SRUTI (REVELAÇÃO)
Antigas Séries de William Lagos
A CEIA SEM CARDEAIS – Digitada a 22 out
2008
Minha casa tem duas vistas, para
o leste
e para o oeste:
às vezes chove a oeste e o sol o
leste reveste;
às vezes chove no leste e no
oeste o sol investe,
pois a casa tem duas vistas,
para oeste
e para o leste.
Minha casa tem paredes: para o
sul
é mais agreste:
para o sul é o cemitério,
para as vítimas da peste,
que muitos chamam de vida o
final tão inconteste,
que é o cemitério da vida,
quando a vida se desveste.
Minha casa tem paredes, que
também
dão para o norte,
para o centro da cidade, onde a
vida espanta a morte,
para os bancos e o comércio,
onde a morte espanta a sorte.
Quando atravesso as paredes,
eu caminho para o norte:
as costas dou à necrópole, numa
burla dessa morte,
que me aguarda lá no sul...
por melhor
que seja a sorte.
BULICHO
I – Digitados por minha irmã Berenice
a 22 out
2008 mas são anteriores
Nos
lugarejos antigos o bulicho
era o
lugar de encontro dos peões,
faziam
caderneta, em ilusões
que o
pagamento seria menos micho.
Os pilas
escorriam num esguicho
muito
fininho. Na safra é que os patrões
pagavam
uns pingados, produções
em que
passavam pra trás o pobre bicho.
E quando
iam se acertar com o bulicheiro
nunca
que a plata dava... No contrário,
dever
ficavam para mais de um ano...
Só tinha
uns que pagavam de changueiro,
nos
domingos e feriados, que o salário
nem
chegava para a canha do aragano...
BULICHO
II
O
bulicheiro fazia
as conta
em papel de embrulho:
para
tudo lhe servia,
até
mesmo sarrabulho!...
Quando o
mascate trazia
mercadoria
de entulho,
ele as
contas conferia,
para não
ficar no esbulho!...
Se o
mascate punha antolhos:
"Oigale
tchê, tu é uma peste!"
reclamando
feito um potro,
apontava
para os olhos:
"É
porque este é irmão deste
e primo
daquele outro!..."
BULICHO
III
O
bulicheiro e o mascate eram amigos
de longa
data... Pelas carreteiras
andava
um, portando garrucheiras,
passando
privações e mil perigos;
o outro
se quedava nos antigos
direitos
dessas vendas estancieiras,
erguidas
desde sempre pelas beiras
das
estradas vicinais, nesses ambigos
lugares
que ainda eram duas estâncias,
que
também a uma e outra pertenciam,
que
junto às lindes sempre havia passagens;
lá se
reuniam para as manigâncias
os peões
e os milicos que ainda havia
pelas
fronteiras, em longas fabulagens...
BULICHO
IV
No
seguimento do beiral da estrada
armava o
bulicheiro cancha de osso
(cancha
de bocha pro pessoal mais moço,
que
aprendera dos gringos a jogada).
Se o
fazendeiro era meio camarada,
deixava
ainda fazerem mais um troço:
alevantavam
o arame, abriam poço,
montavam
cancha reta e a cavalhada
juntavam
nos domingos pras carreira;
vinha
gente de longe, bem pilchada,
de
aranha e de charrete. Para a aguada
iam
cavalo e burro... Pela esteira
vinham
os cuscos e, numa cambulhada,
chinas
vestidas pra ocasião festeira...
BULICHO
V
Era em
feriado que corria a canha,
mas os
sitiantes preferiam fazer feiras
em cada
sábado. Traziam as chaleiras
que a
mulher do bulicheiro, sem ter manha
aquecia
no fogão. Compravam banha,
charque
e farelo, farinha e umas porqueiras:
Pindorama
pro cabelo das chineiras,
Amor
Gaúcho, que rapaz apanha...
E maior
percisão, agulha e linha,
ferramentas,
fazenda, até bombacha:
os
aba-largas pro calor do sol.
O que
quisessem no bulicho tinha,
espora,
poncho, guaiaca, bota, faixa,
cal e
cimento, tinta e até urinol!...
BULICHO
VI
E o que
teria sido do Rio Grande,
sem
esses bulicheiros dessombrados,
em seu
viver consoante Deus o mande,
por
estes vastos pampas descampados...?
Por onde
a tosca aflora, se cavados
por mais
de meio metro, no desbande
dos
rebanhos, nesses tempos invernados,
nas
canhadas vazias dessa lande...
Essa
gente tão simples e constante,
que dava
provisões aos maragatos,
provisionava
também os pica-paus,
buscando
a paz que seu comércio adiante,
mas sem
que pobres andassem sem sapatos,
nem lhes
falhasse a boia em dias maus!...
BULICHO
VII
Pois era
assim, na vastidão do pago,
esse
entreposto de provimentação,
na venda
da espingarda até o colchão,
pra
cuidar do vizinho em cada estrago.
O
bulicheiro não era nenhum mago,
mas não
ficava rico em sua função:
bancava
o duro, porém bom coração
demonstrava
ao andejo em dia aziago.
Hoje
rarearam os bulichos de campanha:
vem à
cidade o peão, sempre que ganha,
do
bulicheiro até esqueceu o nome,
que suas
compras anotava em caderneta
mas a
missão cumpria mais secreta
de não
deixar o povo passar fome!...
MOIRÕES
E CERCAS I – 23 out 2008
Naquele
tempo se faziam aramados
só
manualmente. Era o alambrador,
chamado
em espanholismo, sem pudor,
embora
os castelhanos contemplados
fossem
de esguelha, aqui dos nossos lados.
Afinal,
houvera lutas, tanto ardor,
tanto
sangue derramado com calor,
pelas
fronteiras sem lindes demarcados.
Na
verdade, os antigos desprezavam
aquela
profissão. E nem queriam
ver as
coxilhas assim entrecortadas.
Talvez
fosse por isso que o chamavam
por esse
nome ajeno, em que diziam
ver as
fronteiras de antanho desviadas.
MOIRÕES
E CERCAS II
A cada
tantos metros enterrava-se o moirão,
de
corunilha, se possível, que durava
muito
mais tempo que os outros e ficava
sem
nunca apodrecer, firme no chão...
Nos
intervalos, iam valas de armação,
cortadas
lá no mato, alguma se entortava,
meio
triste no alambrado, porém segurava
esticados
os arames, como era sua função.
O nome
dessas varas eram tramas e serviam
mais
para a economia dos moirões:
um
moirão, quatro tramas; ou então, cinco.
E nos
cantos dos potreiros, lá faziam,
pra
maior resistência de armações,
um
arremate, firmado com afinco.
MOIRÕES
E CERCAS III
Hoje em
dia, essas tramas são quadradas,
feitas
de fábrica ou em carpintaria;
no tempo
antigo, o arame se prendia
ao redor
delas, em roscas apertadas!
O
alambrador, com ferramentas apropriadas,
enroscava
o arame, em serventia,
completava
o potreiro, ao fim do dia
e já
partia para cercas afastadas...
Nos
moirões empregava arco de pua;
se a
madeira rachava, era um sargento,
firmando
a cola, que fazia de tuna.
Ele
plantava assim floresta nua,
que, às
vezes, rebrotava por momento,
especialmente
se era pau de gaviúna...
MOIRÕES
E CERCAS IV
Em pouco
tempo, já o arame era farpado,
porque o
gado reúno, enfurecido,
que das
quebradas fora removido,
rebentava,
sem pena, esse alambrado...
Mas
agora a gente via, pendurado
em cada
farpa, um chumaço retorcido,
de lã ou
de pelego; e, espavorido,
o bicho
se afastava, contrariado.
Isso foi
ruim até para os piás,
que
gostam de passar entre os arames,
para
catar biri, butiá, pitanga...
e se
lastimam agora lá por trás,
a cada
vez que cruzam os alambres
e lavam
os arranhões na água da sanga!...
MOIRÕES
E CERCAS V
Nas
esquinas do potreiro, atravessado
ia um
arame retorcido e torto,
bem
firme atado ao derredor de um morto,
que era
um pedaço de pau bem enterrado.
Um dia,
um castelhano desbocado
se meteu
a discutir com seu patrão;
e nem
foi pela plata; que a razão
foi o
estancieiro pôr defeito no alambrado.
Disse o
que não devia: e o fazendeiro
sacou da
adaga, e sem qualquer temor
de
milico ou de polícia, porque hambre
tinha a
lâmina de sangue, foi certeiro.
E como
resultado, o alambrador
serviu
de morto para o próprio alambre!...
zica
MOIRÕES
E CERCAS VI
Hoje tem
máquina, como para tudo:
até
mesmo a divisa é eletrificada
e a
tropilha fica assim mais acanhada
de se
encostar no arame assim desnudo.
Mas o
motivo é outro, não me iludo:
o
abigeatário tem a ousadia podada;
muito
raro a energia é desligada,
que a
instalação é feita com estudo...
E ao ver
essas fileiras de soldados,
em marcha
reta, à beira das estradas,
à guarda
dos asfaltos coxilheiros,
fico a
cismar que são antepassados,
transformados
em mil almas penadas,
a
conservar o gado nos potreiros!...
TRANSMOGRIFICAÇÃO
I (2003)
Com frequência,
eu pressinto que passei
de um mundo
para outro: é tudo igual,
mas
diferente do mundo natural
e
inabstrato em que antes habitei:
é como
se este mundo em que morei,
durante
o sono, de forma surreal,
tivesse
sido transferido, qual
quando
chave ou botão eu apertei,
na
onírica região dos falsos zelos;
ou se
cruzasse, andando pelas ruas,
qualquer
portal de vezo permanente,
em que
se transmutassem os desvelos
de
tantas coisas que contemplo... nuas:
que é
tudo igual -- e tudo diferente!
TRANSMOGRIFICAÇÃO
II
Vejo
então que em meu corpo algo mudou,
sinto
que emagreci ou que engordei
da noite
para o dia; ou que acordei
impante
de energia -- ou se esgotou
todo o
vigor que tinha ao anoitecer;
às
vezes, a impressão é bem mais vaga,
eu sou
eu mesmo, é o mundo que se alaga
em manto
cinza de novo vir-a-ser,
que me
enche de espanto e me fascina:
como se
tudo se encaixasse de repente
e
antigos sonhos viessem me abraçar...
noutro
pendor o pêndulo se inclina
e tudo
se desmancha indiferente,
em novo
dia que tenho de enfrentar...
TRANSMOGRIFICAÇÃO
III
Ou ainda
no espelho enxergo o rosto
em que
pequena ruga se apresenta,
ou
cabelos branquearam, numa lenta
degradação
contrária ao velho gosto;
ou
opostamente, vejo o lisor reposto,
numa
surpresa que a vaidade de contenta;
cabelos
crescem na tonsura benta,
retorna
à barba a antiga cor de mosto;
ou quem
sabe, coloração de estranho,
mostrando
à pele nuance de esverdeado
ou
contra a luz, um tom amarelado
ou ainda
alusão a ferro ou estanho
nesses
ossos aparentes do zigoma,
em que
algo diminui ou então se soma...
TRANSMOGRIFICAÇÃO
IV
Será
possível que não passe de impressão
qualquer
percepção de tal mudança?
Que já
esqueci da solitária trança,
hoje nos
cantos do bigode outra feição?
Houve de
fato qualquer transformação
ou é
somente a mente que se cansa
do rosto
antigo e assim assume a dança,
fisionomia
a indicar noutra visão?
Como
saber, quando a fotografia
sempre é
diversa do que revela o espelho,
por
efeito de luz ou de emoção?
Ou que a
surpresa que em meus olhos via
é
contração dolorosa ante algum relho,
lento
azorrague da transmogrificação?
BASSORA-BASRA
I (2003)
Contemplo
a noite em áspero veludo
no
terciopelo fino dos solares:
proclamo
da almenara meus cantares
e ao ver
os almocreves, não me iludo.
A torre
de atalaia é meu escudo,
broquel
fendido em gestos de alamares,
brandenburgos
puídos de avatares,
solitário
prazer de aguazil mudo,
a
trepidar no alcázar da quimera,
de heroicos
deveres quilombolas,
alhambra
morta no furtar dos anos...
Cada
estrela, uma vulcânica cratera,
de vinho
e malva, cerâmicas e estolas,
nas
faces ancestrais dos muçulmanos...
BASSORA-BASRA
II
Nessas
histórias de Sindbá lê-se Bassora,
próspero
porto de que saía em viagem:
por
cinco vezes pelo Índico em coragem
firme
afrontando sua fúria constritora!
De lá
partia em cada nau conquistadora,
enfrentando
canibais, Roca e voragem,
seus
marinheiros a perder nessa paragem,
pela
borrasca a mastigar devoradora!
Mas não
se achava no original esse Sindbá,
acrescentado
por um tradutor francês,
sobre a
saga de Ulisses decalcado...
Como
tampouco Aladim se encontra lá,
garimpado
de papel de arroz chinês,
por mais
que seja entre nós tanto lembrado!
BASSORA-BASRA
III
Robert
Burton, seu primeiro tradutor,
chamou-a
de árabe, de fato era iraniana,
em farsi
redigida... ou mesmo indiana
a maior
parte desse ideário sedutor...
Vocabulário
de magia introdutor,
talvez
mais do que as lendas com que espana
o
imaginário da hagiologia romana, (*)
nesse
arabismo de romance encantador,
(*) Conjunto das histórias de santos cristãos.
que
desde a infância me deixou influenciado,
junto
comigo nem sei a quantos mais:
talvez
por isso exista em mim tanta riqueza!
Caminho
abrindo para as lendas do passado,
repassadas
desde tempos perenais,
por
europeus em seus invernos de pobreza...
GERMÂNICOS
I (2003)
Os
primeiros colonos nos chegavam
na época
em que plantaram os trigais;
quase
todos protestantes, escutavam
de meu
pai os sermões episcopais...
A
intolerância das estâncias enfrentavam,
pois não
queriam que viessem mais;
que era
terra de pastagens, afirmavam
e não de
trigo: quando muito milharais.
Porém
foram ficando, ainda que o trigo
hoje em
dia não se plante mais aqui:
os
gafanhotos ganharam, na verdade,
mas seus
netos aquerenciaram neste abrigo:
à noite
estudam, trabalham na cidade:
são
outras vozes que, ao passar, ouvi.
GERMÂNICOS
II
Ai, que
meus mortos voltam! Lembro agora
Carlos
Kluwe, que renovou Bagé:
Criou a
Fazenda Experimental: hoje é
da
Agro-Vet o campus avançado.
Carlitos
e Olga Oberst, nesta hora
lembro
também. Andavam sempre a pé,
brincavam
sempre, em privações até,
aos noventa
ainda vivendo lado a lado...
Lembro
Ruy Beckman, que foi grande inventor
e ficou
desconhecido. Poucos pensam
nas
coisas feitas por um homem do interior.
Wilhelm
Horvath, austríaco senhor,
cujas
cerâmicas e tapeçarias se adensam,
mais
tantos outros, relembrados com calor.
GERMÂNICOS
III
Antigamente,
aqui só dava pelo-duro:
portugueses
e espanhóis, de índio só pitada,
um
eventual pé na cozinha, um quase nada,
pele clara
ou requeimada, pelo escuro.
Sempre
havia açorianos, meio a furo,
ou
rostos tramontinos, a vista mais gateada,
nos
cabelos mais claros, cor melada,
assim
chamavam ao tal nortista puro.
E por
mais que hoje dancem o pezinho
ou o
maçanico os netos de imigrantes,
os seus
avós nem sequer tinham chegado:
se
aprochegaram só degavarinho,
uns se
casaram, outros comerciantes,
depois
que o norte já ficou muito povoado.
GERMÂNICOS
IV
Esta
cidade, como todas, microcosmos
forma do
mundo. Após o quebra-quebra
em que
até ter um rádio dava zebra,
os
alemães escorreram para cá.
Os
quartéis definiam o macrocosmos:
vinham
da serra ou do norte deste estado;
o
recruta namorava e então, casado,
engajava
na tropa, achava emprego ou já
iniciava
o seu comércio. Plantação
poucos
deles queriam, toda a vida,
desde
piás se acordavam com a enxada.
Nesta
cidade nova, profissão
qualquer
servia, exceto aquela lida...
E
depressa se mesclaram na invernada.
GERMÂNICOS
V
Depois,
fundou-se aqui universidade,
que nas
colônias ainda não havia:
e os
jovens alemães, piá e guria,
vinham
todos a Bagé para estudar...
Outros
mais velhos, escolheram a cidade
para
serem professores; serventia
encontraram
por aqui, em outra via,
se
aquerenciaram, vieram pra ficar.
Mais
tarde foi o arroz, porque os trigais
nunca
duraram muito, os gafanhotos
vieram
da Argentina; o clima e a terra
serviam
bem melhor para arrozais.
Fizeram
as barragens, mais devotos
de
produzir comida que ir à guerra...
GERMÂNICOS
VI
Os
"alemães", naturalmente, eram
de
muitos povos, suecos, poloneses,
austríacos
e tchecos, holandeses,
até da
Rússia houve alguns que nos vieram.
Os
italianos também aqui trouxeram
cabelos
claros; judeus e finlandeses;
havia
louros até sírio-libaneses,
que
chamavam de turcos; mas fizeram
exceção
para os cabelos de outra cor.
E houve
padres que deixaram da batina
e
freiras que fugiram dos conventos,
atraídos
por dinheiro ou por amor.
Sua
progênie partilha a mesma sina:
todos
gaúchos em alma e pensamento.
GERMÂNICOS
VII
Agora,
já se veem por toda parte:
milicos
e estudantes, professores,
advogados,
dentistas ou doutores,
pobres
ou ricos, como Deus os farte.
A
mistura se fez mais por casamento:
cabelos
pretos com nomes alemães;
cabelos
claros, iguais aos de suas mães,
mas com
nomes pelo-duro em documento.
Passou o
tempo do preconceito mouro
que
sofriam, de espanhol e português,
que a
maioria demonstrou não ter razão,
pois
qualquer um que tem cabelo louro,
seja
italiano, polaco ou libanês,
passou a
ser chamado de "alemão"!...
BORRASCA
I (2003)
Dizem
que o vento é triste, mas não sinto
nem na
brisa suave ou na rajada
violenta
qualquer coisa que chamada
possa
ser de tristeza; o que pressinto
nesse
vento é uma fúria assustadora,
por não
poder ser mais que movimento:
não
raiva contra nós, mas sentimento
que não
materializa a sedutora
farsa
inútil por tornar-se material,
pois não
passa de impulso natural,
transmitido
às partículas do ar
e nem
pode fazer-se espiritual,
pois as
moléculas são poeira de metal
impulsionadas
nos lábios do luar.
BORRASCA
II
Mas o
vento me penetra nos ouvidos,
a
sussurrar, ao som de sepulturas,
de
grotas verdes ou do ocre das agruras
as mil
histórias de meus versos incontidos.
Durante
a noite, pelas frestas inseridos,
dedos de
vento a sibilar torturas
de
velhos padres a lamentar tonsuras,
dos
maragatos por coxilhas perseguidos...
E até
parece ter um corpo vegetal
nesse
perfume que me entra nas narinas,
odor
agreste de espinilho e corunilha
ou então
vibrando, numa fúria de animal
e quase
enxergo suas garras assassinas
nesses
mugidos que o escuro me perfilha!
BORRASCA
III
O vento
brada por saber-se apenas ar,
sem
conseguir a carne viva me atingir;
somente
o uivo que perturba-me o dormir,
mil
pesadelos conseguindo despertar!
Então
desperto, qual no leito a adejar,
pelos
postigos seus fantasmas a rugir;
nada
consegue, de fato, me ferir,
mas se
pudesse as janelas me arrancar?
Como é
possível que não tenha vida,
primeva
força de total destruição,
trazendo
a freio o raio, seu irmão?
Tanta
obra dos humanos destruída,
propelida
pela força de sua inveja,
vasta
borrasca que meu telhado beija!
CORIZA
DIVINA I (2003)
Enquanto
eu erro, eu vivo, neste épico
despojar
de mim mesmo na aventura;
busco o
futuro enquanto a vida dura,
suborno
a morte apenas, em estético
acesso
de abandono a todo o eclético,
nesse
epiléptico ardil de compostura;
arrasto
o rosto até a completa desfigura.
no muco
e linfa do coágulo do ético;
da lua
as gotas me escorrem pela espinha,
do sol
os raios estupram-me o umbigo
e o
vento me atravessa como espuma,
tal como
o amor, que só às vezes se avizinha,
escorre
em sangue no crisol de tal perigo,
do nariz
de uma deusa em meio à bruma.
CORIZA
DIVINA II
Sempre
haverá uma rede à minha espera:
um alçapé
predisposto à minha tocaia,
a
sentinela já alanceada na atalaia,
por
esculcas do sonho e da quimera.
Uma
armadilha haverá que reverbera
nos
olhos verdes da serena vaia,
égua no
cio que mal contém a baia,
e em seus
relinchos lascivos deblatera...
Um fosso
indisfarçado em que me lanço,
no
desejo febril de outra aventura,
que só
transcorre da mente no escaninho.
Trepidante
de ardor, em sonho manso,
no
ascético sabor dessa amargura,
mal contida
no azedume do azevinho...
CORIZA
DIVINA III
No
momento em que na trilha o pé acerto,
finalidade
eu aceito de afinais,
que para
errar não terei ocasiões mais:
melhor
manter-me do erro sempre perto!
Que a
cada vez em adrenalina alerto
o corpo
inteiro revolvendo no ademais,
repetições
a prometer para o jamais
de não
pisar doravante em tal deserto!
Mas quem
diria? Se mais erros não cometo
que
triste a vida se faz de monotonia!
Mais
repulsiva se faz que a própria morte!
E no
vagão de meus erros me aboleto,
largo o
horizonte que à minha frente via.
sem
acertos a aguilhoar-me à boa sorte!
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