GENTES MORTAS 1 – 21 MAIO 24
JESSYE NORMAN, cantora lírica
De quais gentes me brota a inspiração?
De que ínvios rincões da humanidade
me atingem gritos de desesperalidade
ou ao contrário, de plena exultação?
Essas gentes já mortas aonde estão,
como alcançaram ampla
hospitalidade
deste meu cérebro a curta opacidade,
em minhas meninges como penetrarão?
Certo é que este altissonante versejar
não me parece originar-se em mim apenas:
de onde sopram as urtigas e verbenas
que de meus dedos sem pudor irão pingar?
Será que escuto vozes mudas ao luar
ou ao meio-dia insolentes cantilenas?
GENTES MORTAS 2
De que órgão de tubos e caniços
escuto essa intangível vibração?
Será que são as cuias que ali estão
sobre aramados de tão magro viço?
Será que são esponjas a serviço
de qualquer canto de mata no rincão
ou das corticeiras avermelha-se a
canção,
de uma mata ciliar o som castiço?
Será o vento soprando nas tabuas
ou por entre as solidagas seminuas,
a sacudir sementes que repartirão
ou pelas várzeas se enrolam as lianas,
nesse capim de azevém e de campanas
que dentre as brisas se fazem brotação?
GENTES MORTAS 3
De quais pedras jazendo sobre o vale
descem as vozes mortas sem sossego
para as lianas rangendo no arvoredo,
nessa voz permanente que não cale?.
Será que existe da samambaia um xale
a murmurar soluços de segredos,
as pedras a rangir flores e medos,
areias finas em prefigura de algum
caule?
Será que as gentes mortas se tornaram
em pedregulhos, caolim e pedra-moura,
em cada nuance a frágua de um tesouro,
em pedra-pomes suas vozes misturaram,
nesses resquícios em que o sol ainda
doura,
voz de tambores a percutir-me o couro?
GENTES MORTAS 4 – 22 maio24
Será então que me brota dos pelegos
essa nuance eventual de carne morta,
esse aroma apodrecido que me corta
e que me fita sem orgulho em olhos cegos?
Será que ressequidos ainda há apegos,
sem que a artéria seca ainda se importa
e algo do sangue já vertido ainda me exporta
pelo calor dissipado em vãos arpejos?
Esses pelegos sacudindo ao vento,
depois de serem relegados ao relento
e balbuciando assim seus desenganos
para a pastagem de um coração humano,
sem fazer parte do aquerenciado plano,
somente o pelo farfalhando seus afanos?
GENTES MORTAS 5
Será que há outros sob os pés de
samambaias,
que em Portugal chamam fetos sem
segredos,
meninos mortos, que não cresceram
ledos,
ali plantados como tantas faias
ou ali ainda se sacodem largas saias.
bem sob a terra ao percutir dos
dedos,
de qualquer modo a transmitir albedos
para meu cérebro envolto em tantas
mayas?
Por certo tíbias percutem sentimentos
do que viveram em tristezas e
pecados,
ouço o crotalo sem saber seus lados,
talvez soem simplesmente guizos
belos,
mas
a seu som meus dedos formam gelos,
haverá sabedoria em tais lamentos?
GENTES MORTAS 6
Será que encontro inspiração na cruz
limosa,
feita por tíbias com tendões atadas,
nesses anúncios de tão pequenos
nadas,
restos defuntos de uma vida
esperançosa;
não que escute estalares de
almofadas,
quem jaz ali não tem mortalha mais
garbosa,
está talvez desmantelado e qualquer
rosa
entranhou-se nas costelas
desmanchadas,
apenas vejo ali macabro instante,
ao passo que uma vida segue avante,
tal gente morta talvez gerasse um só
espinho
e contra as hastes ressequidas
murmurasse,
num assobio que apenas me espelhasse
pobre refrão a atravancar o meu caminho.
GENTES MORTAS 7
— 23 maio 2024
Que gente morta
ali vai borbulhar,
no crocitar em
quariqui de um sapo
ou no crotalo de
amarelo papo,
que serpenteia
ao longo do caudal?
Talvez alguém me
sussurre no fanal
de flores belas
que surgem dessa lama,
qual pobre gente
que fez ali sua cama
e ainda me fala
sem querer meu mal.
Quem dera que a
canção desse sapinho
se pudesse
transmutar em um soneto,
para saltar ao
coração de gente viva;
quem dera se as
pedras do caminho
trinassem algo,
num cantar secreto,
para as jóias
rebrilhantes de minha diva!
GENTES MORTAS 8
Será a mata plena em solidão
a fonte arguta de meu novo poema,
de que forma ressurgir em doce pena
o cipoal que se cruza na ocasião?
Seria a clareira a me surgir de sopetão
por entre as casuarinas, como gema,
a sacudir suas agulhas nesse lema,
para atrair-me ao assombrar da escuridão?
Que o cipoal recorda esse torneio
de cada verso em que me emaranho,
que me enleia em dédalo tamanho
para atrair-me à labirintina concussão,
mas cada poema redijo sem receio,
mesmo que saiba qual estranha sensação
pode afinal resultar em inspiração?
GENTES MORTAS 9
Talvez devesse inspirar-me a cordilheira
que Neruda descuidado rejeitou,
mas diferente breviário me alentou,
não penso em sangue a sibilar na esteira;
talvez devera me inspirar a cremalheira
que tanta pedra artificial gerou,
mas diferente é a planta que animou
o meu espírito e que de mim se abeira.
Ou então será a linha do horizonte,
nessa cópula do ar com cada serra,
a me escorrer da inspiração a fonte,
mas quem morreu a contemplar o arco
que pinga cada gota do céu com a dura terra,
por que deveria então soprar meu barco?
GENTES MORTAS 10
– 24 maio 24
Outros dirão que
me projeta a Lua,
seus fios
gélidos a aquecer-se em mim,
como feixe de
ossamenta carmesim,
enquanto penso
em vão senti-la nua,
pois tem dois
chifres agudos como pua,
quando
crescente, em seu trajo de arlequim,
mas não fecunda
assim o meu jardim –
seria a Lua que
sobre mim atua?
Ou ao contrário,
vou procurar no asfalto
Esse negror
patético de um verso,
ansiando por
piscar revoluteante,
oculta a pedra
antiga em tal ressalto,
essas feridas de
esplendor inverso,
em que se
hemoptisa meu sonho palpitante.
GENTES MORTAS 11
Há gentes mortas transmutadas em edifícios
ou simplesmente em casas paroquiais;
para o soneto a religião cobra demais,
ao permitir seu poder de precipício,
pois cada verso traz seu próprio malefício,
mesmo se alegre ou em cantos triunfaus
e ao mesmo tempo inspira sempre mais,
ao menos traços de um futuro frontispício.
Não sei por onde me assediam os chacais,
por que me espreitam de soslaio os jacarés,
Cada soneto pode ser um usucapião
desses molhes que apodrecem junto aos cais
ou os crucifixos metalicos das fés,
quais centopeias a me roer o coração.
GENTES MORTAS 12
Quiçá de insetos é que me brote a inspiração,
que afinal, sempre existe um louvadeus,
em seu bote preparado para os seus
vitimizados em cada refeição
e é de pensar qeu me mastigue o coração,
em mil partes remontando até os judeus,
dos sacerdotes cristãos sonhos ateus,
o meu sangue a dispersar na solidão.
Sou peregrino a aguardar meu sacrifício,
No tempo e espaço das franjas de
minhalma,
ao partilhar.da eucaristia dos mortais,
que só sussurram sem sequer fazer
bulício,
nas cristalinas vastidões da calma,
até que eu forje arcobotantes materais.
GENTES MORTAS 13 – 25 maio 2024
A inspiração, dir-me-ão, vem da cascata,
que do subsolo se alça em hesitação,
ou que se explode quase em borbotão
e se expande a degolar a verde mata;
logo outro filete de água se desata,
dentre três pedras, com olhos em botão,
a cortar gluglulejante toda a vegetação,
até outras pedras com quais se debata;
mas o que traz à superfície a simples fonte,
essa deidade ctônica e espeleológica,
a gente morta que no subsolo dorme
e com seus velhos sonhos, pobre arconte,
sem a sigízia de amor, sem qualquer lógica,
no ar se espalha enquanto
a imagem forme.
GENTES MORTAS 14
Ou é o relâmpago que amplia o
coração,
em inesperado e metálico esplendor,
derrete a carne em versos de pavor,
em sua beleza de tonitruante divisão
ou será seu seguidor, surdo trovão,
que a seguir se enlaça em estridor,
que virá a dominar-me por temor,
nessa crueza triunfal de sua canção.
Lembra seu canto o pomo das
Hespérides,
cuja conquista foi da hercúlea
sensação
ou o rebanho dos bois de Gerião,
nesses arcanos repicar das efemérides,
ou o poder emanado deste a terra,
circumbrilhante nessa saga em que se
encerra.
GENTES MORTAS 15
Tomo os olhos que saem dessas
necrópoles,
de algum modo os transformo em
emoção,
na busca álgida de uma nova sensação,
que em si contém minúsuclas
metrópolis;
eu serei para esses olhos a egópolis,
somente em mim encontrarão aceitação,
podem contar-me vingança sem perdão,
mas em mim construirão as suas
demópolis
e cada veso que sangrar de minhs
falanges
será o sangue de ossos ressecados,
que assobiam em louvor dos
assombrados
e em mim seus lábios se tornarão
alfanges,
a sua boca eu serei em metempsicose,
em meu peito doentio a dourar cada
neurose.
Nenhum comentário:
Postar um comentário