(CHRISTINA RICCI como LIZZIE BORMAN -- Em pequena a Wandinha)
SAUDADE COMPANHEIRA I – 9 maio
2024
Busco, acima de tudo, a
lealdade:
que pense em mim primeiro
e tudo mais
me seja secundário; e que
jamais
me trate diferente, por
vaidade,
quando tenha plateia ou
por maldade;
que seja sempre ela, qual
cristais
translúcidos de assombro e
sem fractais
perturbações de humor ou
falsidade;
porque, em algum lugar do
tempoespaço
existe uma mulher
descomplicada,
que eu possa amar, sem
medo de incertezas;
descansar a cabeça em seu
regaço,
quando minha fronte
estiver afebrentada
e diluir-me no frescor de
tal abraço.
SAUDADE COMPANHEIRA II
Os corpos depositam em
gavetas:
alguns vestidos como para
festa,
enquanto outros apenas
partem desta
para a melhor, sem ambições
secretas.
Ficam os mortos deitados
nesta gesta,
presas as bocas com
esparadrapo,
as mãos atadas por fitas em
fiapo.
Não querem que cometam
desonesta
e feia ação de saírem do
descanso,
para contarem ao mundo o que
viveram,
os malfeitos que fizeram ou
sofreram.
Mas os ossos permanecem no
remanso:
dentes sem lábios, em seus
vãos monólogos,
para delícia dos futuros
arqueólogos...
SAUDADE COMPANHEIRA III
Verterei sangue em minha acrobacia
e tomarei os jatos congelados,
para trançar, em cabos reforçados,
a corda-bamba em que marcha minha poesia.
Mas com jatos de linfa retrançados,
eu tecerei a rede de agonia;
quando eu falhar, à morte, que me espia,
enganarei com meus ossos espalhados,
que servirão de apoio, a cada noite
em que a desafiar, trapézio firme,
sob a lona do circo de minha vida...
Quando a plateia sair, no meu afoite,
tentarei sair junto e ouvirei rir-me
a vastidão, sem que me dê acolhida...
SAUDADE COMPANHEIRA IV –
10 maio 2024
Disse Deus: "Haja
luz!" E a luz se fez,
como estágio inicial da
criação:
o mundo inteiro é Sua
imaginação,
tudo é diverso daquilo em
que tu crês.
Disse eu: "Haja
tinta!" E mês a mês,
os poemas escorrem de
minha mão.
Não são reais. Sua significação
depende inteiramente do
que vês.
Nós dependemos da
imaginação divina,
mas eu dependo daquilo que
imaginas:
és tu que pões nos versos
teus segredos...
E é essa variedade que
fascina:
as mil decifrações a que
te inclinas,
enquanto a luz escorre
entre meus dedos...
SAUDADE COMPANHEIRA V
"Nos dias de festa de
Bordéus se veem,
as mulheres morenas dessa
terra,
pisando a seda do solo que
ela encerra,
enquanto os dias de Março
se mantêm,
quando iguais são os dias e
as noites,
lentamente a cruzar pontes
estreitas,
que para sonhos de ouro
foram feitas,
embaladas pelo vento, em
seus açoites..."
E nesse sonho brando de
Hölderlin,
que nesta noite eu traduzi
assim,
vejo o fantasma do poeta
louro,
que fugiu de Bordéus, em
seu desdouro,
sem que ninguém conheça
exatamente
a razão dessa fuga
surpreendente.
SAUDADE COMPANHEIRA VI
Como uma pétala, eu penso nas tuas
faces,
desmesuradas de frescor na sua mordida:
tomas minhalma e a levas de vencida,
oh, pétala de flor, na flor que nasces!
Como uma pétala, eu quero que me
enlaces,
na doce confusão dessa ferida:
aspirarei em ti, rosa perdida,
esse perfume da rede em que me abraces.
Eu busco em ti o derradeiro orvalho,
acumulado na aurora deste ensejo,
orvalho feito geada em luz de agosto.
E me apresto ao assalto desse talho,
na final busca de sugar-te um beijo,
sobre a pétala vibrante de teu rosto.
SAUDADE COMPANHEIRA VII – 11 maio 24
Preciso comprar meias de
algodão,
melhor do que as de lã para
meus pés;
meias de náilon não têm as
mesmas fés:
causam suor e esfriam o
coração.
Eu quero meias de algodão...
Chulés
provocam muito menos; ilusão
recobram de minha infância,
na emoção
desse conforto antigo; meus
bonés,
sobre a cabeça, combinam com
essas meias
de algodão do antanho; de
alto a baixo
me sentia defendido e a
proteção
derivava das mais cinzentas
teias
do carinho do inverno, em que me encaixo
mais na saudade, pois pedi
sua mão...
SAUDADE COMPANHEIRA VIII
Teu corpo acamparado de
nenúfares,
recendendo a carmim, áspera
jóia,
sabor de madrepérola e
azorrague,
temor de sol, ao som de mil
aljofares.
Teu rosto cor de lua, no
arrebol,
palidescente e quedo, amora
verde,
luz desvario, evanescentes
olhos,
rubor de prata e ínclito
penedo...
Penhasco em que rebentam
malmequeres,
verde sabor de doces
pirilampos,
procela azeda de cantar
felino,
vil meu desejo em pleno
latrocínio,
de macular os figos de teus
seios
com a seiva amarga que brota
de meus lábios.
SAUDADE COMPANHEIRA IX
O verme do desejo que me atenta
não morreu descarnado pela idade:
por mais que o repudie, sem vaidade,
logo ressurge e em nova voz se aventa.
São essas novas promessas que
apresenta:
que se apenas eu me desse à veleidade,
poderia ter abraços de verdade,
ao invés de espasmos de saudade lenta.
Mas eu me prendo à fúria do dever,
não me dou tempo a instante de lazer
e até mesmo da poesia fiz trabalho.
É como se eu quisera castigar
o próprio ideal do sonho a dealbar
e o reduzisse às fagulhas desse malho.
SAUDADE COMPANHEIRA X – 12 maio 2024
Embora eu te possua, meu deleite
é acometido de fulgor masturbatório:
minha explosão em ti é purgatório,
em que minhas culpas escorrem como
azeite...
Eu me derramo todo, em longo aceite.
Fica apenas a casca, esse envoltório,
que chamo de meu corpo, o ostensório,
enquanto o sacramento em ti se
ajeite...
Minha carne é nada mais que esse
sinal,
do visível e do externo que restou,
depois que inteiro me dissolvi em ti.
E o próprio cérebro
derramo no final.
Teus olhos são escolhos. Naufragou
o quanto eu era, enquanto te possuí.
SAUDADE COMPANHEIRA XI
Nem todos podem desposar saudade
ou torná-la em permanente companheira;
em geral, a solidão é a derradeira
e a companheira do rumar na soledade.
Mas minha esposa saudade é mais
brejeira
e sorri para mim com veleidade,
ela brinca com meus versos, de verdade
e para mim toca viola seresteira.
Ah, saudade, doce rumo de minhalma,
essa saudade que eu amei ditosa,
essa vontade de rever de novo
o nunca-mais de acinzentada palma,
a virgindade da espera deleitosa,
que depois que se foi, não tem renovo!
SAUDADE COMPANHEIRA XII
Ah, saudade, companheira de alecrim,
luz de miosótis, marcela perfumada,,
a xirca rósea de uma esposa amada,
a urtiga verde que restou pra mim!
ah, saudade, ainda te quero assim,
como a geada da manhã, semiorvalhada,
qual sereno de bruma acinzentada,
velha tapera arrimada no sem-fim!
Ah, saudade, minha dama verdadeira,
que nunca, nunca mais me irás deixar,
pelo fundo que encravaste as tuas
raízes!...
Ah, saudade, minha velha companheira,
dentro da qual ainda consigo me
abrigar,
a cada vez que o coração me alises...
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