quarta-feira, 24 de janeiro de 2024


  

ACÚLEOS I – 13 DEZEMBRO 2023

(Agnetha Faltskog, cinema islandês)

 

Toda beleza tem dentes aguçados,

Pode morder para te dar prazer

Ou por prazer pode querer morder,

Pingos de sangue de forma ou outra derramados.

Assim os corações são mastigados

Por essa dor que só pode conceder

Esse carinho em que a beleza há de morrer

Dos beijos todos sobre a carne descartados.

 

Mesmo essa carne que não mais existe,

Mas que nos pôde ferir enquanto bela,

Em seu anseio venenoso de carinho,

Cada saliva de beijo um ideal triste,

Que se derrama sobre a pele e ainda apela,

Após aberta toda a roupa em desalinho.

 

ACÚLEOS II

 

Mesmo na ausência da mais fera intenção,

A beleza nos queima e fundo desce,

Cada beijo a expressão de egoísta prece,

Buscando apenas alcançar satisfação;

Percorrem dentes toda a pele sem noção,

Mas a saliva aos poucos desfalece,

Enquanto o tempo sem perdão se aquiesce

E destempera a mais perfeita excitação.

 

Já a língua mais se mostra generosa,

Deixando um rastro de si sem nos morder,

Mais tempo leva sem se desfazer,

Mas em seu sendeiro ainda é-nos impiedosa,

Insistindo em receber o quanto quer,

Tal qual o espinho que acompanha cada rosa.

 

ACÚLEOS III

 

Mas basta olhar o belo nos seus olhos,

Ele nos queima em altíssimo fulgor,

Raios de chama pretendendo ser amor,

Em cada lágrima o perigo dos escolhos,

Cada pupila um breve porto com seus molhos,

Um cristalino qual espelho em seu ardor,

Cada pestana a reforçar esse calor,

Que me investiga no tremor de seus refolhos.

 

Assim, se és bela, a alma me mordiscas,

Bem levemente, esquiva em teu prazer,

As tuas pestanas agudas em suas iscas,

Mas nesse anzol de tua beleza então me afogo,

No inexplicável fascínio da mulher,

Que tanto temo, mas para o qual me jogo.

 

SALTO NO ESCURO I – 14 DEZ 23

 

Ou contra quem quereria me jogar,

Mas não me atrevo, me fisga a circunstância,

Fico a beber a ausência dessa instância,

Somente ao vento consido me arrojar,

Para esse arrojo não consigo me entregar,

Por mais que dele admire sua elegância.

Mas minha ausência de arrojo tem constância,

Ante seus pés não consigo me ajoelhar.

 

Como é estranha essa tal subserviência

Ante os escolhos de cada convenção,

Fica o desejo entalado na garganta,

Não serei dela apesar de sua insistência,

Mesmo em suspeita de encontrar aceitação,

Nesse seu rosto suave que me imanta.

 

SALTO NO ESCURO II

 

Toda questão de desejo é relativa,

Na verdade, por mais que se deseja,

Somente as costas da mão é que se beija,

Fica a esperança derrotada de indecisa;

Mas não se trata de colher a sempre-viva,

É o miosótis que sobre nós adeja,

Ele que escolhe o momento que se enseja,

Não cabe a nós tornar a escolha decisiva.

 

Porque sempre, ao longo de minha vida,

Nunca escolhi, esperei que me acolhessem,

Ou ao menos que essa escolha sugerissem,

Fui pelo amor sempre a vítima escolhida,

Mais que dar beijos espeei beijos me dessem

E minha alma de certeza revestissem...

 

SALTO NO ESCURO III

 

Que me olhem com desprezo é bem possível,

A tradição, afinal, é a cortesia,

Que seja o homem que primeiro se atrevia,

Na tentativa de obter quanto é exequível,

Mas no meu caso aguardo o incognoscível,

Sempre esperei a cornucópia que se abria

Ou o tapete mágico que me conduziria

Ao meu oásis de amor imperecível.

 

E o que me espanta é ter sido buscado,

Não um vez somente, porém tanto,

Que um par de lábios se abrisse de inopino,

Em tal instante de amor inesperado,

Que a meu redor tudo entoasse um canto,

Que me levasse ao mais perfeito desatino!

 

PTERODÁCTILO I – 15 DEZ 2023

 

Eu sou um beijo que nunca foi trocado,

Escondido junto às traves de teu teto,

Oculto ali no escaninho mais secreto.

Queria o beijo, afinal, ter-se abrigado

Nesses lábios de alguém sempre a meu lado,

Em cujas íris enxergo olhar dileto

E me aparentam transmitir mais do que afeto,

Mas sou um beijo na timidez de seu pecado.

 

Serei um beijo que nunca foi beijado,

Um meio-beijo sequer, ou beijo algum,

Um simples beijo partilhado com nenhum

Serei um beijo afinal tão acanhado,

Que só nas traves do teto se pendura,

Em vago anseio que por toda a vida dura?

PTERODÁCTILO II

 

Quem sabe tu serás beijo também,

Empoleirado sobre os cortinados,

Tem seu temor de abraços encantados,

Aclimatado nesse vazio que ama ninguém?

Quem sabe és tu os beijos que me vêm

Pelas flores dos ventos ressumbrados,

Em solidão igualmente condensados,

Imóveis beijos do amor que não se tem?

 

Beijos perdidos ao longo das paredes,

Ressumbrados dos lábios em receio,

Sem serem dados, só beijos de permeio,

Com a solidão das mais arcanas sedes,

Que se afastaram dos lábios, desvairados,

Sem se apegar ao lábios mais buscados?

 

PTERODÁCTILO III

 

Ai, pobres beijos com suas asas de morcegos,

Sobre lâminas e caixilhos ressecados,

Pobres beijos em timidez envelopados,

Beijos sem rumo, tristes beijos cegos,

Beijos perdidos, sem alcançar os regos

De outras bocas em que sentir-se amados,

Beijos de medo, de si mesmo renegados,

Beijos de gelo, temerosos dos apegos...

 

Ai, que esses beijos pudessem ser trocados,

Sem esperança, sem sentido, em desvario,

Beijos deixados perdidos para o cio,

De alheios lábios em temor apavorados,

Tais quais os beijos que nunca te darei

E os beijos doces que jamais receberei!

 

POMBAIS I – 16 dezembro 2023

 

Por que razão os ossos se conservam?

De forma alguma que guardem os meus!

Costume egípcio que passaram aos judeus,

Que os ocidentais sem razão ainda herdam;

Os campos de cultivo assim se alternam

Com tais necrópoles sem motivos seus...

Guardar os ossos agrada a qualquer deus?

Por que em tais covas os mortos se adornam?

 

Que seja a carne consumida pela terra,

Sem ataúde e sem qualquer mortalha,

Enquanto os ossos seu sono ela agasalha,

Pois alma alguma nesse chão se encerra,

Só nesse exílio se conservam os esqueletos,

Sem ressumbrar quaisquer ideais secretos...

 

POMBAIS II

 

Que então sejam os ossos exumados

Para enfim submeter-se à cremação,

Sem desrespeito de qualquer noção,

Para os céus finalmente destinados,

Poeira dos nossos às nuvens transladados,

Nada ficando para outras gerações,

Sem grande esforço logo se perderão,

Já pelas carnes foram campos abençoados.

 

Melhor, no entanto, que desça o pó ao pó,

Sem desperdício em tal sepultação;

Serão arqueólogos no futuro que virão,

Para estudar o que foi deixado só,

Sem maior honra que os de dinossauros,

Os nus calcários conservados em ossários.

 

POMBAIS III

 

Assim espero ir logo ao crematório,

Sejam as cinzas restantes espalhadas,

Por que deveria legar as minhas ossadas

Para uma escola ou hospital inglório?

Pouco me importa o seu repositório,

Seja no mar sobre as vagas assopradas,

Seja do alto de um outeiro despejadas,

Ou até mesmo em galinheiro merecório.

 

Não é que tema ser por vermes consumido,

Somente espero tão só deixar de mim

A quantidade imaculada de meus versos,

Que ninguém possa negar ter recebido

Esses sonetos articulados no sem-fim,]

Que aos quatro ventos por mim foram dispsersos.

 

COLUMBÁRIO I – 17 DESENBRO 23

 

No oeste existe dos Estados Unidos

Um vasto prédio e bastante suntuoso,

Cada parede ostenta em nicho prestimoso

O pó e as cinzas de tantos falecidos;

Após sua cremação a ser ali reunidos,

Prédio arejado e em nada tenebroso,

Restos mortais de um povo industrioso,

Que as vermes foram assim subtraídos.

 

É chamado o Columbário, em alusão

Aos pombais de mais antiga aceitação,

Conservados em cuidados permanentes,

Nem carne ou ossos nesse eremitério,

Só restos puros verticais em cemitério

Por trás de lápidas ali nomeados os presentes.

 

COLUMBÁRIO II

 

Em um futuro distante, depois que a poluição

Tivesse as plantas e os animais exterminados,

Por Soylent Green eram então alimentados

Os seres humanos sobreviventes na ocasião;

Eventualmente se revelou a solução

Por trás dos produtos assim elaborados,

Em laboratórios com cuidado manejados,

De onde as vitaminas teriam obtenção?

 

Matéria-prima eram aqueles que morriam,

Sua carne e ossos para alimento destinados,

Dos cadáveres que em eutanásia produziam,

De que calcário e os ingredientes procediam,

Igual sendo os dejetos reciclados,

Único meio de alimentar os que viviam!

 

COLUMBÁRIO III

 

Nunca entendi essa estranha compulsão

De guardar cinzas após a cremação:

Pode ocorrer o descuido de um instante,

Ser provocado algum desastre delirante!

Igual que ocorreu naquele restaurante,

Quando um novo garçon itinerante

Introduziu novo tempero na ocasião,

Em melhoria do sabor da refeição.

 

O Sr. Chang, pareceu ter-se assustado:

”De que ‘tempelo’ você está falando?”

“Daquele vaso azul tão caprichado,

Naquela prateleira ali do lado...”

O proprietário foi logo o vaso destapando:

“São as cinzas do vovô, ‘blasileilo desglaçado’!”

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