VELHA DAS ERAS I (2008)
(ANITA EKBERG)
Agreste é o sono e assim será minha morte,
na longa espera da velhice e suas sequelas.
Eu já provei o sabor das seriguelas
e estas causaram em meu ventre o corte
da habitual procissão dos emunctórios.
De sabor imprevisto foram bombas,
que assimilei, juntamente com pitombas,
e castanhas de caju, nos ilusórios
experimentares de textor lascivo:
intelectual essa gula revelada
na intuição de uma ação deliberada.
Polpa sem cheiro em seu esgar furtivo,
mais pele do que polpa, esforço tal
que mal compensa seu gosto natural.
VELHA DAS ERAS II (19 AGO 11)
Eu entreguei minha alma ao temporal,
por que lavada fosse dos pecados
não cometidos, pois os realizados
eu guardarei comigo até o final.
Eu entreguei minha alma ao vendaval,
por que os farrapos fossem anilados,
no quaradouro os sonhos engomados
e encanecidos sobre o bem e o mal.
Queria que minha alma fosse pura,
mas de toda a decência e imposição,
para flutuar ao vento, em plena calma,
completamente cheia da exposura
com que mostrou ao mundo sua paixão,
vogando ao céu em busca de tua alma.
VELHA DAS ERAS III
Eu bem queria cometer um latrocínio:
arrancar de meu peito o coração,
depois de perfurar carne e pulmão
até o pericárdio e, nesse escrínio,
enviá-lo para ti, no lenocínio
com que vendi ao mundo minha paixão,
sem que o amasse, em vezo de traição,
para furtar-me um pouco a teu domínio.
Ao me vender ao mundo, te esquecia,
buscando um novo alvo de meu sonho,
um novo túnel em que
burlar a luz.
Porém na escuridão ainda te via
e por mais longe que tal alvo eu ponho,
é a centelha em teu olhar que me seduz.
VELHA DAS ERAS IV – 7 dezembro 23
Eu nem sequer recordo a qual soneto
te referiste... São tantos que escrevi!
Do grande número que enviei a ti,
quase todos distribuí. Não é secreto
o que neles tolamente eu redigi.
São frases de amargor, outras de afeto,
umas confessam os males que cometo,
mais as tristezas que por ti sofri.
Mas não esqueças que, na maioria,
nada têm a ver contigo. É só mensagem
que o mundo me enviou, mas não tua boca
e que devolvo, em paixão de fancaria,
ao mesmo mundo, na expressão tão louca
de quem se expor ao mundo tem coragem.
VELHA DAS ERAS V
Teu agapanto é branco, mas toda a luz reflete
do pôr-do-sol diário e torna-se laranja,
as pétalas ampliam um pouco mais a franja
da radiação solar que nele se intromete;
ao olhar do jardim a taça em que se mete
a raiz dessa planta que a natureza arranja
é como se o crepúsculo crescesse nessa granja,
enquanto a inflorescência rebrilha em seu confete.
Assim o rosto amado de branco e singeleza
assume novas cores, se de amor iluminado
e torna o entardecer em mais um arrebol
e fico a imaginar se toda essa beleza
é apenas o reflexo de um sol enamorado
pelo agapanto branco que amplia o pôr-do-sol.
VELHA DAS ERAS VI
A vida é um jogo realizado com fortuna
de minha Tychéia, a deusa favorável,
esse amor que devota de cunho imponderável,
essa Velha das Eras, a mãe da duna,
que na ampulheta escreve
em tom de espuma
e me sopesa com ideologia improvável,
enquanto me sorri de forma inescrutável,
enquanto lança ao solo a derradeira runa.
Não são as cartas do jogo só marcadas,
pois ela os naipes e os trunfos tem na mão
e decide quantas cartas vai me dar.
Ela usa um coque nas madeixas bem penteadas,
que não os possa prender de sopetão,
para meu próprio futuro dominar.
VELHA DAS ERAS VII – 8 DEZ 2023
Então eu penso que desposei Tychéia
e ela se mostra parcialmente humana,
só para me iludir de forma arcana,
manipulando meu coração e cada ideia,
que de fato já concluí a minha epopeia,
sem que sofresse desventura insana:
a sua presença a meu lado nos irmana,
em usufruto de gentil
prosopopeia.
Mas é ela que decide o meu destino,
Velha das Eras, sem nem me consultar
e quando eu vejo, meu sonho pequenino,
como as areias que a vejo destilar,
se escorre lentamente, ao sol a pino,
quando a vida real vem-se instalar.
VELHA DAS ERAS VIII
É por isso que do sono desconfio,
em que o inconsciente mais se manifesta,
quando a angústia do Id a alma empesta
e me vejo transformado em puro brio;
que seja o cio diuturno o meu pavio,
que sempre acendo na esperança de uma festa,
porém que súcubo ou lâmia sobre a testa
depõe-me o beijo que em tal sonho fantasio.
Não são as damas deste meu devaneio,
que no mundo real jamais possuo,
mas que sonhara poder ter entre meus braços,
mas as zuvembis de todo o meu receio,
a sugar os mil líquidos que suo,
de cujo furto não deixam sequer traços.
VELHA DAS ERAS IX
Ás vezes, quando acordo ainda as vejo,
inseridas como sombras nas paredes...
Ó Fortuna, nunca soube o que me pedes,
para me dares, em troca, o meu desejo.
Ó Tychéia, dama antiga, a quem eu beijo,
Velha das Eras, que somente me concedes
o que sempre decidiste e apenas medes
a extensão final de cada ensejo...
Quem são as lâmias que à noite me devoram?
Por que me sinto seco qual areia,
Minhas mucosas
desprovidas de umidade,
quando me acordo, após que todas foram?
Qual esse ardor que tanto me incendeia,
Sem ilusão de qualquer felicidade?
VELHA DAS ERAS X – 9 dezembro 2023
Quem sabe em que balança ela me pesa,
desde o primeiro dia da sansara?
Sou eu que escolho, em percepção bem cara,
o que me fará bem e o que me lesa?
Ou é só Fortuna que tal rosário reza
e uma conta qualquer escolhe para
fazer-me acreditar ser jóia rara
e as minhas reações então sopesa?
E se me fita com olhos de serpente,
impenetráveis em seu fulgores baços,
que nem são negros, mas apenas incolores,
o que posso esperar dessa inclemente
Velha das Eras, na pompa dos abraços,
quando o orgasmo nos sacode em estertores?
VELHA DAS ERAS XI
Será que está comigo em meu castigo
pelos malfeitos que nem sequer recordo,
pelos pecados olvidados quando acordo,
pelos tempos em que causei algum perigo?
Tento às vezes me lembrar e não consigo
dos sonhos maus que atravessei a bordo
da nau dos sonhos, com que nada concordo,
meu sono é curto e parece sempre amigo.
Pois na existência que chamam de real
eu sei que nada fiz assim tão grave,
que justifique ordálio assim atroz.
Talvez seja somente a dama de cristal,
que se apresente de modo tão suave,
para poder permanecer o meu algoz!...
VELHA DAS ERAS XII
Pois todo o ciclo se encerra novamente,
de forma bem diversa que esperava,
--da esperança a mortalha me enlutava,
que do porvir é a cortina permanente,
do mesmo modo que me ocorreu frequente
que a montaria o seu cabresto dominava,
em disparada para aonde desejava,
por maior que empregasse esforço ingente,
pois estes versos não são meus, mas sim da Velha,
que apenas ri entre seus dentes de caveira
e faz que eu coma na palma de sua mão.
E é a própria imagem que me espelha,
em sua risada que solta derradeira,
quando partiu-me, no final,
meu coração.
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