domingo, 13 de março de 2016





SRUTI (REVELAÇÃO)
Antigas Séries de William Lagos

A CEIA SEM CARDEAIS – Digitada a 22 out 2008

Minha casa tem duas vistas, para o leste
e para o oeste:
às vezes chove a oeste e o sol o leste reveste;
às vezes chove no leste e no oeste o sol investe,
pois a casa tem duas vistas, para oeste
e para o leste.

Minha casa tem paredes: para o sul
é mais agreste:
para o sul é o cemitério,
para as vítimas da peste,
que muitos chamam de vida o final tão inconteste,
que é o cemitério da vida, quando a vida se desveste.

Minha casa tem paredes, que também
dão para o norte,
para o centro da cidade, onde a vida espanta a morte,
para os bancos e o comércio, onde a morte espanta a sorte.

Quando atravesso as paredes,
eu caminho para o norte:
as costas dou à necrópole, numa burla dessa morte,
que me aguarda lá no sul...
por melhor
que seja a sorte.

BULICHO I – Digitados por minha irmã Berenice
a 22 out 2008 mas são anteriores

Nos lugarejos antigos o bulicho
era o lugar de encontro dos peões,
faziam caderneta, em ilusões
que o pagamento seria menos micho.

Os pilas escorriam num esguicho
muito fininho.  Na safra é que os patrões
pagavam uns pingados, produções
em que passavam pra trás o pobre bicho.

E quando iam se acertar com o bulicheiro
nunca que a plata dava...  No contrário,
dever ficavam para mais de um ano...

Só tinha uns que pagavam de changueiro,
nos domingos e feriados, que o salário
nem chegava para a canha do aragano...

BULICHO II

O bulicheiro fazia
as conta em papel de embrulho:
para tudo lhe servia,
até mesmo sarrabulho!...

Quando o mascate trazia
mercadoria de entulho,
ele as contas conferia,
para não ficar no esbulho!...

Se o mascate punha antolhos:
"Oigale tchê, tu é uma peste!"
reclamando feito um potro,

apontava para os olhos:
"É porque este é irmão deste
e primo daquele outro!..."

BULICHO III

O bulicheiro e o mascate eram amigos
de longa data...   Pelas carreteiras
andava um, portando garrucheiras,
passando privações e mil perigos;

o outro se quedava nos antigos
direitos dessas vendas estancieiras,
erguidas desde sempre pelas beiras
das estradas vicinais, nesses ambigos

lugares que ainda eram duas estâncias,
que também a uma e outra pertenciam,
que junto às lindes sempre havia passagens;

lá se reuniam para as manigâncias
os peões e os milicos que ainda havia
pelas fronteiras, em longas fabulagens...

BULICHO IV

No seguimento do beiral da estrada
armava o bulicheiro cancha de osso
(cancha de bocha pro pessoal mais moço,
que aprendera dos gringos a jogada).

Se o fazendeiro era meio camarada,
deixava ainda fazerem mais um troço:
alevantavam o arame, abriam poço,
montavam cancha reta e a cavalhada

juntavam nos domingos pras carreira;
vinha gente de longe, bem pilchada,
de aranha e de charrete.  Para a aguada

iam cavalo e burro... Pela esteira
vinham os cuscos e, numa cambulhada,
chinas vestidas pra ocasião festeira... 

BULICHO V

Era em feriado que corria a canha,
mas os sitiantes preferiam fazer feiras
em cada sábado.  Traziam as chaleiras
que a mulher do bulicheiro, sem ter manha

aquecia no fogão.   Compravam banha,
charque e farelo, farinha e umas porqueiras:
Pindorama pro cabelo das chineiras,
Amor Gaúcho, que rapaz apanha...

E maior percisão, agulha e linha,
ferramentas, fazenda, até bombacha:
os aba-largas pro calor do sol.

O que quisessem no bulicho tinha,
espora, poncho, guaiaca, bota, faixa,
cal e cimento, tinta e até urinol!...

BULICHO VI

E o que teria sido do Rio Grande,
sem esses bulicheiros dessombrados,
em seu viver consoante Deus o mande,
por estes vastos pampas descampados...?

Por onde a tosca aflora, se cavados
por mais de meio metro, no desbande
dos rebanhos, nesses tempos invernados,
nas canhadas vazias dessa lande...

Essa gente tão simples e constante,
que dava provisões aos maragatos,
provisionava também os pica-paus,

buscando a paz que seu comércio adiante,
mas sem que pobres andassem sem sapatos,
nem lhes falhasse a boia em dias maus!...

BULICHO VII

Pois era assim, na vastidão do pago,
esse entreposto de provimentação,
na venda da espingarda até o colchão,
pra cuidar do vizinho em cada estrago.

O bulicheiro não era nenhum mago,
mas não ficava rico em sua função:
bancava o duro, porém bom coração
demonstrava ao andejo em dia aziago.

Hoje rarearam os bulichos de campanha:
vem à cidade o peão, sempre que ganha,
do bulicheiro até esqueceu o nome,

que suas compras anotava em caderneta
mas a missão cumpria mais secreta
de não deixar o povo passar fome!...

MOIRÕES E CERCAS I – 23 out 2008

Naquele tempo se faziam aramados
só manualmente.  Era o alambrador,
chamado em espanholismo, sem pudor,
embora os castelhanos contemplados

fossem de esguelha, aqui dos nossos lados.
Afinal, houvera lutas, tanto ardor,
tanto sangue derramado com calor,
pelas fronteiras sem lindes demarcados.

Na verdade, os antigos desprezavam
aquela profissão.  E nem queriam
ver as coxilhas assim entrecortadas.

Talvez fosse por isso que o chamavam
por esse nome ajeno, em que diziam
ver as fronteiras de antanho desviadas.

MOIRÕES E CERCAS II

A cada tantos metros enterrava-se o moirão,
de corunilha, se possível, que durava
muito mais tempo que os outros e ficava
sem nunca apodrecer, firme no chão...

Nos intervalos, iam valas de armação,
cortadas lá no mato, alguma se entortava,
meio triste no alambrado, porém segurava
esticados os arames, como era sua função.

O nome dessas varas eram tramas e serviam
mais para a economia dos moirões:
um moirão, quatro tramas; ou então, cinco.

E nos cantos dos potreiros, lá faziam,
pra maior resistência de armações,
um arremate, firmado com afinco.

MOIRÕES E CERCAS III

Hoje em dia, essas tramas são quadradas,
feitas de fábrica ou em carpintaria;
no tempo antigo, o arame se prendia
ao redor delas, em roscas apertadas!

O alambrador, com ferramentas apropriadas,
enroscava o arame, em serventia,
completava o potreiro, ao fim do dia
e já partia para cercas afastadas...

Nos moirões empregava arco de pua;
se a madeira rachava, era um sargento,
firmando a cola, que fazia de tuna.

Ele plantava assim floresta nua,
que, às vezes, rebrotava por momento,
especialmente se era pau de gaviúna...

MOIRÕES E CERCAS IV

Em pouco tempo, já o arame era farpado,
porque o gado reúno, enfurecido,
que das quebradas fora removido,
rebentava, sem pena, esse alambrado...

Mas agora a gente via, pendurado
em cada farpa, um chumaço retorcido,
de lã ou de pelego; e, espavorido,
o bicho se afastava, contrariado.

Isso foi ruim até para os piás,
que gostam de passar entre os arames,
para catar biri, butiá, pitanga...

e se lastimam agora lá por trás,
a cada vez que cruzam os alambres
e lavam os arranhões na água da sanga!...

MOIRÕES E CERCAS V

Nas esquinas do potreiro, atravessado
ia um arame retorcido e torto,
bem firme atado ao derredor de um morto,
que era um pedaço de pau bem enterrado.

Um dia, um castelhano desbocado
se meteu a discutir com seu patrão;
e nem foi pela plata; que a razão
foi o estancieiro pôr defeito no alambrado.

Disse o que não devia: e o fazendeiro
sacou da adaga, e sem qualquer temor
de milico ou de polícia, porque hambre

tinha a lâmina de sangue, foi certeiro.
E como resultado, o alambrador
serviu de morto para o próprio alambre!...
 zica
MOIRÕES E CERCAS VI

Hoje tem máquina, como para tudo:
até mesmo a divisa é eletrificada
e a tropilha fica assim mais acanhada
de se encostar no arame assim desnudo.

Mas o motivo é outro, não me iludo:
o abigeatário tem a ousadia podada;
muito raro a energia é desligada,
que a instalação é feita com estudo...

E ao ver essas fileiras de soldados,
em marcha reta, à beira das estradas,
à guarda dos asfaltos coxilheiros,

fico a cismar que são antepassados,
transformados em mil almas penadas,
a conservar o gado nos potreiros!...

TRANSMOGRIFICAÇÃO I (2003)

Com frequência, eu pressinto que passei
de um mundo para outro: é tudo igual,
mas diferente do mundo natural
e inabstrato em que antes habitei:

é como se este mundo em que morei,
durante o sono, de forma surreal,
tivesse sido transferido, qual
quando chave ou botão eu apertei,

na onírica região dos falsos zelos;
ou se cruzasse, andando pelas ruas,
qualquer portal de vezo permanente,

em que se transmutassem os desvelos
de tantas coisas que contemplo... nuas:
que é tudo igual -- e tudo diferente!

TRANSMOGRIFICAÇÃO II

Vejo então que em meu corpo algo mudou,
sinto que emagreci ou que engordei
da noite para o dia; ou que acordei
impante de energia -- ou se esgotou

todo o vigor que tinha ao anoitecer;
às vezes, a impressão é bem mais vaga,
eu sou eu mesmo, é o mundo que se alaga
em manto cinza de novo vir-a-ser,

que me enche de espanto e me fascina:
como se tudo se encaixasse de repente
e antigos sonhos viessem me abraçar...

noutro pendor o pêndulo se inclina
e tudo se desmancha indiferente,
em novo dia que tenho de enfrentar...

TRANSMOGRIFICAÇÃO III

Ou ainda no espelho enxergo o rosto
em que pequena ruga se apresenta,
ou cabelos branquearam, numa lenta
degradação contrária ao velho gosto;

ou opostamente, vejo o lisor reposto,
numa surpresa que a vaidade de contenta;
cabelos crescem na tonsura benta,
retorna à barba a antiga cor de mosto;

ou quem sabe, coloração de estranho,
mostrando à pele nuance de esverdeado
ou contra a luz, um tom amarelado

ou ainda alusão a ferro ou estanho
nesses ossos aparentes do zigoma,
em que algo diminui ou então se soma...

TRANSMOGRIFICAÇÃO IV

Será possível que não passe de impressão
qualquer percepção de tal mudança?
Que já esqueci da solitária trança,
hoje nos cantos do bigode outra feição?

Houve de fato qualquer transformação
ou é somente a mente que se cansa
do rosto antigo e assim assume a dança,
fisionomia a indicar noutra visão?

Como saber, quando a fotografia
sempre é diversa do que revela o espelho,
por efeito de luz ou de emoção?

Ou que a surpresa que em meus olhos via
é contração dolorosa ante algum relho,
lento azorrague da transmogrificação?

BASSORA-BASRA I (2003)

Contemplo a noite em áspero veludo
no terciopelo fino dos solares:
proclamo da almenara meus cantares
e ao ver os almocreves, não me iludo.

A torre de atalaia é meu escudo,
broquel fendido em gestos de alamares,
brandenburgos puídos de avatares,
solitário prazer de aguazil mudo,

a trepidar no alcázar da quimera,
de heroicos deveres quilombolas,
alhambra morta no furtar dos anos...

Cada estrela, uma vulcânica cratera,
de vinho e malva, cerâmicas e estolas,
nas faces ancestrais dos muçulmanos...

BASSORA-BASRA II

Nessas histórias de Sindbá lê-se Bassora,
próspero porto de que saía em viagem:
por cinco vezes pelo Índico em coragem
firme afrontando sua fúria constritora!

De lá partia em cada nau conquistadora,
enfrentando canibais, Roca e voragem,
seus marinheiros a perder nessa paragem,
pela borrasca a mastigar devoradora!

Mas não se achava no original esse Sindbá,
acrescentado por um tradutor francês,
sobre a saga de Ulisses decalcado...

Como tampouco Aladim se encontra lá,
garimpado de papel de arroz chinês,
por mais que seja entre nós tanto lembrado!

BASSORA-BASRA III

Robert Burton, seu primeiro tradutor,
chamou-a de árabe, de fato era iraniana,
em farsi redigida... ou mesmo indiana
a maior parte desse ideário sedutor...

Vocabulário de magia introdutor,
talvez mais do que as lendas com que espana
o imaginário da hagiologia romana, (*)
nesse arabismo de romance encantador,
(*) Conjunto das histórias de santos cristãos.

que desde a infância me deixou influenciado,
junto comigo nem sei a quantos mais:
talvez por isso exista em mim tanta riqueza!

Caminho abrindo para as lendas do passado,
repassadas desde tempos perenais,
por europeus em seus invernos de pobreza...

GERMÂNICOS I (2003)

Os primeiros colonos nos chegavam
na época em que plantaram os trigais;
quase todos protestantes, escutavam
de meu pai os sermões episcopais...

A intolerância das estâncias enfrentavam,
pois não queriam que viessem mais;
que era terra de pastagens, afirmavam
e não de trigo: quando muito milharais.

Porém foram ficando, ainda que o trigo
hoje em dia não se plante mais aqui:
os gafanhotos ganharam, na verdade,

mas seus netos aquerenciaram neste abrigo:
à noite estudam, trabalham na cidade:
são outras vozes que, ao passar, ouvi.

GERMÂNICOS II

Ai, que meus mortos voltam!  Lembro agora
Carlos Kluwe, que renovou Bagé:
Criou a Fazenda Experimental: hoje é
da Agro-Vet o campus avançado.

Carlitos e Olga Oberst, nesta hora
lembro também.  Andavam sempre a pé,
brincavam sempre, em privações até,
aos noventa ainda vivendo lado a lado...

Lembro Ruy Beckman, que foi grande inventor
e ficou desconhecido.  Poucos pensam
nas coisas feitas por um homem do interior.

Wilhelm Horvath, austríaco senhor,
cujas cerâmicas e tapeçarias se adensam,
mais tantos outros, relembrados com calor.

GERMÂNICOS III

Antigamente, aqui só dava pelo-duro:
portugueses e espanhóis, de índio só pitada,
um eventual pé na cozinha, um quase nada,
pele clara ou requeimada, pelo escuro.

Sempre havia açorianos, meio a furo,
ou rostos tramontinos, a vista mais gateada,
nos cabelos mais claros, cor melada,
assim chamavam ao tal nortista puro.

E por mais que hoje dancem o pezinho
ou o maçanico os netos de imigrantes,
os seus avós nem sequer tinham chegado:

se aprochegaram só degavarinho,
uns se casaram, outros comerciantes,
depois que o norte já ficou muito povoado.

GERMÂNICOS IV

Esta cidade, como todas, microcosmos
forma do mundo.  Após o quebra-quebra
em que até ter um rádio dava zebra,
os alemães escorreram para cá.

Os quartéis definiam o macrocosmos:
vinham da serra ou do norte deste estado;
o recruta namorava e então, casado,
engajava na tropa, achava emprego ou já

iniciava o seu comércio.  Plantação
poucos deles queriam, toda a vida,
desde piás se acordavam com a enxada.

Nesta cidade nova, profissão
qualquer servia, exceto aquela lida...
E depressa se mesclaram na invernada.

GERMÂNICOS V

Depois, fundou-se aqui universidade,
que nas colônias ainda não havia:
e os jovens alemães, piá e guria,
vinham todos a Bagé para estudar...

Outros mais velhos, escolheram a cidade
para serem professores; serventia
encontraram por aqui, em outra via,
se aquerenciaram, vieram pra ficar.

Mais tarde foi o arroz, porque os trigais
nunca duraram muito, os gafanhotos
vieram da Argentina; o clima e a terra

serviam bem melhor para arrozais.
Fizeram as barragens, mais devotos
de produzir comida que ir à guerra...

GERMÂNICOS VI

Os "alemães", naturalmente, eram
de muitos povos, suecos, poloneses,
austríacos e tchecos, holandeses,
até da Rússia houve alguns que nos vieram.

Os italianos também aqui trouxeram
cabelos claros; judeus e finlandeses;
havia louros até sírio-libaneses,
que chamavam de turcos; mas fizeram

exceção para os cabelos de outra cor.
E houve padres que deixaram da batina
e freiras que fugiram dos conventos,

atraídos por dinheiro ou por amor.
Sua progênie partilha a mesma sina:
todos gaúchos em alma e pensamento.

GERMÂNICOS VII

Agora, já se veem por toda parte:
milicos e estudantes, professores,
advogados, dentistas ou doutores,
pobres ou ricos, como Deus os farte.

A mistura se fez mais por casamento:
cabelos pretos com nomes alemães;
cabelos claros, iguais aos de suas mães,
mas com nomes pelo-duro em documento.

Passou o tempo do preconceito mouro
que sofriam, de espanhol e português,
que a maioria demonstrou não ter razão,

pois qualquer um que tem cabelo louro,
seja italiano, polaco ou libanês,
passou a ser chamado de "alemão"!...

BORRASCA I (2003)

Dizem que o vento é triste, mas não sinto
nem na brisa suave ou na rajada
violenta qualquer coisa que chamada
possa ser de tristeza; o que pressinto

nesse vento é uma fúria assustadora,
por não poder ser mais que movimento:
não raiva contra nós, mas sentimento
que não materializa a sedutora

farsa inútil por tornar-se material,
pois não passa de impulso natural,
transmitido às partículas do ar

e nem pode fazer-se espiritual,
pois as moléculas são poeira de metal
impulsionadas nos lábios do luar.

BORRASCA II

Mas o vento me penetra nos ouvidos,
a sussurrar, ao som de sepulturas,
de grotas verdes ou do ocre das agruras
as mil histórias de meus versos incontidos.

Durante a noite, pelas frestas inseridos,
dedos de vento a sibilar torturas
de velhos padres a lamentar tonsuras,
dos maragatos por coxilhas perseguidos...

E até parece ter um corpo vegetal
nesse perfume que me entra nas narinas,
odor agreste de espinilho e corunilha

ou então vibrando, numa fúria de animal
e quase enxergo suas garras assassinas
nesses mugidos que o escuro me perfilha!

BORRASCA III

O vento brada por saber-se apenas ar,
sem conseguir a carne viva me atingir;
somente o uivo que perturba-me o dormir,
mil pesadelos conseguindo despertar!

Então desperto, qual no leito a adejar,
pelos postigos seus fantasmas a rugir;
nada consegue, de fato, me ferir,
mas se pudesse as janelas me arrancar?

Como é possível que não tenha vida,
primeva força de total destruição,
trazendo a freio o raio, seu irmão?

Tanta obra dos humanos destruída,
propelida pela força de sua inveja,
vasta borrasca que meu telhado beija!

CORIZA DIVINA I (2003)

Enquanto eu erro, eu vivo, neste épico
despojar de mim mesmo na aventura;
busco o futuro enquanto a vida dura,
suborno a morte apenas, em estético

acesso de abandono a todo o eclético,
nesse epiléptico ardil de compostura;
arrasto o rosto até a completa desfigura.
no muco e linfa do coágulo do ético;

da lua as gotas me escorrem pela espinha,
do sol os raios estupram-me o umbigo
e o vento me atravessa como espuma,

tal como o amor, que só às vezes se avizinha,
escorre em sangue no crisol de tal perigo,
do nariz de uma deusa em meio à bruma.

CORIZA DIVINA II

Sempre haverá uma rede à minha espera:
um alçapé predisposto à minha tocaia,
a sentinela já alanceada na atalaia,
por esculcas do sonho e da quimera.

Uma armadilha haverá que reverbera
nos olhos verdes da serena vaia,
égua no cio que mal contém a baia,
e em seus relinchos lascivos deblatera...

Um fosso indisfarçado em que me lanço,
no desejo febril de outra aventura,
que só transcorre da mente no escaninho.

Trepidante de ardor, em sonho manso,
no ascético sabor dessa amargura,
mal contida no azedume do azevinho...

CORIZA DIVINA III

No momento em que na trilha o pé acerto,
finalidade eu aceito de afinais,
que para errar não terei ocasiões mais:
melhor manter-me do erro sempre perto!

Que a cada vez em adrenalina alerto
o corpo inteiro revolvendo no ademais,
repetições a prometer para o jamais
de não pisar doravante em tal deserto!

Mas quem diria?  Se mais erros não cometo
que triste a vida se faz de monotonia!
Mais repulsiva se faz que a própria morte!

E no vagão de meus erros me aboleto,
largo o horizonte que à minha frente via.
sem acertos a aguilhoar-me à boa sorte!


William Lagos
Tradutor e Poeta
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com



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