PARADOXO DAS CRUZADAS
Duodecaneto de William Lagos, 2006
A Ilha dos Mortos, Arnold Böcklin
PARADOXO DAS CRUZADAS I
No tempo em que eu nasci, só paz havia
Entre cristãos e muçulmanos submissos;
Cruzada não havia entre os castiços
Ensinamentos consagrando a teimosia
De uma crença; entre os cristãos mais
existia
O afastamento daquele ideal maciço
Que levara a tais lutas, pois remisso
Estava o povo contra o combate da
heresia.
Apogeu sendo de uma democracia,
Que pregava a liberdade em religião,
Embora contra mim certa perseguição
Tivesse experimentado, pois trazia
O estigma de ser um protestante
Em um país de romanismo dominante.
PARADOXO DAS CRUZADAS II
Deste modo, empreendi minha própria vida,
Tentando ser eu mesmo, sem querer
Impor aos outros meu jeito de viver,
Mas sem tampouco acatar ordem temida,
Ante a alheia imposição sofri ferida,
No íntimo do peito a receber
Os frutos da exclusão e ao padecer
Por razões numerosas nessa lida.
De minhas pretensões não fui cruzado,
Fui tão somente um pária rejeitado
Pelos impulsos dominantes na nação,
Um pouco por meu gosto pela arte
Ao invés de futebol, excluindo-me
destarte
Dessa grande e ensimesmada multidão.
PARADOXO DAS CRUZADAS III
Fui em cruzada até o hemisfério norte,
Busca inconsciente pelo meu destino,
Depois voltei, completado o desatino,
Por entre os hippies fui tentar minha sorte
No meio deles, enfrentei a morte
De muitas ilusões, mas outro sino
Tangeu em mim, num sonho pequenino,
Pensando ao mundo atribuir um novo
aporte,
Sem cruzadas, afinal, somente a parte
Que me cabia e assim quis ser Jerusalém,
A retomar e gastar todo o meu bem,
Mas fui expulso de novo, um Malazarte
De teatro e música que escolhi também,
Em vão batendo nas muralhas dessa arte.
PARADOXO DAS CRUZADAS IV
Sempre faço mais que os outros no que
empreendo,
Mas não sou Godofredo de Bulhões
E nunca pude conquistar os corações,
Nenhum deles inteiramente me contendo;
Por isso, num concurso nunca prendo
Tempo e dinheiro, tampouco em eleições,
Sabendo inútil dominar as multidões,
Só a um punhado de indivíduos eu atendo,
Nem tanto por os julgar merecedores,
Mas na esperança de que me possam
compreender,
Enquanto eu mesmo nem sequer entendo
Porque minha mente, recebendo mil
louvores,
Nunca aprendesse o jeito certo de bater
Para quebrar a gaiola em que me prendo.
PARADOXO DAS CRUZADAS V
Foi então que meus monstros do
inconsciente
Começaram a urrar a sua opinião
Por outros modos de manifestação
Que as desfeitas rebeldias do presente,
Surgindo assim esse tapete redolente
De mil poemas sem fim, em comunhão
Rebeldes uns aos outros, produção
Das vozes roucas de meu rancor pungente.
Manifestaram-se assim os Sons do Id,
Travestidos em alegrias ou oprimidos
Pelo sabor de sal amargo em sua doçura,
Porque esses versos não sou eu quem os
decide,
Eles choram por si, extrovertidos
Em seu mal repugnante de ternura.
PARADOXO DAS CRUZADAS VI
Não se interessam por vencer os infiéis,
Mas por cumprir missão mais peculiar,
Essas vozes internas movidas a expressar
O quanto não puderam em seus lauréis
Enquanto vivas eram. São bedéis
Que impõem a sua bondade ao chicotear,
Que ensinam mansidão ao revoltar
Contra toda a autoridade e seus quartéis.
Pois mortos sejam, de certo modo eu capto
As vozes desses mártires cantantes,
Que mais queriam sofrer que converter
A seu ideal abstrato e mentecapto,
Nesse êxtase fatal dos delirantes
Que em mim expõem o ordálio do viver.
PARADOXO DAS CRUZADAS VII
Eu apenas me dedico a ideal mais fino
E vejo a mim no brilho de seus olhos,
Reflexo de reflexo, mil refolhos
Recolhendo em sua trilha o peregrino,
Nessa demarcha o bimbalhar do sino
É o som de teus cílios sem antolhos,
Que bate e rebimbate nos escolhos
De imagens mortas para que me inclino.
Eu olho para os teus e a mim me vejo,
Quando me vês a mim e a ti te vês
E eu vejo que te vês mais uma vez
E tu vês que em ti mesma me revejo,
Meus próprios lábios são os teus que
beijo
E a cada vez que te vejo, me revês...
PARADOXO DAS CRUZADAS VIII
E lanço a âncora deste meu veleiro
A penetrar no mar de ti, o meu oceano;
Tuas velas eu parti, rasguei o pano,
Somente as algas são teu manto
derradeiro.
E ao penetrar em ti, no meu sendeiro,
Minha corrente te prende, sem engano,
Meu molinete te aspira em meu afano:
Eu sou teu novo mar e és meu primeiro.
Como o sangue da serpente te fecundo
E nesse mar que é meu viras espuma,
És Vênus-Aphrodite, a mais jocunda
Das deusas que meu ser assim afirma,
Água de oliva, o sal que me rotunda,
Nas mil volutas do verso que se esfuma!
PARADOXO DAS CRUZADAS IX
Qual reflexo de ti, deixei de ser
Um ser independente, eu sou em ti,
Que em ti somente é que sobrevivi,
Vivi sonhando em apenas te reter,
E ao te reter, em ti me derreti:
Derreti-me sem mágoa, ao ver-me ali,
Dentro de teu olhar, quando senti
Sentir por vez primeira meu viver.
Esse viver que antes fôra qual fantasma,
Fantasma de mim mesmo, que nem era,
Não era nada se não te conhecera,
Reconhecera o que até hoje me pasma
No pasmo que senti, falto de nexo,
Salvo o nexo de sentir-me o teu reflexo.
PARADOXO DAS CRUZADAS X
Eu bem queria ter as alas da alvorada
E me lançar a teu mar, sem mais demora;
Talvez eu fosse empós do meu outrora,
Talvez seguisse derrota inesperada;
Mas nesta trova à mudança consagrada
É preciso meditar qual seja a hora,
Que aqui “derrota” é o mais antigo embora
E só menciona uma rota demarcada.
Hoje naufrágio e derrota são sinônimos;
Só busco a rota e a derrota temo,
Temo o naufrágio no buscar da madrugada
E madrugada e aurora são parônimos
E sob a imprecisão dos termos gemo,
A luz das liberdades sempre adiada.
PARADOXO DAS CRUZADAS XI
As gaiolas nós fazemos ou deixamos
Que façam para nós; não protestamos;
Pouco a pouco a nós mesmos bitolamos
Nas exigências sociais em que atolamos,
Pois desde a infância nos acreditamos
Dentro de tal moldura e até ajudamos
As barras a firmar e as aparafusamos,
Com os pinos e rebites que ganhamos
E é tão difícil esquecer o que
aprendemos,
Pois nos podaram, cuidadosamente,
Nosso desejo de em nada acreditar;
Por isso é que este mundo em que vivemos
É o que moldaram, minuciosamente,
Mortos que a vida em nós buscam
conservar.
PARADOXO DAS CRUZADAS XII
E quem nos diz não seja o mundo diferente
Deste mundo chinfrim em que vivemos?
Se tudo aquilo que por belo temos
Não passa de um reflexo que a gente,
Na parábola do filósofo descrente,
Ajuda a conservar só porque cremos?
Quando a caverna e as sombras percebemos,
Apartados de um ideal magnificente.
Quem sabe, enfim, se achei a minha
cruzada?
Jamais fui eu que tomei Jerusalém,
Mas sempre posso compartir visões do
mundo;
Que em meus poemas certo toque de
alvorada
Quebre essa sina e assinale-se também
Para os clarins tocar no véu profundo.
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