto
estás bem longe;
quando bem longe estás, estás
por perto,
quando povoas meu coração
deserto,
na escapular tonsura, com que
o monge
esquila de seu púbis o
desejo...
Eu te vejo tão longe, quando
ao lado...
Porém quando bem longe,
enamorado
sou do som de tua voz, em
esgarço beijo.
Assim me sinto, ansiando o
ser concreto:
enquanto abraço ainda o
abstrato,
do ser ideal escolho o
sentimento...
Destarte eu tenho a
fada, num discreto
amor de alma, em que o ensejo
mato,
sem conseguir te afastar do
pensamento...
(*) Enteléquia é a transformação de uma causa em ato,
contrastante com a existência potencial.
Também é a força que regula a vida e o desenvolvimento de um
organismo.
ENTELÉQUIA
II – 11 fev 2016
É
assim que a causa se transforma em ente,
talvez
brotando direto da semente,
talvez
lançando brotos desde o chão,
desde
a raiz que na terra está presente.
É
assim que o animal tem gestação
e
vem à luz em sua própria floração,
impulsionado
para vida mais potente
por
essa causa que insinuou-se em geração.
Assim
transcorre teu desenvolvimento,
não
só o físico, mas também o espiritual,
a
enteléquia sendo a luz do teu fanal
e
assim se forma até teu pensamento,
quer
intuitivo, quer seja racional,
nos
mil parâmetros de cada julgamento.
ENTELÉQUIA
III
Assim
se forma o amor no coração:
em
mim existe desde sempre a propensão,
seja
da graça, seja apenas para o sexo,
mas
predisposta em formosa vibração.
Mas
essa causa tem alheio nexo:
são
necessários dois para um amplexo,
vem
de um zigote a nova geração, (*)
de
pai e mãe em múltiplo reflexo.
(*) Célula resultante da união
do óvulo e espermatozoide.
Assim
o amor por si mesmo é doentio:
por
mais potente a conservar vazio
dessa
atração o fatal receptáculo;
mas
não brota da alma esse arredio
alimento
para a boda no cenáculo,
sem
convidados, em egoístico espetáculo.
ENTELÉQUIA
IV
Mas
o poeta entontece em timidez:
quer
buscar e não quer o que deseja;
lá
no profundo, seu inconsciente almeja
mesmo
é o sabor do amor que não se fez...
Então
ele compõe, em tal desfaçatez,
versos
sublimes em descrição do beijo
que
não fruiu, a revelar seu pejo (*)
somente
aos versos compostos na prenhez...
(*) Que não gozou.
E
quando amor possui, rente a seu lado,
os
meios cria para que seja rejeitado:
são
mais sublimes os versos da tristeza,
por
mais que seja o sentimento fantasiado
e
precise admitir, final fraqueza,
que
a causa ama no mortal de sua beleza!
ENTELÉQUIA
V
Porque
o poeta ama apenas a ilusão,
buscando
sempre tão só o imaginário,
ao
qual sustenta com afeto perdulário,
no
ideal forjado dentro ao próprio coração!
Não
a mulher a quem hoje beija a mão,
mas
esse vulto sutil e solidário
que
atende totalmente a seu fadário,
intangível,
mas real como a emoção!...
Os
olhos tem de uma e o perfume
que
hauriu de outra... e a meiga boca (*)
de
uma terceira, apenas vista de passagem,
(*) Que obteve, farejou.
junto
à ternura inefável do ciúme
com
que reveste sua estética tão louca,
na
permanência sutil dessa miragem...
ENTELÉQUIA
VI
E
quando tem ao lado o ser amado,
sente
a falta de imaginados atributos;
pelos
traços falidos de seus lutos,
está
perto e está longe em seu pecado,
ao
adultério da poesia condenado,
Pigmalião
perdido em sua permuta,
tira
da pedra Galateia em vã labuta,
ante
seus pés a tombar apaixonado... (*)
(*) Afrodite teria concedido o
desejo de Pigmalião e a estátua perfeita
ganhou vida, apaixonando-se
por outro homem; na versão de Ovídio, se
casa com o escultor e juntos
têm um casal de filhos.
Não
obstante, quando a estátua se apaixona,
não
é por ele, que lhe deu a vida,
mas
por um outro, com desejo mais concreto;
e
mal protesta quando alguém a toma:
conserva
a imagem em sua mente concebida,
no
ideal perfeito e no martírio mais dileto!
REGRAS DA VIDA XXXVI-a (36-a)
Ninguém se interessa mais por
ti
do que tu mesma.
Se não te cuidares,
se interesse apenas
demonstrares
pelos outros... a teu redor
aqui,
descuidarás de ti mesma e,
então, verás,
que não tens mais saúde e que
o cuidado
que pelos outros sempre tens
mostrado
não mais de forma igual
demonstrarás...
Assim, cuida de
ti. És responsável
por tua saúde e por teu
bem-estar,
mais do que por qualquer outro
a teu redor.
E, se te conservares bem
saudável,
muito mais fácil te será
ajudar
a todos esses por quem tens
amor.
LAIVOS I – 01 set 2007
Passou-se o tempo em que
significasse
um Ano Novo qualquer coisa para mim.
É um dia como os outros, só que,
assim
mais tempo havia no qual eu
trabalhasse...
E mais um livro então eu
completasse,
ao longo das tarefas por que vim
ao mundo: por plantar em meu jardim,
um sonho alheio no qual me
revelasse...
Tudo contado, trabalho com prazer,
muito mais que se em festas
desgastasse
esse precioso tempo de minha vida.
Muito mais do que tarefas a vencer,
as minhas traduções são desenlace
que cicatriza em mim outra ferida.
LAIVOS II – 12 FEV 16
Desatualizado se acha o calendário:
o Ano Novo em defasagem celebramos;
não está na data em que comemoramos
com tantos fogos de artifício
multifário.
Júlio César considerou atrabiliário
o que o Rei Numa dera a seus
Romanos: (*)
trezentos cinquenta e cinco dias
nesses anos,
seiscentos anos já de tempo
perdulário.
(*) Numa Pompílius foi o segundo rei de Roma.
O Imperador era então Sumo Pontífice
e simplesmente acrescentou dois
meses
e de Undecembris e Duodecembris os
chamou
e mais dez dias de que foi o
artífice,
em 46 a.C., com um bissexto às
vezes,
que de três em três anos declarou.
LAIVOS III
Foi por Sosígenes feita a correção:
(*)
caíam as festas em períodos
diferentes
das estações a ser correspondentes:
havia protestos e muita confusão...
(*) Astrônomo grego nascido em Alexandria, no Egito.
46 a. C. foi de bem vasta duração,
Quatrocentos e mais dias
consequentes;
45 a. C. com limites mais assentes;
E após sua morte, continuou a
aceitação.
Otávio Augusto, porem, seu sucessor,
marcou bissextos para cada quatro
anos
e assim ficaram desde o tempo dos
Romanos;
Ianuarius do Ano Novo o introdutor;
Quintus tornou-se Iulius, nosso
Julho;
Sextus em Augustus, por maior
esbulho...
LAIVOS IV
Augusto o reformou em 6 d. C.,
e assim ficou por toda a Média
Idade,
porém nova defasagem, na verdade,
após mil anos em dez dias já se
vê...
Gregório Treze a reforma então
provê:
cortou dez dias, com plena
autoridade:
Outubro cinco a quatorze, em
realidade
e o Calendário Gregoriano ainda se
lê...
Mas já é tempo de fazer nova
reforma:
de Mil Quinhentos e Setenta e Dois
já quatro séculos sobre nós
desceram...
Por que então celebrarmos de igual
forma
tal convenção anual, tempos depois
que os Equinócios já se precederam?
VIVEIRO VII -- O MERGULHÃO I (2006)
A que compararei o meu amor?
Aos voos loucos desse mergulhão,
Que cai subitamente, na efusão
De se lançar sobre melhor sabor...
Mergulha a fundo, movido por ardor,
Mas volta à tona logo
após a refeição,
Pensa de novo em mais satisfação
E volta ao voo, renovado seu vigor...
E desse morno viver, esse biguá
Avista um novo alvo, precipita,
Se lança uma vez mais e até parece
Que quanto quer da vida ali achará;
E eu fico pasmo, como me concita
Para um imenso amor e então me esquece...
O MERGULHÃO II – 13 FEV 16
Ao precipício, tal e qual o mergulhão,
Surge o impulso do amor onipresente;
Longo mergulho, quase incandescente:
O corpo inteiro é lançado
em turbilhão!
As alturas percorrendo, em ocasião,
Alguém se avista, inesperadamente:
Dobram-se as asas, fúria impenitente,
No arquejo ardente de qualquer pulmão!
Por mais que a mente grite, em repreensão,
Troca-se tudo por esse amor total,
Sem se saber o quanto está à espera...
Febril a testa contra o ansiado turbilhão,
Água, miragem ou duro gelo no final,
Vibrante o amor igual que besta-fera!...
O MERGULHÃO III
A dama nos acena, até impaciente,
Tal qual a Uiara, desde azulado lago,
Na esperança se mergulha de um afago,
Tudo esquecido em tal ideal fremente.
Quando se hesita, a musa impertinente
Mais se endurece, em sortilégio mago:
Abrem-se as águas em fatal estrago:
No fundo aguarda a dama impenitente.
E no momento em que domina o pasmo,
Fecham-se as ondas sobre o corpo inteiro,
Totalmente engolfado em turbilhão,
Nessa exigência de um total orgasmo,
Mesmo que seja o instante derradeiro
Dessa explosão fugaz do coração!...
O MERGULHÃO IV
Contudo, às vezes, a dama nem acena
E a nosso pasmo se faz indiferente,
Com um muxoxo, de nosso amor descrente,
Baixa a cortina... na ocultação da cena!
E o mergulho contra o pano se envenena,
Enquanto aplaude a multidão, alegremente,
Na zombaria ante o ridículo potente,
Desse emaranho sem sentir a menor pena!
Tal Mergulhão não acertou seu alvo:
A presa se afastou, rapidamente;
Ele retorna ao ar, ainda faminto...
Tendo sorte, sobrenada são e salvo,
Sacode as penas... apenas... descontente,
Saindo em busca de qualquer alvo distinto.
O MERGULHÃO V
Contudo a ave busca apenas devorar,
Quando o humano biguá quer compartir;
Ser devorado, quiçá, sem pressentir,
Mas seu amor nunca pretende assassinar.
Antes almeja firme ritmo alcançar,
Dançando lado a lado, em reluzir,
As gotas de água aos milhares refletir:
Olhos nos olhos, no fundo contemplar!
Algumas vezes, alcança o quanto roga,
Mesmo que a dama seja surpreendida,
De certo modo, até mesmo lisonjeada;
Mas em outras tantas, tal amor o afoga,
Na busca vã dessa imagem refletida,
Breve centelha nas ondas espelhada!...
O MERGULHÃO VI
E em tal comparação ornitológica
Não mais pretendo nem desejo mergulhar:
Quero minha vida para o verso preservar
E não sofrer de uma pena mitológica;
Cada experiência alheia é pedagógica,
Em renovada centelha a presentear;
Esses mergulhos não quero acompanhar,
Ao romantismo me contraria a lógica.
Se mergulhasse nas águas desse lago
Em que descanta a sereia, docemente,
Seria a trilha de meus versos desvalida,
Em troca apenas de material afago
Ou de sorriso não mais que complacente:
Por um instante de glória a dar minha vida!
RECORDAÇÃO IX (2003)
Eu fui passar uns dias com minha bela,
Na casa de seus pais: fui bem tratado,
[Nem acredito que já tenham passado
Quase quarenta anos, desde que ela
Fez, por primeira vez, amor comigo...]
Pois era loura, o rosto bem formado,
Um corpo lindo, olhar acastanhado:
Ficamos nos beijando, sem perigo,
Até que abriu-me as roupas e deitamos,
Ela por cima, num desejo franco...
E me assustei, ao ver chegar-lhe o irmão!...
Mas pegou sua guitarra, sem reclamos,
E me esvaí dentro dela, em sangue branco,
Enquanto ele dedilhava o violão!...
RECORDAÇÃO X (2003)
Não sei se insisti eu, ou se foi ela:
A trança era dourada e seus cabelos,
Longos, sedosos, nos mais sutis desvelos,
E como me aprouvera ora revê-los!...
Um dia me chamou, de sua janela,
Conversamos os dois... pela retorta
De uma alquimia abriu-se aquela porta:
Uma trilha segui; e outra foi morta.
E nunca nos amamos, mas que espanto
O prazer de seus braços, quando o pranto
Escorria de meu ventre para o seu...
Foram tão dolorosos tais amores!...
Ela me encheu de orgasmo e resplendores,
Seu coração, porém, nunca me deu!...
RECORDAÇÃO XI (2003)
Apenas a delícia na memória
Me resta agora, foi-se toda a mágoa,
Lembram somente um perpassar de glória
Meus olhos duros, dantes rasos d'água...
Foi minha tantas vezes... No entretanto,
Era meu corpo tão só que ela queria;
E quando não quis mais, perdi meu pranto,
Porque seu peito jamais convenceria...
Nunca me foi fiel, era inconstante,
Para ela fui tão só mais um amante,
Na zombaria do esposo que ultrajava.
Mas eu... me deveria dar por satisfeito...
Embora fosse o traidor, pelo direito,
Traído me senti, tanto que a amava!...
HERÓIS NO INVERNO V – SANSÃO (14 fev 16)
Pequei, Senhor, bem sei, foi meu castigo:
Amei Dalila, a Filisteia traidora;
Cego fiquei perante tal perigo,
Pois tantas vezes mostrou-se enganadora;
Porém no coração lhe dei abrigo,
Contei-lhe a origem de minha força protetora
E meu segredo revelou aos Filisteus,
Que perfuraram, sem pena, os olhos meus!
Antes, na força que Jeová infundia,
Venci batalhas, sem sofrer vileza
E com um crânio de jumento, que brandia,
Matei dez mil em potente fortaleza;
A meu povo antigamente eu protegia,
Em muitas lutas combatendo em sua defesa,
Porem deixei-me levar pela luxúria,
Ante as mulheres a demonstrar incúria...
Um dia queimei os trigais dos Filisteus,
Lançando fogo a caudas de raposas;
Sempre os venci, a comandar os meus,
Em dez batalhas de fúrias prodigiosas;
Em meus cabelos santo poder de Deus,
Que revelei ante palavras mentirosas:
Dava-me vinho a mulher que tanto amava
E meus cabelos inteiramente me raspava!
Pois me levaram, cego e acorrentado,
Para a moinho atrelar-me, qual um boi,
Mas nesses meses em que tenho trabalhado
Mais que a cegueira, a humilhação me rói!
Para o templo de Dagon sou transportado,
Porém crescendo a cabeleira também foi:
Dá-me a força, Senhor, nos ímpios sólios: (*)
Que ali me vingue pela perda de meus olhos!
(*) Nave do templo, também salão do trono ou altar.
HERÓIS NO INVERNO VI – NABUCODONOSOR (15/2/16)
Fui soberano sobre a Terra inteira,
Venci ao Egito, à Pérsia e à Filistia;
Em Babilônia, de majestade condoreira,
Cada rei a meus pés restos comia,
Após vencê-los em batalha derradeira
De toda glória e poder minha primazia!
Outros nomeei em vassalagem prometidos,
Fui Rei dos Reis com poderes incontidos!...
Um dia, contudo, após a embriaguez
Tive um sonho de atroz perturbação:
Nenhum dos magos interpretação me fez
Até fazer ao hebreu Daniel convocação.
Ouviu-me o sonho e perturbou-se por sua vez:
“Senhor Rei, terrível será a interpretação,
Mas o Altíssimo enviou-Vos um portento,
De que haverás de perder o entendimento!”
Meus generais queriam a morte do profeta,
Mas respeitei-o e concedi-lhe meu perdão:
“Essa moléstia até o final de afeta?”
“Não, terá dez anos tão só de duração,
Mas deverás guardá-la bem secreta:
Regente escolhe que domine esta nação,
Senão Teu reino a rebeldia então destrói,
Pois pastarás a erva como um boi!...”
E de fato foi assim. Após
dez anos,
Recuperei outra vez o entendimento,
Voltei de novo aos paços soberanos,
Achei o Império devastado em tal momento.
Rendi louvores ao Altíssimo em arcanos,
Travei batalhas, com a vitória a meu contento.
Mas estou velho... E o que virá depois
De minha morte, daqui a um ano ou dois?
ABRASÃO I – 16 FEV 16
Se eu te convido a mastigar
segredos,
é que este mundo te anseia
mastigar;
o mundo inteiro desejo te
alcançar:
que o domines com a ponta de teus
dedos!
Se eu te convido para mascar os
medos
que a sociedade te dará a
partilhar,
procuro apenas a ti te libertar
dessa vasta multidão de enganos
ledos!
Se eu então me retrair e eremitar
na minha gruta humilde de
ermitão,
talvez eu queira que partilhes
desta ermida
e que reunidos nesse mesmo
mastigar
possamos sempre digerir no
coração
os medos todos que nele têm
guarida!
ABRASÃO II
A sociedade não demonstra
complacência
e onde encontra o esmalte da
beleza
unhas aduncas o arranham, com
certeza:
zomba de ti, sem sombra de
decência!
A inveja vibra, cheia de
impaciência,
sobre ti a derramar vasta
aspereza;
e ao descobrir em ti qualquer
fraqueza,
buscará decapitar-te a
independência!
E nem sequer o farão por ódio a
ti,
mas tão somente em busca de
vantagem,
sem o menor considerar pelo teu
bem;
e foi assim que teu abraço hoje
pedi,
nós dois juntos redobrando de
coragem,
o mundo inteiro a se enfrentar
também!
ABRASÃO III
Junto de mim mastigarás amor,
cada arranhão apenas de carinhos,
com cem gravetos fortalecendo os
ninhos
que os dois juntos construímos
com ardor...
Que se arranhem entre eles, no
estridor!
A nossa ermida possuirá cerca de
espinhos
para vigiar os nossos ovos
pequeninhos,
sendo chocados com o mais gentil
calor...
Preciso nos será travar combate
quando notarem o que temos
suficiente,
mas do mundo há de cessar seu
despautério,
sempre que cresça o amor que não
se abate,
fruto de ouro no coração da
gente,
na proteção deste pequeno
eremitério!...
PORTA-IMAGEM I – 17 FEV 16
Caso eu vivesse numa terra
muçulmana,
tantos meus versos teriam sido
proibidos!
Eu nem teria direito a tê-los
lidos
sequer pela Internet que os
proclama!
Eu não teria a força que reclama
a minha aspiração, nesses falidos
sistemas em que humanos são
mantidos
afastados dos demais da raça
humana!
Em que mulheres que não fossem da
família
vistas pudessem ser somente de
relance,
escondidos nos véus os seus
cabelos...
por outro lado, quem sabe nessa
trilha,
esse mistério me provesse mais
alcance,
ao tornar mais sedutores seus
desvelos?...
PORTA=IMAGENS II
Um poeta ama sempre o imaginário,
bem mais que aquilo que consegue
ver;
fica na ânsia do que não pode
ter,
tem na poesia dever
consuetudinário. (*)
(*) Consagrado pelo costume.
Olhando assim o conjunto
multifário
desses vultos embuçados, sem
poder
sequer cabelo solto ao vento
perceber,
sem da nudez desvendar segredo
vário,
lança-se às asas do mais belo
conceber,
sem que defeitos o consigam
afastar,
sem corpos ver para a outros
comparar,
a consumir-se em paradisíaco
prazer:
setenta virgens sua esperança e
fé,
qual no Alcorão acenou-lhe
Maomé!...
PORTA-IMAGEM III
Traz o poeta no coração a imagem
dessa mulher que conforma a seu
ideal:
beleza pura, muito além do
natural,
mente e carinho em plena
vassalagem.
Não há mulher que corresponda a
tal miragem
e a todas ama de uma forma
espiritual;
todas possui de forma consensual,
sem que elas saibam viver em tal
paragem.
Porque o poeta só as tem no
coração
ou no castelo de sua mente
consagradas,
mil formosuras a guardar no
conhecer...
Será que existe na feminina
multidão
tal poetisa de tendências
desregradas
que a ideal assim se disponha a
pertencer?
HIPOVOLEMIA I (*) – 18 FEV 16
(*) Enfraquecimento do Sangue
A cada vez que deixo o verso
rebrotar,
gotas de sangue a seu redor
carrega
e para o mundo, em insensatez,
entrega:
um dom difícil de se recuperar!...
Vai seu volume, aos poucos, a
rarear,
afina o sangue a que a alma não
se apega;
a força da medula então congrega
para o vigor assim reconquistar.
Mas se o poeta compõe cada vez
mais,
não sobra tempo para recomposição
e a própria linfa prodigaliza
assim!
e no entretanto, como é doce esse
ademais,
na vermelha hemorragia da canção,
a transformar todo o amargor em
alfenim! (*)
(*) Pequenos doces.
HIPOVOLEMIA II
E quanto mais almeja, mais afina
a força de seu sangue derramado;
cada verso ao amor predestinado
escorre mudo em busca de sua
rima,
quando surge, nunca sabe a que
destina
essas gotas de sangue consagrado
para um olhar insurgente de
pecado
ou indiferente inocência de
menina!
E assim desgasta-se em
prodigalidade,
sem conseguir fechar a larga
eclusa,
rubras hemácias a fluir em
profusão;
seguem plaquetas em capilaridade,
na hemorragia que sua alma não
recusa,
escrava inerme da constante
inspiração!
HIPOVOLEMIA III
Talvez por isso é que tantos
morrem cedo,
sua vida inteira investida na harmonia,
emigrando das veias quanto havia
de encarnado a brotar em sonho
ledo!
Seu coração, esvaziado de
segredo,
aos quatro ventos espalhado em
elegia...
Meus versos doem enquanto a mente
os cria!
Não obstante, a liberdade lhes
concedo...
Que importa o sangue nos ares
derramado,
quando Dionyso me confere a
embriaguez,
vinho das musas na medula então
pingando,
um novo amor em cada canto
digitado,
nesse abandono destilado de
altivez,
suas horas loucas em poemas
desgastando!
EPICLERA I (*) – 19 FEV 16
(*) Herdeira rica.
Saudade é um rio que percorremos
ao revés,
contra a corrente que para trás
nos impulsiona;
vaidade inglória a mente então
nos toma,
em águas fundas de se perder os
pés!
Quaisquer paixões são condenadas
rés,
dura sentença contida em tal
redoma;
cada lembrança ao castigar se
soma,
descartado o futuro em aguapés...
Porque a saudade nos assenta num
passado
que muita vez sequer se realizou,
águas profundas a fantasiar
memória,
desejo apenas de um peito
atribulado,
que tais ensejos dentro em si
imaginou,
reescrevendo em mentiras toda a
história!
EPICLERA II
Nossa memória é um objeto
peculiar:
nunca lembramos o ocorrido
realmente;
quanto mais vezes tal visão nos
apresente,
tão mais diversa desse antigo
vivenciar.
Saudade sentes muito mais do
imaginar
do que tiveste sob o olhar
presente;
bem mais consagras cada ilusão
ausente,
que em teu antanho não pudeste
conquistar.
Mas como é rica destarte tal
lembrança!
Herdou dos livros graciosas
aventuras,
lembrou das vozes que histórias
lhe contaram,
saudade feita dos folguedos de
criança,
a retocar os ladrilhos das
agruras,
jogando ao olvido as tristezas
que passaram!
EPICLERA III
Saudade, então, é essa herdeira
rica
que desposamos em nosso
pensamento,
que se entregou em total
consentimento
e no lugar da própria vida se nos
fica...
Saudade é tal crisol que nos
indica
sonhos metálicos sem qualquer
comedimento:
muito mais vale que algum real
momento
cujo ferrão nos arde mais que
quando pica!
Também geraste em tua mente igual
herdeira
e compartilhas tais memórias
inefáveis
que no passado não pudeste
partilhar;
pois que hoje te enriquece a vida
inteira
desse tesouro de dons
imponderáveis
dos sonhos mansos esquecidos no
acordar!
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