A PRINCESA MALVADA
(Conto chinês, difundido na Europa no século XVIII pelo livro
Turandotte, de Carlo Gozzi, libreto de Renato Simoni e Giuseppe Adamo para a
ópera Turandot de Giacomo Puccini, recontado e adaptado por William Lagos, 11 JUN 14).
A PRINCESA
MALVADA I
Na Cidade
Imperial e capital chinesa,
também
chamada de Cidade Violeta,
ante o
palácio se reunia a multidão,
a hora
aguardando de assistir à execução
do Príncipe
da Pérsia, de real nobreza
que em dura
prova fora derrotado,
não desvendando
a solução secreta
de um enigma
que lhe fora apresentado
por Turandot,
que da China era a Princesa!
Sobre as
muralhas da Cidade Imperial
ao sol
secavam vinte e seis cabeças
de príncipes
de sangue executados...
Três enigmas
lhes eram apresentados
e caso algum
acertasse cada qual
a mão de
Turandot receberia...
Ela jurara –
é bom que isto não esqueças –
que com homem
nenhum se casaria
se não a
vencesse em seu engenho triunfal!
Ela afirmava
que uma noite aparecera,
durante o
sono, certa ancestral sua,
a Princesa Lo
Uling, a suplicar,
depois de
séculos que já vira passar,
que lhe
vingasse a morte que sofrera,
após se ver
forçada a casamento
com o Rei dos
Tártaros, sob a luz da Lua,
que a própria
vida tirara em tal momento:
mesmo
humilhada, não se submetera!...
E nessa
noite, Turandot jurou
que com um
homem jamais se casaria
ou pelo
menos, mandaria executar
tantos homens
quantos pudesse dominar,
através do
estratagema que criou;
e ameaçara a
Altum, o Imperador,
que também
ela a morte escolheria,
caso a obrigasse
a aceitar qualquer senhor.
Cheio de
medo, Altum a autorizou!...
A PRINCESA
MALVADA II
Filhos e
filhas tivera o Imperador,
mas os
rapazes morreram em combate,
em muitas
guerras; e depois surgia,
em Pequim,
tenebrosa epidemia,
que lhe
causara ainda maior dor,
levando as
filhas todas para a morte;
somente uma a
peste não abate
e sua
linhagem dependia, de tal sorte,
da derradeira
– protegida com ardor!...
Altum à filha
explicou que a dinastia
dependeria
dela, unicamente;
enfim, a um
acordo os dois chegaram
e num pacto
sagrado então juraram:
somente um
sábio corajoso aceitaria
Turandot na
condição de seu marido;
três enigmas
proporia ao pretendente;
quem
acertasse, seria o escolhido,
mas quem
errasse, então a vida perderia!
Foram buscar
nos velhos documentos
vinte e
quatro dos enigmas antigos,
em velhos
livros de papel de arroz
e ao
acréscimo de mais um ninguém se opôs
todos
guardados, sob fortes juramentos,
por oito
mandarins de grande porte;
e quando
algum se submetia a tais perigos
eram
escolhidos no lançar da sorte
e revelados à
princesa em tais momentos...
Mas estava
muito velho o Imperador
e Turandot
tornou-se a sua regente,
logo
exercendo grande tirania:
com
frequência, para a morte alguém seguia...
Pu Tinpao era
o grande executor,
que obedecia
a qualquer ordem da Princesa,
seu coração
de gelo indiferente,
à morte
condenando, em altiveza,
obedecendo-a
todos, por terror!...
A PRINCESA
MALVADA III
Então o
Príncipe da Pérsia aparecera,
sabendo bem
que casando com a Princesa,
seria um dia o
novo Imperador,
porém movido
por desejo e por calor,
pois a beleza
de Turandot o convencera
que jamais
podia querer outra mulher;
mas ao ver os
enigmas, com tristeza,
não
conseguira responder a um sequer
e a própria
vida assim comprometera!...
Soou um gongo
e apresentou-se um Mandarim,
o resultado
proclamando à multidão,
que a notícia
acolheu, com entusiasmo,
execuções
aliviando o seu marasmo,
tendo prazer
na morte alheia e assim
aclamando Pu
Tinpao, o executor;
e na busca
por obter melhor visão,
empurrando
uns aos outros, com vigor,
a um velho
cego jogam no chão, enfim...
Vivia em
Pequim o rei, já destronado,
da Tartária,
servido só por uma escrava;
em seu lugar,
reinava um usurpador
que ao trono
indicara da China o Imperador,
como um
vassalo totalmente dominado;
o Rei Timur
aqui morava às escondidas;
Liú, a
escrava, o guiava e alimentava,
iguais
mendigos, suas riquezas já perdidas,
sem que o
disfarce alguém houvesse adivinhado.
Mas quando o
velho fora derrubado,
quando
ninguém para ajudar se dispusera,
veio em sua
ajuda um pobre camponês...
Reconhecimento
entre os dois logo se fez,
que a última
batalha havia afastado,
cada um
pensando o outro ter morrido;
disse Timur
que Liú o protegera;
falou o
Príncipe não querer ser conhecido
e que seu
nome não fosse pronunciado!...
A PRINCESA
MALVADA IV
“Eu recebi um
golpe na cabeça,”
disse Timur,
“e perdi toda a visão.
porém Liú
surgiu e foi minha guia;
sem ela, eu
certamente perecia...”
“Sem esperar
que a boa sorte vença,
eu lutei,
apesar dos ferimentos,
sendo escondido
pelos mortos num montão,”
disse o
Príncipe, após alguns momentos.
“E ainda peço
à morte que me esqueça!”
“Ao me
acordar, arrastei-me até o rio
e o sangue
das feridas eu lavei;
depois
deixei-me levar pela corrente;
troquei a
armadura com uma pobre gente,
por esta
roupa que me afasta o frio;
e aqui estou,
disfarçado em camponês,
para cuidar
de cavalos me empreguei,
na estrebaria
eu durmo faz um mês,
conservo a
vida, embora perca o brio...”
Enquanto
isso, um grupo de auxiliares
do verdugo Pu
Tinpao, sua cimitarra
traziam; e
uma grande pedra de amolar;
a multidão
muito alegre em seu saudar,
contida
apenas pelo anel de militares,
a invocar
ansiosa o nome da Princesa,
que se
mostrasse de seu balcão na barra
e confirmasse
a sentença, com firmeza,
a execução já
aguardada por milhares!...
Porém viram o
Príncipe da Pérsia aparecer,
entre os
guardas, pés e mãos acorrentados,
mas orgulhoso
e altivo nessa cena,
e a multidão,
de repente, sentiu pena
de ver um
jovem tão bonito assim morrer;
e começaram a
pedir por seu perdão,
porém
chegaram os vultos apressados
de
sacerdotes, arengando à multidão:
“O deus Kuang
Tzê irá sua alma receber!”
A PRINCESA
MALVADA V
Bem nesse
instante, Turandot veio ao balcão;
por ela o
príncipe logo se apaixonou,
graças à
imensa beleza que mostrava
e ao perfume
que seu corpo transpirava!
Em vão Timur
lhe apelou ao coração,
para que
fosse embora da cidade;
em vão Liú
dissuadi-lo procurou,
a
suplicar-lhe, cheia de humildade,
que por seu
pai mostrasse compaixão!...
Mesmo vendo
Turandot não dar perdão,
mandando o
príncipe para seu suplício,
em sua
paixão, o Príncipe Desconhecido
queria tocar
o gongo, entontecido
pela força
inexaurível da emoção!...
Liú lembrou-o
de que um dia lhe sorrira:
para uma
escrava, era o supremo benefício;
e desde
então, nos sonhos ela o vira,
luz
permanente no seu coração!...
Não quis o
Príncipe escutar mais nada;
do grande
gongo seguiu na direção!
Diante dele,
porém se interpuseram
os Três
Ministros imperiais e lhe disseram
que não
agisse de tal forma impensada.
Ping era o
Chanceler e Pang o Tesoureiro,
suplicando
que evitasse a decisão,
junto com
Pong, o Grande Cozinheiro,
também um
cargo da maior alçada!...
Todos três a
pior morte descreveram:
como ele era
um simples camponês,
não teria a
sorte de ser decapitado,
porém seria
horrivelmente torturado!...
Pelas suas
vestes, não o reconheceram
como sendo
ele um príncipe também:
e então seria
seviciado por um mês!...
Seu nome ele
não quis dizer, porém;
Timur e Liú
tampouco o revelaram...
A PRINCESA
MALVADA VI
Não desejavam
outra morte os conselheiros,
pois
lamentava o próprio Imperador,
arrependido
por dar consentimento
de Turandot
ao terrível juramento...
E lhe
disseram, nos termos mais certeiros,
que a
Princesa era tão só uma mulher,
que a sua
vida tinha muito mais valor,
que fosse
embora para um lugar qualquer:
“Olhe as
cabeças dos candidatos derradeiros!”
“Veja bem,
meu rapaz,” Pang falou,
“fazem três
anos que ocorre esta desgraça!
No Ano do
Rato, os primeiros seis morreram;
no Ano do
Cão, mais oito pereceram,
mas o Ano do
Tigre agora nos chegou
e doze
príncipes perderam já a vida!...
Em breve, o
carrasco traz à praça
de outra
vítima, a cabeça desvalida!...”
“Vinte e sete
serão!” – Pong contou.
“Mas não é só
uma questão de caridade!
Vários
exércitos nos atacam as fronteiras:
os pais dos
mortos buscam a vingança!...
Aonde quer
que nossa terra alcança,
travam
batalhas de grande crueldade!...
Sagárika da
Índia, veja lá, ainda traz sinos,
como brincos
nas orelhas; Haraveiras
chegou de
Samarkand; e Maravinos
da Birmânia
se somou à mortandade!...”
“Veja a
cabeça daquele japonês,
que era filho
do Shogun, governador
e general do
rei!... E o dos Quirguizes,
com seu
costume de argolas nos narizes!
Morreu o
filho do rei vietnamês,
Um do
Cambodja e mais outro do Laos!
Já não
suporta mais o Imperador
ver as
fronteiras imersas nesse caos!...
Se insistir,
amanhã será a sua vez!...”
A PRINCESA
MALVADA VII
Já estava o
Príncipe quase desistindo,
quando surgiu
um grupo de fantasmas,
as tristes
almas dos vinte e seis executados,
que lhe
pediam para ser vingados,
ao menos os
enigmas conseguindo
resolver!...
Morrera já gente demais!
“Candidato,
não demores! Por que pasmas?
Queremos ver
Turandot uma vez mais,
mesmo mortos,
na paixão ainda insistindo!”
Chegou Pu
Tinpao no alto da muralha
e ali
pendurou outra cabeça!
Liú confessou
seu grande amor
para com o
Príncipe e seu igual pavor
pela dor e
sofrimento que não falha:
“Na estrada
do exílio morreremos,
seu pai e eu,
apesar do que lhe peça!
Sem sua
proteção, pereceremos:
fome e doença
por lá a morte espalha!...”
Disse-lhe o
Príncipe que ela não chorasse,
pois se um
dia um sorriso lhe mostrara
fora prova de
amizade e não de amor;
que ela era
bela e alcançaria o favor
de qualquer
outro homem que encontrasse;
por amor
dela, a seu pai receberia;
porém sua
sorte, o fado lhe traçara,
portanto
agora o gongo tocaria:
que Turandot
as questões lhe apresentasse!
E apesar do
que Liú argumentou,
o Príncipe
aproximou-se, bravamente
e fez o gongo
soar com seu martelo;
no balcão
Turandot mostrou seu rosto belo,
porém gélido
como a lua que brilhou
nos
cemitérios e nos campos de batalha.
“Ó camponês,
que me desafias tolamente,
amanhã tua
argúcia provarei, sem falha!”
E o verdugo,
ao lado dela, gargalhou!...
A PRINCESA
MALVADA VIII
No outro dia,
o Príncipe apareceu
na esplanada
diante do castelo,
acompanhado
por imensa multidão,
antegozando
uma nova execução.
Até Altum, o
Imperador, compareceu
e procurou ao
pretendente convencer,
que
desistisse de sua louca tentativa,
que remorso
não queria mais sofrer
por mais um
jovem, que sem razão, morreu!
Porém o
príncipe, altivamente, respondeu:
“Perdoe-me
discordar, Filho do Céu!...
Porém desejo
submeter-me ao julgamento;
de meu
triunfo é meu inteiro pensamento!”
Então o
Imperador se convenceu
que era
inútil outra vez argumentar:
de novo a
morte ergueria o negro véu
e Pu Tinpao
outra vida iria ceifar...
Que o exame
começasse concedeu!
Então subiu a
escada um Mandarim
e à multidão
reunida proclamou
a mensagem
que já todos conheciam:
que a Princesa,
a quem logo eles veriam
seria a
esposa daquele que, em Pequim,
os três
enigmas conseguisse resolver.
Mas uma vez
ao candidato convidou
que
desistisse, senão iria morrer
caso ele
errasse uma só resposta, alfim!
Porém o
Príncipe reiterou sua convicção
de que as
três provas firme venceria.
Então
Turandot mostrou-se na sacada,
ainda mais
bela que jamais fora contemplada,
e proclamou,
violenta em sua paixão,
que sua
ancestral Lo Uling iria vingar!
Mais uma vez
à morte levaria
esse atrevido
que viera ousar,
em sua
imprudência, a lhe pedir a mão!...
A PRINCESA
MALVADA IX
“Muitos
príncipes até hoje aqui chegaram,
com seus
presentes, em longas caravanas,
e a todos
eles concedi a mesma sorte:
quem me
corteja, só corteja a morte!
Meus três
enigmas todos eles escutaram,
morrendo
todos, cada um deles por sua vez!...
Tu, camponês,
com ambições insanas,
irás morrer,
sem responder às três,
como tantos
que para o cepo já marcharam!”
“Não, minha
Princesa, eu serei o vencedor!
Por três
enigmas jamais me perderei;
não irei
suportar pena de morte,
viver
convosco será minha longa sorte!...
Pela pureza
do meu grande amor,
somente eu
alcançarei sucesso;
os três
enigmas sem temor resolverei
e vossa mão
receberei, com grande apreço,
pois mais que
todos, saberei dar-vos valor!...”
“Pois bem,
então escuta, forasteiro,
os três
enigmas determinados pela sorte
que os Oito
Sábios agora lançarão,
cujas
respostas talvez confirmarão!...
Porém se
errares o enigma primeiro,
não te darei
nova oportunidade;
de imediato,
sentenciarei tua morte
e sofrerás
torturas de verdade:
não és um
príncipe, mas camponês rasteiro!”
“A dignidade
não está no nascimento,
porém na
extensão do meu amor!...”
“Então,
escuta: “Na mais negra noite,
um fantasma iridescente tem acoite;
suas asas abre contra o humano julgamento,
e assim por ele a humanidade inteira implora,
mas quando o dia surge, em seu vigor,
desaparece, perante a luz da aurora,
na outra noite para alcançar renascimento!”
A PRINCESA
MALVADA X
“Sim,
Princesa, a cada noite ele renasce,
mas vindo o
dia, logo se desvanece;
só na alma
permanece da criança,
que esse
fantasma, Turandot, é a Esperança!
Ante a
tristeza de cada dia desfaz-se;
durante a
noite, no sonho que fascina,
sempre
envolvido no manto de uma prece,
mais uma vez
a vida nos domina:
por minha
resposta, tal enigma satisfaz-se!”
Mordeu os
lábios a princesa, derrotada!
E os Oito
Sábios leram seus documentos:
“Majestade, a
resposta está correta!
Só a Esperança a alma humana afeta
a cada noite,
para vê-la desapontada
pela dor e vicissitudes
quotidianas!...
Para a
resposta passamos julgamentos:
está correta,
dentro das humanas
capacidades
de vê-la revelada!...”
Porém
Turandot recuperou-se:
segundo
enigma logo declamou:
“O que queimou como fogo, mas não o é?
Que enfurecido, alimentou a toda fé;
vindo o cansaço, seu ânimo esgotou-se
e no medo ou na derrota, ficou frio;
vendo a vitória, de novo se inflamou;
e a quem escuta sua voz com todo o brio,
brilha feroz, qual faz o Sol ao pôr-se!...”
“Sim,
Princesa, igual que fogo nos aquece,
se na
tristeza a alma nos esfria,
vinda a
vitória, fortalece o peito exangue;
vermelha como
o ocaso é a cor do Sangue!
Pois se
renova quando o triunfo desce...
Mais um
enigma decifro nesta hora
e a incerteza
de minha alma se alivia:
ferve meu Sangue como nunca outrora
e tal
resposta ainda mais me fortalece!”
A PRINCESA
MALVADA XI
Turandot, de
despeito, enfureceu-se
e para os
sábios feio olhar lançou,
mas a verdade
foi logo proclamada:
“Esta é a
resposta correta revelada;
segunda vez a
vitória sucedeu-se;
resta, ó
Princesa, somente uma terceira.
Proclame
agora o que a sorte revelou:
caso ele dê a
resposta verdadeira,
venceu o
teste e sua vitória confirmou-se!...”
Passada a
raiva, Turandot amedrontou-se
e decidiu até
a sorte contrariar,
pois ao invés
do terceiro enigma sorteado
se decidiu
pelo trigésimo terceiro acrescentado,
por ordem
sua, aos que o passado trouxe...
Havia estudado aquele candidato!
Trinta e duas respostas soubera decorar...
Mas vamos ver se vencerá, de fato,
quando alguma inesperada apresentou-se!
Ela ordenou
aos guardas que açoitassem
os Oito
Sábios por falarem a verdade!
Desceu a
escada, fervente de ameaça
e o Príncipe
ajoelhou-se ante sua graça
e algum temor
que suas palavras inspirassem...
“Diga-me
então, ó atrevido camponês:
Qual é o fogo que tem mais frialdade,
qual gelo branco é negro como pês,
geladas brasas que teus cabelos chamuscassem?...”
“Quem te pode libertar inteiramente
e nesse gesto então te escravizar?
Quem como escravo poderá tornar-te
e nesse gesto igual que rei coroar-te...?”
“Fala,
estrangeiro, ou estás gelado internamente?
“Qual é a geada que se transforma em fogo
e qual o fogo que consegue te gelar...?”
“Desiste
agora e te darei o desafogo
ou dá a
resposta e irás morrer incontinenti!...”
A PRINCESA
MALVADA XII
“Mais um
enigma minha argúcia desafiou
e acreditais
poder-me derrotar...
Porém vos
enganais, bela Princesa,
pois meu amor
é mais forte que a esperteza...
Qual é o fogo
que um coração gelou?
Qual é a
geada que o queima como fogo?
Quem pode em
rei e escravo me tornar?
Pois vou
replico, com pleno desafogo:
só uma
resposta existe – e é Turandot!...”
A Princesa
agora quase desmaiou
e encarou os
sábios, inclemente;
porém um
deles, embora esfarrapado,
após ter sido
cruelmente flagelado,
um documento
novo desdobrou:
“É certa esta
resposta, Imperador!
Seu teste ele
passou completamente
e a
recompensa merece de valor:
a mão de jade
da bela Turandot!...”
“Filho do
Céu! Augusto! Eu vos suplico!
Não me
obrigueis a casar com camponês!
Será um
destino pior que o da ancestral!...
Invalidai o
teste, o cetro tendes imperial!...”
Mas lhe disse
o Imperador: “Assim eu fico
sujeito à
maldição do juramento!...
O julgamento
sagrado que se fez
ele venceu,
sem qualquer impedimento!...
Proclamo
agora o esponsal mais rico!...”
“Pai querido,
meu senhor, Imperador,
não me
vendas, igual que fosse escrava!
Eu morrerei,
varada de vergonha!...
Casar não
devo, sem que a tanto me disponha!”
“É santo o
juramento e confirmo seu valor!”
“É sagrado o
juramento!” – gritou a multidão,
“Mais
poderoso que do vulcão a lava!...”
“Os
derrotados não tiveram o seu perdão!”
Disseram os
Oito Sábios com ardor!...
A PRINCESA
MALVADA XIII
“Ninguém me
possuirá contra a vontade!”
“É sacro o
juramento!” – disse cada Mandarim
“Ele é
sagrado!” – disse cada funcionário.
“Não se
quebranta por desejo atrabiliário!
É santo o
juramento e não há contrariedade!”
“Pois então,
a mim mesma eu matarei!...”
“Não podereis
furtar-vos dele assim!
Nem a morte
vos liberta e nem o rei!...
Só o vencedor
terá essa faculdade!...”
Então ao
Príncipe dirigiu-se Turandot:
“Você deseja
prender-me nos seus braços
cheia de
cólera, envergonhada e relutante?
Hei de
esvaziar o seu ato triunfante!...”
E o Príncipe,
gentilmente, concordou:
“Pelos
fantasmas dos que me precederam,
desejo amor
perfeito nos seus traços...
Mostro a
piedade que eles não tiveram
e por seus
três, um só enigma lhe dou...”
“Nesta
cidade, meu nome ninguém sabe,
nem qual seja
minha verdadeira condição...
Assim,
Princesa, eu lhe darei até a aurora
para que diga o meu nome nessa hora!
Caso o consiga, só ao carrasco cabe
decapitar-me a cabeça enamorada!...
De meu amor,
avalie agora a extensão:
de meu
direito eu abro mão por nada;
de amor maior
ninguém jamais se gabe!...”
E disse
Turandot: “Aceito o desafio!
Irás morrer,
se eu puder adivinhar!...”
Mas disse o
Imperador: “Não será assim!
Se à sua mão
ele renunciar, enfim,
antes que
chegue da aurora o vento frio
que ao Sol
precede, com seus raios de vigor,
seu juramento
perderá todo o valor,
pois
quebrantou-o, com total falta de brio!...”
A PRINCESA
MALVADA XIV
“Esse rapaz
poderá perder a vida,
caso consigas
adivinhar-lhe o nome,
porém o teu
poder retirarei
e com noivo
de minha escolha a casarei!”
“Mas enquanto
me não confessar vencida
exercerei
integralmente o meu poder!
Só
permitirei, augusto pai, que o tome
depois que a
aurora chegar e ele morrer!
Até então,
serei totalmente obedecida!...”
“São tais os
termos de seu consentimento!”
E os
ministros avisaram o Imperador
que a ordem
antiga não podia invalidar,
senão seria
ele o juramento a quebrantar!
Assim de
novo, deu Altum assentimento
e disse
Turandot: “Sob pena de morte,
ninguém há de
dormir, até que o teor
desse Nome eu
descubra e sele a sorte
desse
imprudente, em seu final momento!”
“Quando uma
hora faltar para a alvorada,
se o seu Nome
revelado não me for,
eu mandarei
incendiar toda a cidade
ou a todos
degolar, sem ter piedade!
Que ninguém
durma,até que seja revelada
essa
resposta, pois mandarei cercar
vossas
muralhas, sem ter pena nem favor!
E nem o Imperador
pode negar
o cumprimento
da sentença proclamada!”
“Você é
perversa!” – disse o velho Imperador,
“porém
ninguém irá tocar no candidato!
De forma
alguma poderá ser torturado
ou de
qualquer outra maneira perturbado:
sobre ele
estendo o meu pálio protetor,
até que o
Nome lhe seja revelado
ou que
ninguém o obtenha em real fato!
Destarte o
manterei sempre a meu lado
e como genro
obterá o meu favor!...”
A PRINCESA
MALVADA XV
“Que seja
assim!...” – conformou-se Turandot,
“mas sobre
todos os demais terei poder!
Que ninguém
durma! Até o Nome descobrir,
será
decapitado quem for visto a dormir!...”
Para seu
quarto então se retirou
e toda a
gente esforçou-se a indagar,
todo o
albergue e estrebaria a percorrer,
porém o Nome
não conseguiam encontrar
e nem criança
um breve sono conciliou!...
Os Três
Ministros se puseram a lamentar:
“Também nós
morreremos em tristeza!”
Disse Ping:
“Em Honan, diante do lago,
eu tinha uma
casinha, no meu pago,
por que a
ambição me trouxe a este lugar?”
E disse Pong:
“Eu tinha um bosque em Tsiang!
Por orgulho o
deixei, em minha vileza
e minha
vaidade pagarei com o meu sangue...
Ah, se eu
pudesse para lá voltar!...”
E disse Pang:
“Eu tinha o meu jardim
na aldeia de
Kiú e o fui deixar!...
Como fui
tolo! Toda a honra e a riqueza
não valerão a
minha vida, com certeza!
Pois vamos
todos três morrer assim!...
Pu Tinpao já
saiu com os auxiliares
e quem dormir
ele vai decapitar!...”
“Ai, hoje as
mortes serão muitos milhares!”
Choraram
juntos: “Nós teremos igual fim!...”
Mas disse
Ping: “Existe uma saída,
conforme
decretou o Imperador!
O pretendente
pode renunciar:
se for
embora, ninguém o poderá tocar
e tampouco
alguém aqui perderá a vida!”
Então os três
ao Príncipe buscaram,
oferecendo
recompensas de valor:
com cem
escravas o desejo lhe tentaram,
mais a
riqueza que lhes fora concedida!...
A PRINCESA
MALVADA XVI
Mas foi em
vão que pediram a sua piedade
e com a morte
novamente o assustaram.
“Por nomes
falsos só me conheceram,
tampouco quem
eu sou reconheceram...”
“Mas ela vai
queimar toda a cidade!
Está matando
quem dorme, até crianças!
Também os
pais que no esforço fracassaram
de mantê-las
acordadas; não há esperanças,
nossa
Princesa tem hoje plena liberdade!”
Porém o
Príncipe ainda mais se endureceu:
“Qual a
piedade por meus predecessores?
Toda a cidade
em suas mortes consentiu!
Por que ter
pena, se hoje alguém dormiu...?”
“Qualquer
reino da Terra será seu
que esteja
submetido a nosso Império!...”
“Eu só desejo
o reino dos amores
e só o de
Turandot eu levo a sério...
É culpa dela
se alguém hoje pereceu!...”
De
convencê-lo os Ministros desistiram,
porém do povo
alguns logo delataram
terem-no
visto com um cego conversando
e com a moça
que seus passos ia guiando!
E onde se
abrigavam logo viram...
Os Ministros
os trouxeram a Turandot,
mais o dono
da estrebaria que encontraram...
Que este nada
sabia se provou
e ao
patíbulo, sem piedade, o conduziram!...
Mas Turandot
ao outro par interrogou,
convencida de
que sabiam o segredo!...
Disse Timur:
“Eu nada vi, sou cego!...
Podem matar-me,
à vida não me apego...”
Falou a
Princesa: “Mas a jovem o enxergou
e ir-me-á
revelar a verdade pura!...
“Eu nada sei,
portanto em nada eu cedo!...
“Vamos ver o
que dirá sob tortura,
quando a
interroga a voz de Turandot!...”
A PRINCESA
MALVADA XVII
Disse o
Príncipe: “Só do chão eu levantei
o pobre cego;
sequer eles me conhecem!”
Falou a
Princesa: “Então, matem o cego,
que já nos
disse não ter à vida apego!”
Porém Liú
gritou: “Eu sei! Somente eu sei
o Nome desse
heroico pretendente!...”
“Revele-o então,
para livrar os que padecem!”
disse o
ministro Ping, ainda insistente.
“O Nome eu
sei, porém nunca eu o direi!...”
Quando o
carrasco dela se aproximou,
o Príncipe
postou-se em frente dela:
“Eu não
permito que lhe façam mal algum!
Só conhece um
nome falso, que a nenhum
O verdadeiro
aqui em Pequim se revelou!”
“Prendei
agora a ele, finalmente!...”
“Não,
Princesa, proibiu-o o Imperador!”
“Ponham de
lado a esse jovem insolente;
Façam com ela
o que ordena Turandot!”
“Alteza, esse
nome é apenas meu,
mas vou guardá-lo
com o maior prazer!
Certo dia,
esse jovem me sorriu:
rosto mais
belo o meu olhar não viu!
Ainda que
amor igual nunca me deu,
até à morte
seu mistério guardarei;
sob tortura e
no maior sofrer,
este segredo
nunca eu trairei
e não
consinto jamais que seja seu!...”
“De onde essa
força vem ao coração?”
“Princesa,
ela é do amor o resultado!
Os meus
tormentos serão o meu presente,
fiel prova do
sentimento que me assente:
maior que
amor não existe outra emoção!”
Mas o povo
exigia, em seu terror,
que seu
martírio fosse executado!...
“Maior é o
medo do que qualquer amor,
maior é a dor
do que qualquer paixão!...”
A PRINCESA
MALVADA XVIII
“Não,
Princesa, nada vale mais que o amor!
Eu morrerei
para que ele vença novamente!
Para que o
gelo desse seu coração
também
derreta ao calor dessa emoção!”
E de repente,
num gesto de vigor,
tirou de um
guarda o afiado punhal
e o cravou no
peito, inteiramente!...
“Ganha teu
bem pelo preço de meu mal!”
gritou ao
Príncipe, em seu último estertor...
Timur tentou
fazer com que se erguesse,
mas o guardas
intentaram afastá-lo:
“Seu coração
lâmina aguda porta,
Ergue-te,
cego, tua guia já está morta!”
“Ah, que um
crime tão brutal acontecesse!
O seu
fantasma virá buscar vingança,
com a minha
maldição a suportá-lo!...
Trará castigo
sobre vós, sem esperança,
por
permitirdes que inocente assim morresse!”
Cheia de
medo, afastou-se a multidão,
fugiram
guardas e ministros, até mesmo Turandot!
Ergueu o
Príncipe a morta com seu pai;
chamou o cego
e pela mão agora vai
colocá-lo sob
a imperial proteção,
sem que
ninguém a interrogá-lo se atrevesse...
De Turandot a
fúria se apagou,
sem entender
que por amor alguém morresse,
a suplicar ao
fantasma por perdão!...
Fugiram
todos, ainda sem dormir,
porém seu
manto estendeu o Imperador:
“Que ninguém
durma, diz ela, ninguém durma! (*)
Como é
covarde e cruel toda essa turma!
Tu, ó
Princesa, no frio quarto a te afligir,
olha as
estrelas, que tremem de esperança!
Pois meu
mistério eu guardo com vigor;
só o direi
contra tua boca, na bonança
do longo beijo
que me hás de permitir!...”
(*) Esta é a famosa ária Nessun dorma!)
A PRINCESA
MALVADA XIX
“Serás minha,
quando o Sol abrir a aurora!
Só então o
meu silêncio romperei.
Causaste a
morte desta jovem inocente,
pouco me
importa que igual mates a tua gente!
Desaparece, ó
noite, nesta hora!
Descei,
estrelas, para além do horizonte!
Chegando a
alva, eu só triunfarei
e vencerei
tão logo o Sol desponte!
Será premiada
a minha coragem, sem demora!...”
Contudo o
Príncipe do quarto aproximou-se,
quando
escutou de Turandot o pranto;
os guardas
prontos, com tocha em cada mão,
outros
soldados prendendo a multidão,
porém sua
ordem final não escutou-se...
Ela hesitava,
sem saber o que fazer...
Das ruas
subia do lamento um canto...
Devo fazer toda essa gente perecer?
Em seu leito,
Turandot interrogou-se...
Eu garanti que a todos mataria,
se não me dessem o Nome, antes da aurora!
Porém de nada me adiantou essa ameaça...
De que me servem mil mortos numa praça?
Mas o respeito de todos perderia,
se dessa ordem hoje voltasse atrás!...
Preciso decidir-me: eis a hora!...
Mas se em fogueira Pequim hoje se desfaz,
será o fim de minha própria dinastia!...
Então o
Príncipe tomou sua decisão
e entrou às
pressas no quarto da Princesa!
“Ah, ignóbil,
como até aqui se atreve!?”
“Vós sereis
minha esposa dentro em breve!”
“Por que veio
me trazer humilhação?
Por que
escutou como agora estou indecisa?”
“Só vim
trazer alívio a Vossa Alteza!
Amo-a inteira
e não de alma divisa...
Meu nome lhe
direi nesta ocasião!...”
A PRINCESA MALVADA
XX
“Mas,
infeliz, não vê que morrerá?
Resta uma
hora desta madrugada!”
“Não importa,
eu o direi se me beijar,
Princesa da
Morte, para a vida proclamar!
Princesa de
Gelo, não se derreterá
por este
beijo, na glória do momento...?”
Tomou nos
braços a sua face perfumada,
num longo
ósculo do mais puro portento...
“Nenhum amor
por mim então terá..?”
“Como posso
por um plebeu amor sentir?”
“Pois lhe
direi minha verdadeira posição:
eu sou Kalaf,
da Tartária o herdeiro!
Há usurpador,
mas eu sou o verdadeiro!”
Turandot foi
até a janela, perquirir
se o Sol já
se mostrava em arrebol...
Só viu da
aurora o mais débil clarão...
“Deu-me seu
nome, sem da luz ver o farol,
Para sua
morte ordenar me permitir...?”
“Chegou a
hora, então, do julgamento!
Então, não
tremes? Não tentarás fugir...?”
“Com um beijo
de amor findou minha história;
onde jamais
encontrarei outra igual glória?”
Turandot
escondeu seu pensamento
por trás dos
cílios de singular negror...
Kalaf ereto,
sem em nada se iludir...
Reuniu-se a
multidão, ainda em temor,
receando a
morte e mais ainda o sofrimento!
Mas ela
disse: “Meu pai e Imperador,
o Nome,
finalmente, eu descobri,
faltando
apenas uns instantes para a hora!
Breve em
Pequim nos surgirá a aurora!...
Povo chinês,
esquecei vosso terror!...
Esse enigma,
cujo medo vos consome,
apenas eu, eu
sozinha, resolvi!...
O meu
Príncipe revelou-me ora seu Nome!...
Escutai
todos: Ele se chama Amor!...”
EPÍLOGO
E assim, o
matrimônio celebrou-se,
com grande
pompa e alegria em toda a China;
abdicou Altum
em seu favor,
vendo Kalaf e
Turandot em grande amor!
Toda a
maldade do reino dissipou-se;
Foram
tratados de paz ratificados
e das guerras
afastou-se a triste sina...
Os reis
viveram muito enamorados
e desta
forma... a lenda completou-se!
Ah, querem
saber mais? O usurpador
foi deposto
na Tartária; Ping foi para seu lago,
Pong voltou
para seu bosque em Tsiang;
Pang para seu
jardim, em torno ao mangue...
Cresceu o
comércio, com grande vigor,
Timur e Altum
se tornaram bons amigos,
Jogando mah-jongg e halma, com afago,
sabendo o
cego só por tato os seus perigos,
feliz a China
sob seu novo Imperador!...
(Se você
gostou desta história, procure escutar a ópera Turandot de Giacomo Puccini, ou
ao menos a ária Nessun dorma! (que agora
sabe o que significa) e que Luciano
Pavarotti popularizou com seu famoso “Dó de Peito!”...)
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