ESCARCÉU J
(29/7/2011)
Gwynneth Paltrow
Mesmo não sendo de
minha predileção,
eu me vejo engolido
pelo antanho.
Não é que sinta em
mim ideal tamanho
que me recolha tão
só à recordação.
Bem ao contrário,
volto minha atenção
para o futuro, da
esperança o ganho,
de cada dia, no
presente amanho,
aproveitando
inteiramente a duração.
Mas tenho tanto
rascunho abandonado,
cuja poeira nem
consigo percutir
e tantos livros a
me seduzir,
que em tal viver eu
sinto-me antanhado,
pelos tempos
antigos outrorado,
sem grandes esperanças
de um porvir.
ESCARCÉU JJ
Pois as coisas começam a ter
alma
e a exigir de mim a
permanente
atenção, na inconstância do
presente,
que em mortalha de dever me
embalma.
E a essas multidões eu trago
a palma,
pedindo a paz, em meu esforço
ingente,
sempre a insistir, em verso
diferente,
que me mói e me retira toda a
calma.
E assim, os meus armários têm
fantasma,
igual que a mesa com suas
rimas de papel
e me exige o
computador até demais.
Quando digito, algo de mim se
orgasma,
enquanto os outros fantasmas,
a granel,
arranham-me a atenção cada
vez mais.
ESCARCÉU III
Esta semana, minha
mulher trocou,
talvez premida por
gnômons da cozinha,
toda a disposição
dos móveis que ali tinha
e que tremendo
escarcéu me provocou!...
Foi para mim que
cada duende reclamou
contra a presença
do móvel que ali vinha
perturbar o seu
sossego e desalinha
os espaços
sagrados, que a cada um roubou .
A muito custo
consegui pusesse, então,
de volta ao antigo
lado sua fruteira,
mesmo que um tanto
deslocada por mesinha.
E a tulha antiga
fui girando pelo chão,
até seu posto,
junto à geladeira,
que por sua
ausência tanto se amesquinha...
ESCARCÉU IV – 19 ABRIL 2024
Só eu percebo que incômodos padecem
os móveis e lhes escuto o escarcéu.
Cada um embuçado em obscuro véu,
mas dou ouvidos ao que cada um sofreu.
Eles reclamam pelo espaço seu,
quando são empuxados por arpéu.
O seu clamor se ergue até o céu...
São coisas materiais, a que o tempo deu
uma certa permanência em seu lugar.
Não têm consciência, mas sentem-se afastar
desse perímetro em que achavam segurança.
Que é, afinal, somente o que dispõem,
pois isso clamam que seus protestos soem,
dentro de mim, que os escuto em temperança.
ESCARCÉU V
Também os livros que habitam minhas estantes
desenvolvem de consciência um certo grau,
uns nos outros se apoiam qual degrau
vertical a protegê-los em recantes.
E quando das prateleiras em instantes
são retirados, formando estranho vau,
mal conseguem resistir ao tempo mau,
em que não sentem seu apoio como dantes.
Como eu escuto dos livros os lamentos!
Quando os transfiro para outro lugar
ou os deixo sobre a mesa, distraído,
enquanto me dedico a outros eventos,
até que os gritos se façam sussurrar,
à medida em que seu pranto é enfraquecido.
ESCARCÉU VI
Só se confortam quando são abertos
e deles se inicia sua leitura:
então sua alma se destila pura,
então seus sonhos velhos são despertos,
narram histórias dos longes e dos pertos,
transfundem versos de alegria e de amargura,
informações me transmitem com lisura,
sentem-se úteis e não mais incertos.
Porém há livros por décadas fechados,
cujas teias de letras são espessas,
que nem mais querem que alguém os abra
e quando pego algum destes desraçados,
sinto ranger as dobradiças dos esqueças,
com que esse texto ao sepulcro assim consagra.
ESCARCÉU VII – 20
ABRIL 2024
É como se estivessem tão magoados
por seu tão longo período de exclusão
que não quisessem mais sentir a mão
pelas suas folhas, em dedos apressados,
tal qual que se fingissem amuados
no inesperado momento da intrusão,
pois fechado já lhes fora o coração,
após por tanto tempo desprezados,
igual que a “moça
velha”e conformada
com servir de babá para seus pais,
sem que seu leite para filhos seja aberto
e que até mesmo se apavora ao ser amada,
depois de tanto refugiar-se no jamais
da solidãp como seu destino certo.
ESCARCÉU VIII
Igual se passa com discos esquecidos,
de pé na estante, em promiscuidade,
o clássico e o popular em irmandade,
museus de sons jamais reproduzidos,
mas sempre uns pelos outros protegidos,
ainda afastados das feiras da vaidade;
nem a poeira lhes aumenta a opacidade,
de sentinela sempre ali,
desiludidos.
Mas quando se procura a gravação,
para escutar de novo o seu lamento,
cem mil estalos os plásticos desprendem
e como escuto sua breve exclamação,
quando o vinil ressuscita em tal momento,
dessa cópia em que os tempos se reacendem
ESCARCÉU IX
Ainda guardo cinquenta álbuns de selos,
pelos catálogos muito bem classificados,
em página após página engastados,
antigos alvos de tantos meus desvelos,
mas agora, sem sequer tempo para vê-los,
fico a escutar suspiros desventrados
pelos mil outros em caixas conservados,
pelo prazer que hoje sinto ainda tê-los,
mesmo sabendo que são tantos milhares
que nenhum tempo terei, provavelmente,
para classificar a restante multidão,
dormindo apenas em seus sonhos milenares,
esses selos que já viram tanta gente,
só vendo as capas como as tampas de um caixão!
ESCARCÉU X – 21 ABRIL 2024
Porém quem mais
reclama são rascunhos,
os meus milhares de
poemas esquecidos,
não que por mim
eles sejam excluídos,
mas porque a lavra
é constante em novos cunhos,
remarchetados pela
pele de meus punhos,
por tantos mais
recentes substituídos,
que lhes passaram
na frente, de exibidos,
já digitados em mil
outros extremunhos.
Os seus gemidos são
lentos e macios,
nessa surdina de
tantas prateleiras:
sempre estão de
algum modo protegidos,
no elétrico
estridor de tantos fios,
mesclados de
saliva, suor e poeira,
por entre as lavras
de mil outros esquecidos.
ESCARCÉU XI
Mas que fazer, já que são tão numerosos?
Passei a limpo já centenas e milhares,
mas outros tantos permanecem nos azares
e me dirigem escarcéus bem rancorosos...
Suspeito bem que muitos deles são formosos
e me surprenderiam com os nítidos cantares
daquele homem que já fui em meus pesares
e não sou mais, senão em versos saboeosos.
Mas realmente, passei a limpo tantos,
que os belos textos pura e simples já esqueci,
embora muitos para amigos transmiti,
que às vezes indagam a razão destes meus prantos,
mas que respondo, se os poemas que reli
já se embuçaram num esquecido manto?
ESCARCÉU XII
Algumas vezes sou assaltado por zumbidos
de tantas vozes que ao derredor me adejam,
vozes de amor que o sono me protejam,
vozes de queixa de sonetos malferidos,
do escarcéu de meus livros nunca lidos,
páginas virgens, sem que meus olhos vejam,
discos guardados nem sei mais onde estejam,
as vozes pálidas de autores esquecidos
e nesse conclamar sou destroçado,
a mente inteira conspurcada no pecado
de não fazer o que devia ter feito.
Não sei os dias que de minha vida restam,
apenas sei o quanto me protestam
os versos mudos do que foi um amor perfeito.
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