NOBRES PALAVRAS
(2009)
Duodecaneto de William
Lagos
NOBRES PALAVRAS
I
Esse imposto de renda
que hoje pago
cobra demais de meus
parcos rendimentos:
depois que distribuí
os meus proventos
apenas sobra um
numerário vago...
O que me cobram, léger-de-main de mago (*)
é o imposto sobre o
imposto, mil assentos
sobre o imposto já
pago, assentamentos
a financiar esses
que fazem tanto estrago!
(*) Prestidigitação,
truque de mágico.
Pois cobram a magra
renda rabiscada,
após horas incontáveis
de trabalho,
pelo prazer de
contribuir para a receita...
Nas madrugadas em lida
atarefada,
para atender as
despesas eu me encalho,
que o fisco gasta em
tanta obra mal feita!...
NOBRES PALAVRAS II
Esse imposto de poesia
que hoje pago
não se cobra de meus
parcos sentimentos:
depende muito mais de
esvaziamentos
de minhas redes
neurais, estranho afago,
que me arranha ao
cérebro, em aziago (*)
derreter dos melhores
julgamentos:
eu pago a Dionyso
envolvimentos,
enquanto em versos o
papel alago.
(*) Infeliz, maldito.
Há nisto algo de
mágoa, é fato certo,
mas como tudo,
escrever tem o seu preço
e não apenas pago em
tinta de canetas...
Parece pouco o quanto
em sons converto,
mas essa tinta é tal
qual o sangue espesso
que sempre escorre das
veias dos poetas.
NOBRES PALAVRAS III
Esse imposto de poesia
que hoje eu pago
me abre um oco no
fundo da caveira!
Meus neurônios
escorrem em esteira
e fica só o vazio do
longo estrago!...
Fazer poesia é
suportar cérebro vago,
não porque seja tolice
ou baboseira,
mas porque abre uma
límpida clareira
à inspiração, que
escorre como um lago!...
Quando há barreira
formada por um dique,
decerto é perfurado
por eclusa,
aberta sem esforço e
sem controle!...
Mas por vácuo que
então meu crânio fique,
dessas células a perda
não recusa
e sempre existe outra
mente que as recolhe...
NOBRES PALAVRAS IV
Não obstante, em tudo
existe sacrifício
nessa lenta e perpétua
refeição;
perde-se o cérebro e
também o coração:
são devorados para
alheio benefício.
E nem sequer se vai
após o meretrício,
os poemas ofertados de
antemão,
que se concede sem
qualquer retribuição,
na benévola loucura
desse vício...
Nobres palavras quem
sabe que até sejam,
mais como bônus de uma
estranha graça
que outros mil
aceitam, sem pensar,
ou que rejeitam, antes
mesmo de que as vejam,
sem dar a mínima ao
esforço que se faça
para as tristezas do
mundo compensar...
NOBRES PALAVRAS V
Eu também pago
impostos para a vida
a cada dia que por mim
perpassa
desgasto um pouco de
energia e lassa (*)
vai ficando minha alma
e desprovida...
(*) Cansada.
A vida cobra um
pedágio já em saída
até que o corpo
lentamente se desfaça;
quanto mais vamos
correr em torno à praça
menos nos sobra da
reserva recolhida...
Sem dúvida, um pouco
de alimento,
o ar e a água (e até
goles de canha!)
reforçam mais ou menos
a represa,
mas aos poucos se
esvazia, com certeza,
que a vida sempre tem
outra artimanha
para lembrar-nos de
nosso passamento...
NOBRES PALAVRAS VI
Também impostos todos
pagam ao amor,
em notas promissórias
de paixão,
precatórias com juros
de emoção:
debêntures estas
claramente de valor;
há impostos no
intercâmbio do sexor,
que pagamos a fatiar o
coração
e cada orgasmo nos
exige uma porção
da expectativa e
reserva de calor...
Então se gera, em
transitório instante,
arco voltaico de
perenidade,
mas dispersado também
rapidamente...
Contudo, é muito mais
interessante
pagar as taxas da
sexualidade
que emolumentos à
mágoa permanente...
NOBRES PALAVRAS VII
Eu pago meus impostos
ao espelho,
a cada vez que me
reflete o brilho;
ele me rouba um pouco
para o filho
que gera igual a mim;
e assim, mais velho
eu vou ficando ante a
chibata desse relho,
que o rosto vai
marcando, quando encilho
ao pescoço a
gravata... ou quando rilho
os dentes, como amargo
escaravelho...
Todos pagam tais
impostos... sem notar,
enquanto a imagem do
espelho se enriquece;
empalidecemos tão só
em fotografias
que menos brilho
conseguem-nos tirar,
enquanto a vida, a
pouco e pouco, desce
para a imagem
especular das zombarias!...
NOBRES PALAVRAS VIII
Impostos pago para a
luz do Sol,
sem a qual eu nem
sequer existiria;
desde a infância, essa
luz que me nutria
veio igualmente a me
anotar um rol
de toda a luz assim
que lhe devia
(mas os navios não
pagam ao farol
essa luz que se apaga
ao arrebol,
mas que de noite a
terra indicaria)...
Contudo, eu pago,
senão seria invisível
e cada vez que o Sol
assim me molha,
uma camada de mim
escorre ao chão;
não que eu exista, de
fato, porque é crível
ser só real no olhar
de quem me olha
e que da luz recolhe
imagem de ilusão...
NOBRES PALAVRAS IX
Eu pago impostos para
a luz da Lua,
que me esclarece a
pele toda noite,
nessa argentina luz de
seu açoite (*)
criando a imagem que
no céu flutua
(*) Prateada (de
Argentum, em latim).
porque essa face que
se mostra nua
traz reflexo do Sol em
seu acoite, (*)
fugindo do calor em
seu pernoite
na lava clara com que
desenha a rua.
(*) Refúgio.
Vejo do rosto só o
reflexo que passa,
bem transitoriamente,
enquanto movo
o postigo, distraído e
sem paixão,
tão somente conservado
na vidraça,
bem suavemente, outro
fantasma novo
a me sugar mais um
pouco o coração.
NOBRES PALAVRAS X
Outros impostos
pagarei ao vento,
que os cobra depressa
e sem piedade;
tira células de mim, à
saciedade
e meu suor dissolve
num momento;
consigo leva meu direito
e meu alento,
suga energia e fustiga
sem bondade,
tem natureza insana de
impiedade,
na indiferença pelo
ímpio e pelo bento;
assim, quando me
encontro em pleno ar,
ele me cobra impostos,
sem me dar
um benefício qualquer
pelo que tira;
mas quando estou
trancado no verão,
o vento chega e adoça
minha prisão,
quando o ar quente sua
lufada gira...
NOBRES PALAVRAS XI
Mais ainda, pago
impostos a essas nobres
palavras que referi no
cabeçalho:
são retratos de mim
que assim espalho,
instantâneos de luz em
sonhos dobres, (*)
(*) Falsos, fingidos.
tornados ricos no
instante em que recobres
com teu olhar o meu
escrito falho...
Mas solidão me esbate
como um malho
e escorrem versos por
meus dedos pobres...
Mas estas simples
palavras que se vão
fiapos tiram do meu
coração:
pago em hemácias e
mais glóbulos brancos,
só me restando a
medula a funcionar,
o baço e amídalas
ainda a trabalhar,
depois de terem
resistido a tantos trancos...
NOBRES PALAVRAS XII
Nobres palavras,
pois... bela ironia
que eu desse em título
a este conteúdo...
Melhor fora o
cabeçalho deixar mudo
que intitular assim
minha fantasia...
Mas afinal, toda a
nobreza que se cria,
essas palavras com as
quais descrevo tudo,
não são mais que
fantasmas, não me iludo:
nobres palavras são
farrapos de honraria...
Essas coisas comuns,
de tão pequenas,
palavras moucas,
agitações serenas, (*)
nada que nutra um
coração aflito...
(*) Surdas, inúteis.
Melhor palavras dizer,
que não sinceras,
mas que conduzam a
materiais esferas
que impostos paguem ao
insincero grito!...
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