sábado, 22 de junho de 2024


 

 

FACES MORTAS I  (17 MAIO 2024)

ISABELLE ADJANI, época de ouro francesa.

 

É estranho que não seja mais estranha

essa atitude que me mostra a minha amada,

que parecia sempre transformada

de um dia para outro e que tamanha

variedade, assim inesperada

me apresentasse, em verdadeira sanha

de ser novas mulheres... Quanta manha

eu tive de mostrar ao enfrentar cada

dessas mulheres de seu corpo inquilinas!

Mas agora, há dois meses que não muda

e eu só fico a imaginar o que me espera...

Quais novas vastas tricas femininas,

que ao não mudar, de certo modo iluda,

a preparar-me as ciladas de uma fera?

 

FACES MORTAS II

 

Acho ser parte da natureza feminina

esse seu vezo de ser tão inconstante.

Apenas me pergunto, em algum instante,

se por deliberação assim se inclina

ou se é inconsciente a malha fina

com que me envolve qualquer nova ocupante,

participando agora da fragrante

vida exterior a que emerge e me fascina.

 

Só me parece, às vezes, mal saber

quem sou eu e tampouco se importar,

em seu esforço para reconhecer

o novo ambiente e os detalhes do lugar,

que até demonstra em rancor permanecer,

se incauto chego em busca de a beijar...

 

FACES MORTAS III

 

É como estranho fora totalmente

para essa nova pessoa dominante,

que me olha de viés, por um instante,

menos zangada do que indiferente, 

até que outra informação ingente

aflora nela, em fervor expectante:

"Esse é o nosso marido!"  Que alarmante

saber qual brotará desse inconsciente!

 

E são facetas de uma alma, tão somente,

ou realmente emerge gente morta,

das brumas do passado, suas parentes, 

ou amigas de um afeto permanente,

encarnações de antanho, que comporta,

ou meandros obscuros em sementes?

 

FACES MORTAS IV – 18 MAIO 24

 

Quem são as almas aqui enoveladas?

É tudo efeito de esquizofrenia

ou personalidade múltipla, que agia

sobre os neurônios de mentes alienadas

ou são antes essas mentes enroscadas

por liames personais, vozes que um dia

relacionaram-se, na mente que assistia

e que as captou, asserpenteadas...?

 

Será que existem territórios demarcados

nos microtúbulos das redes suas neurais,

cujas fronteiras são mal definidas

ou são só as vibrações descompassadas

de tambores e bombos triunfais:

marchas marciais, porém mal percutidas?

 

FACES MORTAS V

 

Outros dirão, a me troçar, porém;

“Não é melhor ter cem noivas em casa,

embora apenas numa cama, em que se embasa

dezenas de odaliscas nesse harém?”

Mas tal suposição é um pouco rasa,

é um só e mesmo corpo a ocupar, também,

é o mesmo cheiro nas narinas que se tem,

podem ser cem, mas numa mesma vaza...

 

E como já é difícil uma só entender,

ter de adular para se fazer amor

com tal frequência que se desejara

E que dirá desconhecidas convencer,

que não demonstram por mim nenhum calor,

depois que a anterior se deslocara?

 

FACES MORTAS VI

 

E ainda existe  esse  conflito interno,

essa luta  por  vezes inconsciente,

entre uma personalidade mais ingente

e  outra que já está do lado externo?

Quando não há no olhar nada de terno,

até os olhos tem nuance diferente

e se concentra a atenção, plangente,

nessa disputa, que  até  parece inferno!

 

Só imagino como seria comigo,

caso outras mentes me quisessem dominar

e minhas memórias até mesmo apagar

e simplesmente a tanto não consigo,

porque meus  alter-egos logo dominaria

e a  redigir meus versos por igual obrigaria!

 

FACES MORTAS VII – 19 MAIO 24

 

Na verdade, até as chamei de vozes mudas,

que não escuto dentro ou fora assim,

tão somente  agitações dentro de mim,

essas tendências e propensões desnudas,

sem que experimente lutas mais agudas

e nem recordo tê-las ouvido, enfim,

tentar me dominar até hoje nin-

guém me pareceu, ainda que aludes

 

a tais mudanças que em mim causei,

pois sou hoje bem diverso do que fui,

ainda que creia que aprendi com a vida

e a mim mesmo aos poucos transformei,

enquanto sinto que a maioria se dilui

e deixa a vida levá-los de vencida!

 

FACES MORTAS VIII

 

Mas não me flagro em qualquer conflito,

não sinto em mim caracteres secundários,

os meus demônios se tornaram solidários,

nesse coral que tenho por bendito,

nessa cachoeira que já tenho escrito,

em que se mesclam cientistas e operários,

cada um dos quais a traçar itinerários

de bem diverso rumo a que os incito.

 

Mas esta saga de versos já sem conta

ainda experimento sem ter discordância,

não me aparece um jovem amoroso,

nem um velho resmungão se me desponta,

cochicham só com alguma elegância,

o que procuro tornar mais primoroso.

 

FACES MORTAS IX

 

Mas ela, oh deuses!  Mil almas ter parece!

Até concordo que isto seja um exagero,

são facetas, afinal, avatar mero,

que passados alguns dias, logo esquece,

enquanto o nome que ela usa não perece

e não me venha ninguém com lero-lero,

que em diferentes olhares eu me abeiro,

não outra alma que dentro dela desce...

 

A diferença é real, em seus caminhos:

 ou ela busca atender ao seu jardim

horas a fio, ou no sofá se assenta,

a contemplar destinos pequeninhos,

nessa lâmpada quadrada de Aladdim,

em que tanta maravilha se apresenta..

FACES MORTAS X – 20 MAIO 24

 

E destarte, nunca sei o que esperar,

se ela aparece cheia de energia,

ou se a manhã inteira ela gemia,

de dores múltiplas para se queixar

e se apenas fico, cauteloso, a observar

a senda e de que modo a trilharia,

a estranha luz que em suas vistas brilharia

ou qual o tom de voz que vou escutar.

 

Não que me dê isto razão para brincar,

as nuances ali vêm de madrugada,

tal qual meninas jogando amarelinha,

cada uma delas por seu turno a aguardar,

nesse abandono da infância bem amada,

em que a criança já morta se avizinha.

 

FACES MORTAS XI

 

Porém nem sempre é calmo esse alternar,

parece às vezes uma real disputa,

ela encerrada em distante gruta,

sem que me atreva suas rochas a franquear

e  então explode num deblaterar

e usa a menor coisa que me escuta

para pretexto de rancor ou luta,

sem que a si mesma pareça até escutar.

 

A impressão que então me passa até

é que as palavras nem passam por sua mente,

porém se formam direto na garganta

ou em algum ponto do esôfago tenham sé,

destinadas a magoar pungentemente,

com tal crueza que a alma mata e espanta.

 

FACES MORTAS XII

 

Não me parece  ser  assim toda a mulher,

já convivi com outras diferentes,

menos complexas, talvez mais inocentes,

se é que inocência tem mulher qualquer...

mas quando um  beijo, afinal, ela me der,

as malquerenças se apagam, indolentes,

em endorfinas que sei não serem permanentes,

mas que apagam todo  amargor e desprazer.

 

Feroz é então o amar dessa amazona,

se bem seu cinto nunca me outorgou,

a minha hipólita que traz na língua a lança...

que ainda perdura de meu peito a dona,

por toda a mágoa que na vida me causou

no peito que rasgou em acenos de esperança.

domingo, 16 de junho de 2024


MARLENE DIETRICH 


KASIPHIA I -- 13 maio 2024

 

é tarde para um sonho.  a madrugada

enjambra a pouco e pouco o dealbar.

a noite sai da praia para o mar,

como a maré do sono, em disparada.

 

é a hora em que, final, a derrocada

me leva para o sono, em baixamar.

já está mais perto da noite terminar

que dos momentos em que pertenço à fada.

 

as horas vãs do sono eu repudio:

se pudesse, nem ao menos deitaria,

quisera um dia de cento e tantas horas,

 

em que fizesse mais do que já crio

e em que meu corpo ao porto levaria

que compensasse o sono das auroras.

 

KASIPHIA II

 

eu dou aval ao vento que repasse

meus sonhos para as contas de outra gente:

depósitos de mágoa em pix indiferente,

depósitos de luz que me espalhasse.

 

eu dou aval à chuva, que marcasse

em outras vidas, a mesma brotação

que já viveu em mim, fecundação

inseminada no sonho que me alçasse.

 

e busco a vida qual receptáculo

em que enjaule esses mares de ilusão,

em que me vista das cores do arco-íris

 

e me dedico a dedilhar tal espetáculo,

em que não vivo, porém faço tradução

da expressão do olhar com que me mires.

 

KASIPHIA III

 

não há foguetes marcando o meu caminho:

perlustro devagar o plenilúnio,

sem esperar reunir qualquer pecúnio,

que a vida exige muito mais que alinho.

 

pois quanto mais me esforço, em comezinho

labutar sob a luz do plenissólio,

tanto mais em despesas me desfolho:

melhor vivera o meu viver sozinho...

 

mas hoje em dia, contudo, é impossível

o viver do estagirita ou do ermitão,

pois nem sequer existem mais desertos.

 

exceto onde o alimento não é possível,

bem pouco duraria essa ilusão,

com a mente e o peito inteiramente abertos.

 

KASIPHIA IV – 14 maio 24

 

há pouco a descrever.   falei de tudo,

em meus milhares de versos anteriores,

de amor e ódio, certezas e temores.

o mundo é vasto e nele, não me iludo,

 

as coisas se repetem, neste estudo.

e até microcircuitos interiores,

os chamados "canônicos", seus labores

no cérebro repetem.    e contudo,

 

por mais padronizada, a mente humana

sempre produz algo de surpreendente

e a mim mesmo eu espanto, com frequência,

 

em meu jeito de agir, que não me engana,

no qual procuro ser independente,

sem me entregar ao domínio da indolência.

 

KASIPHIA V

 

não é fácil assumir responsabilidade

por uma vida inteira de fracassos,

por permitirmos que  falsos abraços

nos levassem a viver em falsidade.

 

é bem mais fácil lançar culpabilidade

àqueles que orientaram nossos passos

e nos pearam com outros tantos laços,

para que lhes cumpríssemos vontade.

 

talvez não seja fácil, mas real

é tal constatação.  o treinamento

que nos deram podia ser rompido

 

e, se antes não o foi, e o véu do mal

prevaleceu em tal comportamento,

fomos nós que merecemos ter sofrido.

 

KASIPHIA VI

 

é tarde para um sonho.  outro porém

é que o pendão de meu esverdinhado,

que se revela enroscado qual cajado,

avança em samambaias de arrecém.

 

em meus sonhos descolei dores também,

sonhos macios no caminho partilhado,

que se dividem qual curva de enforcado,

por entre os predadores do azevém.

 

melhor que sonhos de monocotiledônias,

que só me podem um destino produzir

e enfim não podem conduzir a nada,

 

sãp essas primeiras florações axônias,

não mais que despertando do dormir,

nessa surpresa do que do chão fui arrancado.

 

KASIPHIA VII –15 MAIO 2024

 

assim eu sonho por entre as trepadeiras,

sonho de espinho, talvez sonho de urtiga,

sombra daninha, em floração de intriga,

de permeio às colheitas mais certeiras.

 

minhas quimeras não são açucareiras,

nem calcilíferas, nem de fruta mais amiga,

nenhuma sonho ou lucro em mim abriga,

nuvens de pó, a ressecar asneiras.

 

talvez sejam realmente apenas pragas,

relva silvestre, que não dá bom pasto,

apenas forração das pradarias...

 

sonho epopeias de prateadas sagas,

sonho de amor refulgente enquanto casto,

o amor do amor por vastidões vazias...

 

KASIPHIA VIII

 

é tarde para o sonho de uma sesta,

a tarde já se encontra pelo meio,

os sons do mundo abafam de permeio

toda rede neural que então se presta

 

a me lançar então àquela festa

em minhas cidades de dourado veio,

a que retorno, engodos que não leio

e que não vejo senão na própria giesta,

 

em que retorno e vejo aqueles rostos,

que saúdam meu retorno em amizade,

que reconheço, porém sem me lembrar.

 

e quando acordo, meus sonhos já depostos,

eu bem queria não estar nesta cidade,

mas nesse mundo sidéreo do sonhar.

 

KASIPHIA IX

 

pois na verdade, não é minha casa só,

há a mansão, a choupana, o alojamento,

encontro as chaves de todas num momento,

nos corredores de argentino pó;

 

há outras mais antigas, em que o cipó,

das teias de aranha o tegumento,

percorre o teto em singular portento,

mais belo do que as tranças de minha avó

 

e em cada casa eu descubro a cama,

que ainda conserva meu próprio contorno

e então me deito, sem ter refeição,

 

embora limpe dos sapatos toda a lama,

antes de me recolher ao leito morno

que existe apenas na imaginação.

 

KASIPHIA X – 16 MAIO 24

 

porém será que tudo isso é realidade,

que essas ruas que percorro a cada noite,

às vezes no calor, outras no açoite

de ventos que me rasgam a atualidade,

 

que essas casas em que durmo, na verdade,

são esses leitos vazios de meu acoite

são esses berços que acolhem meu afoite,

que existam fora de minha fatalidade?

 

e se esse mundo que percorro à luz do sol

não é só figura de minha imaginação,

correndo à solta por minhas redes neurais?

 

pois como sinto que me ilumina esse farol,

que me acalenta em tal fascinação,

muito mais vívido que essas fagulhas naturais!

 

KASIPHIA XI

 

talvez porque não mais sonho de acordado

e apenas vou vivendo a projeção

de que sou um personagem, de antemão,

só repetindo o papel que me foi dado.

 

não há espaço para um sonho decorado,

quiçá o que faço é só apresentaçãpo

sobre esse palco de minha projeção,

simples fantoche por cordões manipulado.

 

de fato, nunca me acontece o esperado,

mui raramente obtenho o que desejo,

mas tão somente o que a vida me oferece.

 

fiz minhas escolhas, decerto, no passado

e aqui percorro as consequências desse ensejo,

sem que as deidades atentem à minha prece.

 

KASIPHIA XII

 

não sei para onde vou, só que cheguei

aonde estou agora, sem alternativa

de outras vidas em similhança viva

das outras vidas que de estulto abandonei

 

e vejo os outros dias melhores que deixei

amortalhar-se em quimera primitiva,

nessas ondas cristalinas de saliva,

na gelatina dos lábios que beijei

 

e só as encontro nas esferas desses leitos

que aguardam outra vez o meu contorno

e sobre elas me inclino, lavrador,

 

a percorrer novamente antigos eitos,

minha semente a depor em ventre morno,

dentre meus sonhos de singular fervor...