O CALIFA CEGONHA
(Conto de Wilhelm Hauff, adaptado para o inglês por Pearl S.
Buck. Embora exista uma tradução em
português de Ana Maria Machodo, esta não foi consultada pelo autor da
presente versão. Califa é um título
religioso, portanto o nosso Khaled é tanto rei como sumo-sacerdote. Os nomes originais da versão de Pearl S. Buck
foram trocados por serem judaicos e não árabes ou hindus.)
Tradução e versão poética de William Lagos, 13 jul 14.
O CALIFA CEGONHA I
Khaled, o Magnífico,
foi califa em Bagdá,
com todas as
prerrogativas de seu cargo,
mas muitas vezes ele
se aborrecia,
porque os deveres
repassara a seu vizir
ou de sua corte aos
sábios conselheiros;
quando amuado, se
tornava amargo
e a nenhuma
solicitação satisfazia;
tinha cem esposas, mas
não tinha herdeiros;
fumava o narguilê,
porém dormir
só conseguia após mil
preces para Alá...
E desse modo, passava a sua manhã
nesse descanso que não tivera à noite;
acordando ao meio-dia, tomava seu café
e então fazia uma lauta refeição,
para depois, voltar a descansar,
deixando dos problemas o vasto afoite
para seus conselheiros: e o vizir até
esperava com paciência começar
este momento de maior satisfação,
quando o encontrava reclinado em seu divã...
Era o momento de fazer
pedidos
e os problemas do
reino apresentar
que só o califa
poderia resolver;
contudo, ele nunca
exagerava;
só em uma coisa ou
duas, com paciência,
ele vinha a seu califa
consultar;
apesar desse alto
posto preencher,
ele era pobre, mas
achava impertinência
contar ao rei as
dificuldades que passava
na execução de seus
deveres tão compridos.
O CALIFA CEGONHA II
Ora um dia, Mansur,
que era o vizir,
apresentou-se ao
iniciar da tarde
e três vezes se curvou,
em humildade,
perante o majestoso
soberano...
Indagou como estava
sua saúde
para depois
apresentar-lhe, sem alarde,
alguns problemas de
maior gravidade.
“Senhor califa,
preciso que hoje estude
certas questões para o
povo muçulmano,
que só o senhor é que
pode decidir...”
“Ora, é até bom ter algo que fazer!...
disse Khaled, com todo o bom-humor;
de minhas esposas estou aborrecido,
com as odaliscas não me posso distrair...”
“O reino está em paz e alegre o povo,
que por Vossa Majestade tem amor,
cada decreto sendo obedecido...
De vosso digno pai sois o renovo...”
“Talvez, porém a noite passo sem dormir;
queria até vinho então poder beber!...”
“É uma lástima, porém
nosso Profeta
toda bebida alcoólica
nos proibiu:
faz muito mal para
quem mora no deserto!”
“Pode ser, mas nós
moramos em cidade...
Não se altere, Mansur,
sei resistir;
sigo os preceitos,
igual meu pai seguiu;
sou muçulmano de
coração aberto...
Porém de noite, quando
não posso dormir,
eu lhe confesso, com
toda a honestidade,
que a tentação da bebida
até me afeta...”
O CALIFA CEGONHA III
“Mas a verdadeira
razão da tentação
é que o crente a
consiga resistir...”
“Se ao menos não fosse
assim tão enfadonha
essa vida que levo,
meu amigo!...
Mas ande logo, mostre os documentos...”
Khaled, após cada
problema perquirir,
tudo assinou, com
expressão tristonha.
“Agora que completei
os julgamentos,
o dia inteiro vazio
terei comigo...
Se houvesse guerra,
ainda teria distração...”
Mansur, ao ouvir tal frase, perturbou-se:
e se o rapaz declarasse alguma guerra,
que mais não fosse para se distrair...?
Então, lembrou:
“Majestade, ante o castelo
oferece os seus artigos um mascate...
Coisas lindas até seu fardo encerra,
sem alto preço por elas exigir...
Mas minha pobreza meu desejo abate,
porem vós tendes do tesouro o selo...”
E o califa pela ideia interessou-se...
O vizir mandou chamar
o ambulante,
um homem feio, retaco,
bem baixinho,
de rosto escuro e
expressão sagaz,
que se prostrou
perante o trono, em rapapé...
Que levantasse, Khaled
lhe ordenou
e lhe mostrasse seus
artigos, com carinho...
O mascate logo ao
califa satisfaz,
que um belo par de
pistolas lhe comprou,
uma caixinha
ornamentada de rapé
e mais um pente, por
preço exorbitante...
O CALIFA CEGONHA IV
Era um presente para a
esposa do vizir,
A quem uma das
pistolas também deu;
chegou depressa da
Corte o Tesoureiro
que ao mascate seu
preço lhe pagou.
Mas indagou o califa:
“É só o que tem?
Quinquilharias bonitas
me vendeu,
mas sem magia; quando
o chamei, primeiro,
pensei em coisas
mágicas também...”
Do mascate a expressão
se transformou:
“Majestade, não quero
em nada o iludir...”
“Mas talvez eu aqui tenha um certo artigo
que eu adquiri de um pobre peregrino,
da santa Meca em uma viela estreita...
Mas lhe confesso que não sei o seu valor:
é só uma caixa que contém um pergaminho,
mais uma caixa menor, cujo destino
não sabia o pobre homem, nessa feita;
mas insistiu, antes de seguir o seu caminho
e o pergaminho tinha um jeito sedutor...
Eu o comprei, mas ler o escrito não consigo...”
“Acho até que são letras
dos romanos,
tão diferentes da
caligrafia santa
que nos legou o nosso
bom Profeta,
o Mensageiro, santo
Rassul de Alá...
Mas, meu senhor,
vender-lhe não consigo,
que uma suspeita o meu
peito espanta;
qualquer maldade pode
conter, secreta
e não desejo lhe
causar qualquer perigo...”
Melhor maneira de
despertar não há
a curiosidade do
senhor dos muçulmanos...
O CALIFA CEGONHA V
Disse o califa: “Você
pretende me enganar,
para aumentar de tal
caixa o seu valor?”
“Não, Majestade, é
minha última intenção;
vender-lhe eu a vendo,
por apenas um dinar;
só pense bem que pode
haver perigo...”
Mas o califa não
sentiu qualquer temor;
abriu a caixa sem a
menor consideração
e só continha o
manuscrito antigo
e uma caixinha, com um
pó negro a revelar;
decidiu-se a um tal mistério
decifrar...
Após autorizar a saída do mascate,
Khaled e Mansur estudaram o documento.
“Não é escrita desta terra, certamente,
nem língua grega... Quem sabe, seja hebraico.
Vou mostrar para os onze conselheiros...”
Mas nenhum o pode decifrar nesse momento.
“Não se trata de qualquer língua do Oriente,
nem é do Egito ou dos fenícios altaneiros;
é escrita de infiel ou algo de arcaico...
À nossa ciência sua tradução abate...
Contudo, um
conselheiro se lembrou:
“Majestade, lá no
Bairro da Mesquita,
reside um homem
bastante pretensioso...
Selim, o Sábio, é como
se apresenta,
que do Conselho já se
atreveu a zombar...
Se alguém pode
entender essa esquisita
linguagem do
pergaminho fabuloso,
em Bagdá, só ele a
pode decifrar...”
Qualquer malícia
também ali se atenta:
que ele erraria, o
conselheiro ia apostar...
O CALIFA CEGONHA VI
Selim, o Sábio, foi
logo convocado
e ante o califa se
apresentou com medo.
Disse Khaled: “Você
pretende saber tudo,
bem mais que meu vizir
e os conselheiros;
pois vou-lhe então mostrar
um documento;
se conseguir decifrar
o seu segredo,
será bem recompensado;
porém, se ficar mudo
ou me mentir,
castigarei seu atrevimento
por pretender
conhecimentos verdadeiros,
sem ser um sábio pelo
palácio autorizado!”
Disse Selim: “Majestade, farei o que puder!
Conheço muitas línguas, na verdade;
escrevo cartas e traduzo documentos;
mas Selim, o Sábio me chamar não resolvi:
foram os clientes que ficaram satisfeitos...”
“Se o decifrar, na maior veracidade,
eu confiarei em seus futuros julgamentos;
de conselheiro terá todos os direitos,
traje de gala e o salário que escolhi:
completa doze: há pouco um deles foi morrer...”
“Porém, se não mostrar
sabedoria
ou se tentar me
impingir uma mentira,
mandarei dar-lhe vinte
e quatro bofetadas,
para aprender a não
ser um charlatão!
Sairá depois
chicoteado da cidade
e para que a terra
seus maus passos fira,
levará nos pés vinte e
quatro bastonadas!”
“Majestade,” disse
Selim, com humildade,
maior castigo será
falhar nesta ocasião
ao meu califa nisso que
me pediria...”
O CALIFA CEGONHA VII
O califa lhe
apresentou o pergaminho
e num instante seu
rosto se aliviou:
“Majestade, essa é a
língua dos romanos;
o documento está
escrito em seu latim!”
“E por acaso você o
pode traduzir?”
“Sim, Majestade!” E logo começou:
“O
pó da caixa permitirá aos humanos
em
qualquer ave ou animal se travestir,
desde
que saiba proceder assim:
cheirar
uma pitada somente do pozinho...”
“E então curvar-se três vezes para o Oriente,
da sacrossanta Meca no sentido
e pronunciar a palavra: MUTABOR,
no animal que quiser virar pensando;
compreenderá a língua que eles falem;
para voltar, basta que seja repetido,
na língua do animal, sem ter temor
que na garganta tais palavras calem,
o mesmo termo, logo se transformando
na forma exata de quando fora gente!...”
“Mas
aconteça o que lhe acontecer,
de
forma alguma se poderá rir,
pois
a palavra, de imediato, esquecerá
e
não mais voltará a ser humano!...
Estas
palavras foram escritas em latim
para
evitar de uma criança o divertir,
que
tal palavra a brincar pronunciará
e
dificilmente conseguirá assim
conservar-se
sem rir e um profano
animal
continuará sendo até morrer!”
O CALIFA CEGONHA VIII
“Para virar, basta que
eu diga: Mutabor?
Não é blasfêmia ou
frase de maldade?”
“Não, Majestade. Simplesmente quer dizer,
Em nossa língua: Eu serei transformado.”
“E para voltar, basta
apenas repetir...?
Mas de que forma eu
falaria, na verdade?
Os animais não sabem
árabe compreender...”
“A língua deles
ir-lhe-á permitir
que o equivalente seja
pronunciado...
Experimente, se
quiser, sem mais temor...”
Disse o vizir: “Não, faça você primeiro!”
E então Selim depressa concordou:
“Em um macaco pensarei me transformar!”
Tomou a pitada, curvou-se para o Oriente
as três vezes e depois disse: Mutabor!
De imediato em um mono transmutou,
alguns minutos permanecendo a macaquear,
depois de novo se inclinou e, sem temor,
soltou um guincho em sua língua diferente
e em ser humano tornou-se, bem ligeiro”
O califa lhe
recomendou total segredo
e o nomeou como seu
conselheiro;
deu-lhe o traje de
gala e em pagamento,
uma pensão, em caráter
vitalício...
Selim, o Sábio,
retirou-se agradecido.
Disse Khaled: “O que
vamos ser primeiro?”
Disse Mansur:
“Exerçamos julgamento:
qual animal não seria
perseguido
pelos soldados, por
dever ou malefício
ou por criados, por
força de seu medo?”
O CALIFA CEGONHA IX
Foram andando assim
pelo jardim,
até encontrarem uma
lagoa aprazível,
na qual, em pé,
dormitava uma cegonha...
“Sem dúvida, esse
animal é protegido,”
disse Khaled. “Para alguns, é até sagrado,”
concordou Mansur,
“embora seja incrível
que a antiga crença à
religião se oponha.
Diz o Profeta que não
se deve adorar nada,
senão o Altíssimo, que
no céu está escondido
e nem a Ele
representar se pode assim...”
Nesse momento, outra cegonha viram
dos céus descendo, em voo majestoso.
Disse Khaled: “Veja só, vão conversar!
Será que entenderemos a sua fala?”
E de comum acordo, cheiraram duas pitadas;
para Meca se voltaram, chão formoso!
Três vezes, com reverência a se inclinar,
em Mutabor as suas
vozes levantadas...
Sua aparência humana então se abala,
finas as pernas, que no ventre se inseriram...
Por todo o corpo penas
em profusão,
um longo bico no lugar
do seu nariz!
E esternutavam, ao
invés de conversar;
lembrou Mansur, nessa língua:
“Não vá rir!”
“Mas realmente,
ficamos engraçados!
Que pernas finas você
tem!” Khaled diz.
“Majestade, tendes um
bico de arrepiar!...”
Mas nesse instante,
cessaram os alados
movimentos da cegonha
e o vizir
pediu ao califa que
lhe prestasse atenção.
O CALIFA CEGONHA X
“Como vai, seu Bico
Fino,” disse o visitante,
“Muito bem, seu
Tagarela,” o outro respondeu.
“Que vens fazer na
minha pobre lagoa?
Há poucos sapos e
ainda menos lagartixas!”
“Não vim comer, mas
antes, estudar...”
“Como assim? Juro que me surpreendeu...”
“Meu pai planeja dar
uma festa na Garoa,
a sua mansão; e me
pediu para dançar...
Só quero que me
ensine, sem mais rixas,
cada figura que achar
interessante!...”
E as duas cegonhas se puseram a dançar
com as pernas finas ou em uma perna só,
sendo tão estranha a sua coreografia
que conter o riso Mansur não conseguiu,
um riso de cegonha, que contagiou Khaled,
das outras duas a troçar de causar dó!
Ofendido com toda aquela zombaria
o dono da lagoa o pouso cede;
bateu as asas e com o outro no ar sumiu,
os visitantes ainda deixando a gargalhar!...
“Bem, a nossa
brincadeira terminou,”
disse o califa. “Vamos nos desvirar...”
“É claro!” – concordou
o vizir, para depois
Dizer: “Mu... mu...”
um tanto alvoroçado.
“Majestade, da palavra
eu me esqueci...”
“Ora, é fácil!... É suficiente pronunciar
mu... mu...” Haviam esquecido os dois!
“Bem que eu sabia,
porém me distraí;
o pergaminho nos havia
aconselhado
de forma alguma a rir
ou a gargalhar!...”
O CALIFA CEGONHA XI
“Se entrarmos agora,
vão nos expulsar,
ninguém acreditará que
seu califa eu seja!”
“Nem minha esposa
aceitará que sou o vizir!”
“Quem sabe, vamos
procurar Selim?
Sempre podemos pelo ar
nos dirigir...”
Khaled bateu as asas e
se enseja
que no ar subisse
quase sem sentir,
Mansur chamando também
para o seguir
e pelos ares foram
voando assim,
até na rua de Selim
aterrissar...
Com as asas bateram na sua porta;
uma criada veio abrir para atender
e nos bicos com a folha lhes bateu!
Porém voaram e desceram no jardim
em que Selim descansava, calmamente...
Sendo um sábio, pôde logo compreender:
“Vocês riram!” Mas o
vizir não o entendeu,
nem o califa... “É Mutabor! – disse, impotente,
cheio de angústia, o coitado do Selim...
“Por que fui traduzir?
Fiz coisa torta!...”
Finalmente, por meio
de sinais,
ele explicou que, como
não entendiam,
então teriam de voar
até Medina,
até o túmulo do
sacrossanto Maomé,
que um milagre talvez
realizasse...
E logo os dois suas
asas sacudiam,
o sul buscando para
melhor sina...
Mas era longe...
Mansur disse que parasse.
“Não posso mais,
Majestade, por minha fé!
Siga sozinho, que
estou velho demais...”
O CALIFA CEGONHA XII
Porém à frente um
palácio divisaram,
com a parte da frente
já arruinada;
suas asas para ali os
conduziriam...
Entraram num saguão
bastante escuro.
Mansur falou: “Mas não
será assombrado?”
Sem medo, Khaled
soltou uma risada:
“Almas penadas a
cegonhas assustariam?
Para nós dois rir
deixou de ser pecado:
só Maomé, no seu
santuário puro,
nos poderá fazer
milagre...” E se deitaram.
Enquanto isso, em Bagdá, um usurpador,
acompanhado por quarenta salteadores,
proclamou que o califa havia morrido
e ocupou prontamente o seu castelo:
“Será o califa, a partir de hoje, Mustafá!”
Do desaparecimento corriam já rumores
pelos conselheiros foi facilmente recebido,
porém falou Selim: “Senhor, não há
prova alguma que o califa, jovem e belo,
tenha morrido! Ele viaja,
meu senhor!...”
Sem hesitar, Mustafá o
mandou prender
e foi marcada a sua
coroação,
ainda que o povo
ficasse consternado
e murmurassem que o
califa e seu vizir
tinham sido mortos
pelo usurpador!
Ao mesmo tempo, em
plena escuridão,
descansavam as
cegonhas, lado a lado...
Porém Mansur falou:
“Meu bom senhor,
tristes gemidos eu
acabei de ouvir!...
É um fantasma e mal
nos quer fazer!...”
O CALIFA CEGONHA XIII
“Não há fantasmas, mas
um gênio talvez seja:
se for um djinn, só nos pode fazer bem;
se for um effrit, um gênio mau, o obrigaremos
a nos obedecer, pelo
poder de Alá!...
Mas tens razão, eu
escuto esse gemido:
daquela sala interior
é que nos vem,
mas me parece um
lamento! Avançaremos
com coragem e seu
temor será vencido!
Para os verdadeiros
crentes, mal não há,
vamos, portanto,
desvendar o que se enseja!”
E na outra sala, que ficara sem telhado
bem iluminada pelos raios do luar,
uma coruja encontraram, a se lastimar
e sua linguagem entenderam, facilmente.
Inicialmente, a coruja se assustou,
mas a seguir começou a se alegrar:
“São duas cegonhas! Eu
ouvi profetizar
que me trariam boa sorte!” – proclamou.
“Talvez o meu martírio, finalmente,
termine e tenha o meu corpo restaurado!...”
“Eu sou Aashi, que
quer dizer “Sorriso”,
porque sorria muito já
ao nascer,
sou filha única do
Rajá de Allahazar;
sou jovem e bela, não
cometi pecados,
virei coruja por um
ato de vingança
de Kashnur, um
feiticeiro, em desprazer,
porque meu pai o
mandou expulsar,
por pedir a minha mão
para a bonança
de seu filho Mustafá,
um malcriado,
de quem manter
distância era preciso!”
O CALIFA CEGONHA XIV
Ao rajá meu pai
ofendeu a sua atitude:
seu nome é Agnimukha,
isto é, “Rosto de Fogo”
e pela cólera, como o
nome o indica,
deixou-se ele levar
bem facilmente:
Kashnur foi então
expulso do castelo,
mas no jardim ele me
encontrou logo
e me disse:
“Mutabás!” Agora você fica
transformada em coruja
sem desvelo
e desse encanto só
sairá se, finalmente,
mostre alguém pena de
sua forma rude...”
“Acreditando ser você jovem e bela,
como coruja assim a peça em casamento...”
Khaled e Mansur até pena tiveram
e lhe contaram sofrer pena semelhante.
Mas “Mutabás” não adiantou que pronunciassem.
“É parecida com a de nosso documento,
Mas não é igual...”
“Entendi que se esqueceram;
passaram meses desde que me transformassem
e em outras conversas já escutei bastante:
foi Kashnur que os enganou com sua balela...”
“Ele calculou que
ficariam curiosos
e cedo ou tarde
acabassem rindo;
pois agora o seu mau
filho, Mustafá,
colocou sobre o trono
em seu lugar!
Por protestar, mandou
prender Selim...”
Ora, eu sei que ele
anda se reunindo
com outros bruxos que
pelo mundo há
e também sei onde
é. Mas contarei, enfim,
somente se um de vocês
me desposar,
pouco me importa que
não sejam formosos...”
O CALIFA CEGONHA XV
“Mas quero me livrar o
encantamento
e assim, meu interesse
vem primeiro...
Qual de vocês será o
meu marido?”
Khaled e Mansur saíram
para pensar.
“Eu sou velho e já
casado,” disse o vizir,
“mas meu senhor é bem
jovem e solteiro
e a filha de um rajá é
um bom partido...”
“Porém, e se depois do
meu pedido ouvir
(do califa a palavra
não se pode revogar),
no fim das contas faço
um horrível casamento?”
“Ela poderá ser uma bruxa, na verdade!
Ou ser mulher, porém já velha e feia!
Se eu concordar, cairei numa armadilha!...”
“Vossa Majestade quer continuar cegonha?
Eu, pelo menos, de comer sapos já cansei...”
“Sinto ser mosca presa numa teia!”
disse o califa. “Mas do
dever a trilha,
para salvar meu trono, eu seguirei...
Tomo outra esposa, caso ela for medonha!
Posso casar com muitas, sem maldade...”
“Sim, meu califa,
nossa fé muçulmana
nos permite adotar a
poligamia...”
Destarte, Khaled
conseguiu se consolar...
“Aashi, eu a peço em
casamento!...”
“Meu senhor, não o
desapontarei,
pois em mulher eu só
me tornaria
depois que seu
encantamento se quebrar...
e sendo homem, de sua
boca escutarei
o seu pedido. Mas me faça um juramento
de me cumprir o que
agora me proclama!”
O CALIFA CEGONHA XVI
Khaled então lhe
prestou o juramento
e disse Aashi: “Pois
então, venham comigo,
que mostrarei onde se
encontra o feiticeiro!”
E se embrenharam por
vasto labirinto,
depois por túnel
aberto sob a terra,
até chegarem a um
brilhante abrigo;
porém Aashi lhe pediu
primeiro:
“Por favor, somente
ouça o que ele berra;
a sua linguagem
entenderá, isso pressinto,
mas não o pode
combater neste momento!”
Ao redor de uma mesa se assentavam
sete bruxos, a vestir trajes suntuosos
e a se gabarem de suas últimas façanhas,
bebendo vinho e as carnes devorando
dos animais que proíbe o Alcorão!...
Os três sentiram rancores portentosos
quando Kashnur relatou as próprias manhas...
Era o mascate que trouxera, na ocasião,
o pó e o pergaminho, em ato nefando
que ele narrava e os outros gargalhavam!
“Meus amigos, o que
fizeram não é nada!
eu pus no trono o meu
filho Mustafá!...
No treinamento ele
falhou de feiticeiro,
mas mesmo assim,
garanti-lhe a coroação;
e me vinguei de
Agnimukha de Allahazar!...
Meu filho é hoje
califa em Bagdá,
mas em coruja a
transformei primeiro,
só vira gente se com
alguém puder casar!...
E a linda filha
daquele paspalhão
minha magia deixará
sempre encantada!”
O CALIFA CEGONHA XVII
“Mas como foi que você
o conseguiu?”
“Eu joguei nela um
mágico pozinho
e disse: “Mutabás!” –
“Serás transformada”,
na língua tosca que
falavam os romanos
e ao califa de igual
modo eu enganei!...
O infeliz deixei bem
curiosinho
e outra palavra foi
por ele pronunciada:
numa cegonha esse
cretino eu transformei,
comendo sapos,
proibidos aos muçulmanos!”
E a turma inteira dos
feiticeiros riu!...
“Mas que palavra foi essa que ele disse?”
“Ah, é “Mutabor!” – “Eu serei transformado”!
Mas soltou uma gargalhada e se esqueceu:
irá viver como cegonha até a sua morte...
Sou ou não sou o maior dos feiticeiros?...”
Mas um dos outros falou, meio amuado:
“Maior do que você ainda sou eu!
Caso eu lhe jogue, na frente de terceiros,
o mesmo pó, transformarei sua sorte,
se lhe disser, ao mesmo tempo: “Mutarisse!”
“Pois ficará imóvel,
totalmente
e desprovido de
qualquer poder,
enquanto eu queimo seu
precioso pergaminho.”
“Você só fala por
despeito, caro Akim:
Meu filho guarda agora
os ingredientes...
Um feiticeiro como nós
não pode ser,
mas tem medo de mim, o
meu filhinho
e os instrumentos me
entregará, potentes...
Ninguém, portanto, me
vencerá assim:
vou governar por meio
dele, integralmente!”
O CALIFA CEGONHA XVIII
Então a coruja ao
califa fez sinal
e os três bem depressa
se afastaram.
Tão logo se
encontraram à luz do Sol,
Khaled e Mansur para
Meca se inclinaram
e bem ligeiro, os dois
disseram: “Mutabor!”
No mesmo instante,
ambos se transformaram,
As joias no turbante
brilhando qual farol
e moedas de ouro do
maior valor
na bolsa do
califa... Mas quando se viraram
viram uma princesa de
beleza divinal!...
“Você é Aashi...?” falou o califa, assombrado!
“Sim, sou eu... Vai me cumprir o prometido?”
“Claro, princesa, de novo a peço em casamento,
e não somente por todo o bem que me prestou,
pois nunca vi qualquer mulher mais bela!...”
Foi o califa por seu povo conhecido;
voltou a Bagdá com forte regimento,
sendo aclamado em cada praça e viela;
e logo em seu castelo penetrou
e Mustafá foi depressa acorrentado!
Jogou-lhe o pó e lhe
disse: “Mutabás”!
Numa coruja de
imediato o transformou,
deixando-o preso em
uma gaiola, de castigo!
Mas ordenou que o
segredo mantivessem
e quando Kashnur a
Bagdá voltou,
sem imaginar correr
qualquer perigo,
gritou: “Mutarisse!” e
o resto do pó jogou,
deixando-o imóvel, sem
que feitiços se pudessem
realizar... e o
pergaminho em fogo ele desfez!...
EPÍLOGO
O feiticeiro foi nesse dia enforcado
e Khaled com Aashi se casou;
uma grande pensão determinou
que fosse paga para seu bom vizir,
que lhe pediu para se aposentar,
para Selim ao seu posto nomear...
Com o povo alegre e na maior prosperidade,
em pouco tempo Aashi engravidou
e Agnimukha desde a Índia viajou,
sentindo todos a maior felicidade
nos filhos e netos que vieram a seguir...
E Mustafá? Ora, ainda
está engaiolado!...
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