CAIXINHA DE LEMBRANÇAS
17-26/8/2018
Novas Séries de William Lagos
Caixinha de Lembranças (VI) ... ... ... 17 Ago 2018
Cantoteto (IV) ... ... ... 18 Ago 2018
O Chip Perfeito (V)
... ... ... 19 Ago 2018
Wolhynia (IV) ... ... ... 20 Ago 2018
Terceira Pista (IV) ... ... ... 21 Ago 2018
Conferir (IV) ... ... ... 22 Ago 2018
Quando se Ama (V) ... ... ... 23 Ago 2018
Quando se Amargura (IV) ... ... ... 24 Ago 2018
Quando se Avista (III) ... ... ... 25 Ago 2018
Quando se Poeta (V) ... ... ... 26 Ago 2018
CAIXINHA DE LEMBRANÇAS I – 17
AGOSTO 2018
Tenha cuidado de guardar, ao fim
do dia,
numa caixinha, cada recordação,
para escondê-las junto ao coração,
nessa gaiola em que só sonho se
escondia.
Quem não consegue guardar o que
sentia,
pode depressa perder toda a noção
ou só lembrar com diversa
orientação
algum evento que pensar
recordaria.
Na realidade, tua memória é enganosa;
salvo se houver de algum portento
a ocasião,
é muito raro nos lembrar de alguma
data,
afundada em sucessão tão numerosa,
esfumaçada nos alvéolos do pulmão,
quando no arquivo da memória ela
se abata.
CAIXINHA DE LEMBRANÇAS II
Com frequência as memórias se
acumulam
quando resultam de praxias de
rotina;
lavar os dentes cada dia se
destina,
mas quem recorda as gotas que se
engulam?
Ou de um bocejo que suas mãos
anulam,
por parecer qualquer coisa menos
fina
ou tropeçar na beirada de uma
tina,
em que suas meias a enxaguar
pululam?
E se pensarmos em determinado dia,
diremos ter completado as
abluções,
só porque isso fazemos
diariamente,
mas isso é coisa que tão só se
presumia:
é uma memória alternativa que
repões,
sem recordar se isso foi feito
realmente.
CAIXINHA DE LEMBRANÇAS III
Pois quando vejo um advogado ou
promotor,
que em sua função a testemunha
perquiria,
indagando o quanto fez em certo
dia,
somente espanto me causa tal
pendor,
pois salvo na ocorrência de um
horror
que em sua mente tal data
gravaria,
é que o seu procedimento
lembraria,
sendo impossível responder com
real valor.
Provavelmente a testemunha foi
instruída,
precisou ler seu inicial
depoimento
ou só repete o que ensinou-lhe o
advogado
e quanta vez o destino de uma vida
depende da incerteza do momento,
sem nada de preciso a ser
lembrado!
CAIXINHA DE LEMBRANÇAS IV
Mas não é só. Quando o evento foi marcante,
será a tendência da mente o
remoer,
os detalhes iniciais a se
esquecer,
substituídos pela lembrança desse
instante
e se outra vez a lembrança vier
avante,
não mais recorda o primeiro
perceber,
mas da lembrança secundária o
reviver
e muito mais se a evocação lhe for
constante!
Pois cada vez que ali retorna o
pensamento,
vem à lembrança a memória da
lembrança,
já transformada progressivamente,
conforme a emoção ou o julgamento,
modificada por receio ou
esperança,
até tornar-se por inteiro
diferente...
CAIXINHA DE LEMBRANÇAS V
A nossa relação com o passado
é muito mais a de um rascunho a
reescrever,
ou exagera ou anestesia algum
sofrer,
limita ou amplia o prazer que foi
achado.
Em certos casos, é totalmente
recriado
algo que nunca chegou a acontecer,
se alguém insiste, constante, a
nos dizer
que cometemos infração ou algum
pecado!
E pressionado por memórias
conflituosas,
nosso cérebro é capaz de imaginar
ou mesmo em algum sonho nos
mostrar,
certas coisas mais saudáveis ou
onerosas,
de modo tal que se chega a acreditar
na integridade de lembranças
caprichosas.
CAIXINHA DE LEMBRANÇAS VI
De modo igual, é possível ocultar
qualquer evento mais perturbador
do consciente do cérebro o senhor,
até o instante do inconsciente o
dominar!
Não há, portanto, razão de admirar
as divergências de um observador
das lembranças de seu
interlocutor:
de testemunho sempre é bom se
duvidar!
Por mais sinceros que sejam esses
dois,
as suas lembranças não chegaram a
guardar
em suas caixinhas e já divergem
totalmente...
Por isso afirmo como é bom depois
de cada dia teu inventário
preparar,
para fechá-lo em tua caixinha
firmemente!
CANTOTETO I – 18 AGO 18
Queria um disco que tocasse “Cantoteto”:
em quantidade já tenho Cantochão,
suas melodias em simplificação,
para tornar o culto mais discreto...
Sei muito bem que “chão” não é o objeto (*)
do solo ou piso de qualquer nação,
foi um papa que decidiu por tal noção,
que o acompanhasse com gentil afeto...
(*) Simples, gentil, belo.
Sendo um “Gregório”, veio também a receber,
em alternativa, o nome “gregoriano”,
mas entre os nórdicos pareceu mais plano,
usado o termo para o canto descrever,
sem referir-se à papal autoridade,
já desdenhada desde a Média Idade...
CANTOTETO II
Basicamente, de
melismas é composto,
são várias notas para
uma sílaba só,
dentro de uma escala
de mais simples nó,
sem ter agudo canto ou
grave oposto.
Já anteriormente, São
Bento havia disposto,
em suas abadias acumulado
sendo o pó,
da garganta de seus
montes tendo dó,
que só entoassem com
limitado gosto.
Esse o chamado Canto
Beneditino,
menos ouvido do que o
Gregoriano,
mas no total, com
pouca diferença;
só havia harmonia com
teor de sino,
três “vozes” num
acordo sem engano,
iguais palavras da
mesma antiga crença.
CANTOTETO III
Os ortodoxos cantam
com maior riqueza,
embora alternem com
recitativos,
em que um solista
evita saltos vivos
e faz lembrar o
Gregoriano com certeza.
Mas teve um efeito
inverso tal proeza,
como esses tons não
eram muito ativos,
artifícios foram usados
mais esquivos:
linhas de canto em
harmônica grandeza,
que conduziram à final
Polifonia,
a um exagero de até
mais de vinte vozes,
já que instrumentos
então se proibia
e o Canto Barroco
finalmente se instalou,
com sopro e cordas nas
mais diversas poses
e um grande órgão de
tubos se aceitou...
CANTOTETO IV
E embora o título tenha sido brincadeira,
de certo modo surgiu o “cantoteto”,
pleno descarte de um canto mais discreto,
fazendo o órgão vibrar a igreja inteira!
E em igrejinha menos altaneira.
acompanhado com gentil afeto
por Sonatas “da Chiesa”, som dileto: (*)
do chão ao teto a melodia se abeira...
(*) Sonata “de igreja”, em oposição à Sonata de Câmera.
Contudo, permaneceu o Cantochão
nas pequenas capelas laterais,
sem som de órgão nem de instrumentação,
por isso o nome de “Canto a Capella”,
acompanhado só por vozes naturais,
vibrando apenas os vitrais de sua janela...
O CHIP PERFEITO I – 19 AGO 18
(Sobre antiga ideia de Isaac Asimov)
Em nossa época de miniaturização,
cada vez sendo menor o digital,
que algum chip se implante é
natural,
direto acesso às “nuvens” que aí estão.
Fones de ouvido já têm predecessão,
acesso dando ao mundo musical,
de certa forma plenamente individual,
tal ideia sem nos causar inquietação.
Naturalmente, chip é “lasca” em inglês,
tomado a sério o que foi só brincadeira,
na gíria tecnológica que se fez
aceitar na sociedade toda inteira,
como uma lasca cortada da madeira,
enfiada na carne do freguês!
O CHIP PERFEITO II
Um artefato não somente musical,
mas dando acesso às pinacotecas,
de modo igual que a tantas
bibliotecas,
já digitadas nesse mundo
artificial
ou microfilmes de que existe cabedal,
de fac-símiles ou de xeroxotecas,
daria acesso do pornô às becas,
da ciência completa em seu fanal.
Mas enquanto nao se populariza,
usam-se ainda os discos e as
fitas,
78 RPMs, Elepês, depois Cedês,
velhas cassettes que o DVD
reprisa,
a cuja aquisição ainda te incitas
ou pelo menos, para comprar blue-rays!
O CHIP PERFEITO III
Assim é fácil escutar um som,
por microfones de um computador,
enquanto um filme ou programação de humor,
documentário talvez, de mais bom-tom,
pode o olhar acompanhar, achando bom,
no celular já com menor vigor,
mas obra longa ali se ler é meio-horror,
usam-se os dedos para puxá-la com!
E se houvesse um meio mais perfeito?
Um chip sem ser preciso
controlar,
mesmo implantado envolvendo ajustamento,
uma escolha, direção ou qualquer jeito,
desnecessário algum arquivo procurar,
só acionado por nosso pensamento?
O CHIP PERFEITO IV
Que se iniciasse apenas por pensar
e que parasse de imediato no
momento
em que surgisse um outro
pensamento,
ou se quisesse algum esporte
praticar,
que avançasse para a frente sem
rodar
e que recuasse a nosso mandamento,
instantâneo, veloz ou sendo lento,
pelo efeito tão só de um desejar!
Algo portátil, dispensado um
aparelho
que seus impulsos precisasse
traduzir,
sem nem sequer gastar mais energia
da que empregamos para olhar no
espelho
e que pudéssemos inteiramente
usufruir,
mesmo em lugar que “sinal” não nos
daria?
O CHIP PERFEITO V
Controlado de uma forma rigorosa
ou se quisermos, a nosso bel-prazer,
só por impulsos cerebrais de nosso ser,
por nossa mente séria ou caprichosa...
Na verdade, essa quimera poderosa
foi inventada para quem a soube ler
e sem trabalho a pôde conhecer,
há muitos séculos de ocupação ditosa.
Depende apenas do exercício da vontade,
sem ser precisa qualquer operação,
que usada pode ser sem qualquer pressa,
ou no limite da veloz necessidade,
sem dispêndio de energia – essa invenção
nada mais é do que qualquer página impressa!
WOLHYNIA I – 20 AGO 2018
A muita gente já chmou a atenção
de Galitzia e Galícia a coincidência;
alguns afirmam, com falsa sapiência,
serem judeus os povoadores da região,
da Espanha expulsos na perseguição
dos Reis Católicos de tão pia potência,
enriquecidos nessa feroz ardência
de infelizes, dos quais mataram um milhão!
Alguns teriam para ali imigrado,
o antigo nome trazendo do passado,
em sua esperança sempre renovada
de uma Terra Prometida e abençoada,
sem desistirem dessa obsessão
que tal destino finalmente alcançarão!
WOLHYNIA II
Mas a verdade é muito mais prosaica:
do Monte Halych, no centro do distrito,
essa região tem seu nome circunscrito,
por qualquer motivação muito mais laica,
daí Halytzia, sua denominação arcaica,
após ter sido Ludoméria, em algum rito
transformada nesse nome que hoje cito,
por convergência com a religião hebraica.
Conotação ganha após o Iluminismo,
que Catarina, a Grande Imperatriz,
muitos Judeus para seu reino convocou;
quando, talvez, com certo saudosismo,
a imigração quiçá seu nome quis,
por semelhança com o da terra que deixou.
WOLHYNIA III
Contudo, morre um dia Catarina
e embora prometam proteção seus sucessores,
não demonstraram ser bons protetores
e aos pogroms boa parte deles se destina...
Não obstante, reencontrada a antiga sina,
os Ashkenazim enfrentaram seus temores,
sobrevivendo até o advento dos horrores
das Schutzstaffeln, que praticamente os extermina.
Embora hoje muitos Judeus isto recusem,
foi Catarina que lhes determinou
o uso de roupas hoje convencionais,
o que explica os casacões que ainda usem,
mesmo quando o calor mais se apertou,
com tranças e barbas mais tradicionais...
WOLHYNIA IV
Essa Wolhynia foi bastante disputada,
e assim pertence, sucessivamente,
à Lituânia, à Polônia e à mais recente
dominação austríaca implantada,
por Bielorrússia e Ucrânia administrada,
região plana, para gado conveniente,
terras férteis para plantação frequente,
de carvão e de ferro bem dotada.
A capital é Zhitomir, cidade antiga,
mais de uma vez totalmente destruída
por Napoleão e também pelos nazistas...
Mas quem ali mina de ouro persiga,
só encontrará a pirita revolvida
entre os vestígios de tantas conquistas!
TERCEIRA PISTA I – 21 AGO 2018
Hoje no banco encontrei uma velhinha,
decerto em busca da aposentadoria,
sobre um rapaz, talvez neto, se
pendia
e a digitar no saguão sua senha
vinha;
os seus pés arrastados mal continha
de uma queda que mal lhe causaria
e então com o neto até rezingaria,
sua pressa a reclamar que não
convinha!
Sem que uma pressa houvesse, na
verdade,
isso era mais como autoafirmação,
em rejeição de sua semi-invalidez...
Talvez bela um dia foi na mocidade,
reproduzida nesta nova geração,
um braço amigo que apoio hoje lhe
traz...
TERCEIRA
PISTA II
Sempre
há um preço para uma longa vida:
a
sucessão de cem pequenas mortes,
das
realizações constantes cortes,
tanta
coisa no passado já esquecida!
Ou no
presente sem sequer sem aprendida,
memórias
curtas de muitos sendo as sortes,
passadas
breves após rápidos transportes,
quando
a terceira pista é já atingida...
Eu
sei de mim que muitos faleceram,
um
por década ou mais de um, talvez,
que
certamente não sou o que fui ontem...
Será
que os anos passados me esqueceram?
Será
que os dias desenvolveram mesquinhez
e nem
futuro, nem meu presente contem?
TERCEIRA
PISTA III
Fisicamente,
mais o homem se conserva,
sem
ter beleza que precise resgatar,
mas a
mulher pode a si mesma renegar:
a
Fada do Espelho não é mais sua serva!
Talvez
com maquiagem ainda reserva
um
simulacro que a possa consolar
disso
que foi e não pode mais voltar,
murcho
o frescor de sua antiga erva...
Há
quantos anos os artistas representam
tradicionais
Três Idades da Mulher:
a
Filha ou Jovem; a Mãe; depois a Anciã;
e não
sei até que ponto se contentam
com
tal variância representar sequer
ou se
lamentam por sua própria vida vã!...
TERCEIRA PISTA IV
Pois realmente, para nós tudo é
corrida
e não há meios de se poder parar;
não são os passos que seguem a
avançar,
mas sim os dias que nos devoram
vida;
nunca antes como agora esclarecida
essa mudança inclemente do passar,
fotografias do passado a conservar,
trazem descrença da face já
esquecida...
Escorre lenta a adolescente pista
e então para a segunda tem ingresso,
geralmente com uma certa boa-vontade,
mas bem depressa se percorre a longa
risca
e de repente, já se paga o preço,
na breve pista da Terceira Idade!...
CONFERIR
I – 22 AGO 18
Quando
sonhamos, raramente vemos
o
nosso rosto, somente o derredor,
faces
alheias de feiúra ou de esplendor,
talvez
os pés e as mãos nós contemplemos;
como
meus sonhos são lúcidos e plenos,
quando
me corto, verte sangue e sinto dor,
cheiros
e gostos, panóplia em vasta cor,
mas
o meu rosto avisto muito menos.
Só
me recordo de sonho com reflexo
sobre
um espelho, vitrine ou em janela,
jamais
mostrando sua perfeita nitidez,
de
sombra e luz em tal jogo complexo,
escura
a face, que mal consigo vê-la
ou
os estragos que o tempo nela fez.
CONFERIR
II
E
na verdade, não busco conferir
qual
a versão presente de meus traços;
bem
mais os rostos que prendo nos meus braços,
numa
pupila talvez minha face a reluzir;
porém
concebo, no onírico inquirir,
que
sou eu mesmo, com meus ágeis passos,
a
perlustrar, veloz, tantos espaços,
sou
eu adulto amplamente em meu agir.
Há
quem sonhe mais com tempos de criança,
desses
mais lembro quando devaneio:
faíscas
rápidas de fulgor inesperado;
e
até o ponto que a censura não me trança,
dos
que me cercam jamais sinto receio,
rostos
sinceros e amigos do meu lado.
CONFERIR
III
Com
frequência, no meu despertar,
recordo
o sonho quase inteiramente;
porém
só isso seria improducente:
é
bem comum de versos me lembrar
e
bem depressa, ponho-me a anotar,
antes
que desçam a cachoeira permanente,
que
meus pés vai arrastando a seu poente,
mas
no sonho é outro tempo a se passar.
E
não desgasto o tempo de minha vida
durante
o tempo de onírico viés;
mas
quando sonho com algo e estou acordado,
o
tempo passa sem dar-me despedida,
a
água do instante a me lamber os pés,
para
levar-me por lembranças afogado.
CONFERIR
IV
Enquanto
o tempo me arroja para trás,
na
direção inicial de minha infância,
meu
anti-tempo, em inversa instância,
cada
momento da vida me desfaz;
acordo
cedo e já me encontro num zás-trás
que
logo abrange de meio dia a distância,
para
a velhice marchando com constância,
enquanto
a marcha do tempo se compraz
em
me puxar para o ontem e o anteontem,
para
a semana que passou e o ano antigo,
bem
justamente o oposto do perigo,
que
diuturno contemplo, em que se montem
os
anos de não sei como me abrigo,
que
interromper não quero e nem consigo.
QUANDO SE AMA I – 23 AGOSTO 2018
Quando se ama e não se tem, surge um vazio,
de um certo tipo distinto de saudade,
que não adianta se ter toda a humanidade
marchando a nosso lado, imenso frio
que fere a alma, que congela o cio,
que nos aquece de raiva, sem piedade,
quando se ama de fato e de verdade,
quando mais sofre com isso o nosso brio.
Quando se ama e nem sequer se busca
por esse tipo especial de solidão,
cortam-se os dedos, a nossa mente ofusca,
numa incertez de mostarda e saciedade,
quando se ama, sem encontrar paixão,
tão somente no remoer da vacuidade.
QUANDO SE AMA II
Quando se ama e não se tem, nada se teme,
por não se ter sequer algo a perder,
salvo o prazer de masoquista padecer,
em que metade da humanidade geme;
quando se ama e não se tem, quebrado é o leme
da nau que pode nossa vida enriquecer,
esses mares do amor sem percorrer,
seja qual for o ardor com que se reme.
Quando alguém pode simplesmente se esconder
nos travos brancos da melancolia,
deixando o barco correr ou se afundar
ou dar de ombros, nesse irônico saber,
que se não temos quase nada de esquecer,
melhor se esqueça então o próprio desejar!
QUANDO SE AMA III
É quando se ama e se tem que surge o medo,
bem lá no fundo a espreitar inquietação
de que os dias que se tem se perderão,
quando do amor empalidece o albedo;
tudo na vida termina, tarde ou cedo:
melhor se ter e se perder uma paixão
ou não se ter, nada a perder então,
guardado apenas o imaginar em seu degredo?
Este dilema foi por tantos encontrado,
algumas vezes resolvido com argúcia,
que o que se teve sempre pode ser lembrado,
mas o não tido de esperança é recamado,
a voz interna a sussurrar-nos com astúcia
que amor não perde quem nunca foi amado.
QUANDO SE AMA IV
Quando se ama, melhor guardar lembrança
do beijo tido que do sonho desvalido,
por mais que após se ter seja perdido
do que se ter nada mais que uma esperança;
quando se ama, melhor fugir à dança
dos que lamentam por ter amor sofrido
ou que mais sofrem pelo medo percebido
que cedo ou tarde a perda nos alcança?
Mas na verdade, nada disso tem valor,
pois não se trata de uma escolha em absoluto,
que amor é imponderável, venha ou não,
não cabe em lucro e nem em total bruto,
tão inútil se amargurar o coração,
por essa coisa intangível, dita amor!
QUANDO SE AMA V
Assim, se eu quero ter, tenho a lembrança
desse amor que nutri por ter amor,
mas se tive e então perdi, guardo o rancor
do amor perdido para a desesperança;
mas se eu queria ter tão só bonança,
dessa tangível nuvem de calor
e se a possuí com todo o seu vigor,
tudo perdi, sem travo de esperança...
Mas se eu ansiava por ter só a emoção
que realmente só a mim pertenceria,
pouco importa qualquer posse ou verdadeira
correspondência de um outro coração,
porque a mesma emoção conservaria,
tal lembrança sendo minha sempre inteira.
QUANDO
SE AMARGURA I – 24 AGO 18
Houve
uma vez em que quase me matei,
ao
me sentir traído... sutilmente,
nesse
meu aniversário diferente,
em
que um brinde a um cadáver escutei.
Mas
quem fôra esse morto, então pensei,
antigo
amor de quem completamente
me
deveria ser leal, mesmo indolente,
sem
me passar essa lembrança que guardei?
Cheguei
até em meu revólver pôr as balas,
nessa
vergonha maior que uma traição,
ao
ver a intrínseca falsidade de sua alma;
depois
lembrei terem sido apenas falas,
de
amor defunto tão só a recordação
e
retomei minha vida em plena calma.
QUANDO
SE AMARGURA II
Nem
toda gente tem essa precaução
de
sempre ter tão só descarregado
algum
revólver que se tenha guardado,
gastando
tempo em introduzir-lhe a munição.
É
até possível que em desespero de ocasião,
eu
realmente o tivesse disparado
e
com o cérebro as paredes me manchado,
a
reclamarem por higienização!...
É
bem verdade que não temo a morte,
mas
se morresse, ficaria sabendo
se
algo existe depois ou antes dela...
Foi
outro medo que transformou-me a sorte:
e
se eu ficasse então anos sofrendo,
adiada
a hora de coloquiar com ela?
QUANDO
SE AMARGURA III
Guardei
de volta as balas no saquinho,
em
que se guardam há uns quarenta anos,
dificultando
quaisquer atos insanos...
Por
que morrer de modo tão mesquinho?
Esse
que fez tal brinde... de mauzinho,
já
está morto, igual que sem enganos,
a
maioria que assistiu a tais afanos...
Eu
ainda vivo e ainda vive o meu carinho.
Que
na verdade, embora então dançasse,
só
pretendia a homenagem a outro amigo,
muito
sincero, que igual foi meu mentor;
no
rosto do outro então malícia se estampasse,
mas
lealdade não revelou comigo:
foi
sempre esquiva em demonstrar-me amor!
QUANDO
SE AMARGURA IV
Se
me matasse nesse tolo ato imaturo,
não
estaria no presente a descrever
essa
emoção amargurada de sofrer,
há
quinze anos perdido do obscuro
escorrer
sem desejar para o futuro,
sem
tampouco no passado me perder;
a
vida é cheia de um vazio nesse envolver
fantasmagórico
de um pendor impuro,
que
a tantos leva a procurar um fim,
sem
ser capaz de um presente suportar,
sendo
incapaz de compreender, enfim,
o
que pode lhe ocorrer na rara sorte,
tão
corriqueira a nos servir de par
no
breve engano que nos conduz à morte!
QUANDO
SE AVISTA I – 25 AGO 2018
Para
quem usa óculos, é frequente
o
reverbero refratado nas pupilas,
o
Efeito Doppler nas células ancilas,
trasgos
criando no arco-íris opalescente;
lá
no canto da armação está presente
qualquer
demônio formado pelas filas
de
temores e tristezas das argilas
que
mumificam o passado permanente;
ou
ao invés, qualquer anjo da guarda.
a
sussurrar-nos proteção inexistente;
ou
quem sabe, algum amor intermitente,
que
em bastidor nossa ansiedade parda,
borda
que borda, na maior desfaçatez
e
mesmo esquece que tal bordado fez...
QUANDO
SE AVISTA II
Mas
pelo canto dos olhos, realmente,
o
que se avista nesse breve sobressalto?
Não
é o temor de sofrer qualquer assalto
ou
agressão de algum caráter mais ingente,
pois
no segundo seguinte se pressente
a
ausência total desse ressalto;
contudo
o coração já deu seu salto
e
então se acalma apenas lentamente...
Só
imagino se alguém, mais assustado
possa
sofrer um repentido enfarto
pelo
temor do fulgor que se avizinha
ou
que outro alguém, totalmente enamorado
anseie
ter outra presença no seu quarto
e
o desaponto lhe provoque dor mesquinha...
QUANDO
SE AVISTA III
Talvez
se aviste apenas o remorso
do
que se fez e nos volta a perseguir
ou
não se fez e deixou-se desnutrir,
mas
permanece apoiado em nosso dorso;
e
me pergunto se tal reflexo iridiado
é
mais um fruto de temor ou de esperança:
qual
nessa breve visão é que se alcança,
por
que o alívio nos chega, inesperado,
ao
perceber que nada se avistou,
senão
a ânsia que já nos acompanhou
e
fielmente seguirá do nosso lado;
por
qual lembrança, enfim, se suspirou,
depois
de ver o abantesma desmanchado,
ou
qual castigo então se desejou?
QUANDO
SE POETA I – 26 AGO 18
toda
poesia é de fato uma mentira,
correspondendo
tão somente a uma visão
muito
diversa dos aspectos que estão
ao
seu redor, no natural que gira;
talvez
seja esse fantasma que nos fira
nesse
momento períférico em que estão
as
nove musas em desnuda excitação,
seu
pai apollo a dedilhar sua lira!
talvez
seja tão somente uma fagulha,
igual
que as chispas de uma acha de lenha,
quando
batida por um atiçador;
talvez
seja a picada de uma agulha,
no
ato falho de um remendo que se tenha
na
alma rasgada por um novo amor.
QUANDO
SE POETA II
muita
gente só aguarda inspiração
num
momento de sentir tranquilidade,
ou
quando a angústia a fere de verdade,
quando
descreve a estultícia da emoção,
tão
transitória quanto qualquer paixão;
postos
na mesa em cartas de vaidade,
os
seus momentos de sentir autopiedade,
quando
lhe bate inquieto o coração;
mas
na verdade, se o poeta é verdadeiro,
a
menor coisa dele força uma poesia,
mesmo
um tema que sequer se atreveria
a
abordar, se não fosse esse ligeiro,
mas
estentóreo impulso que o feria
e
então registra esse nada todo inteiro.
QUANDO
SE POETA III
será
uma fenda entre as pedras de uma rua,
será
uma luz a escorrer de uma janela,
será
o latir de um cão que provém dela,
será
a incerteza que sobre nós atua,
será
algures a visão da carne nua,
da
suavidade febril que se acha nela,
desse
ardor que nos invade e que nos gela
e a
mente nos perfura igual que pua;
será
um som escutado na distância,
tão
prosaico como a voz de uma galinha
ou o
estridor que provoca um caminhão;
será
um tom dessa múltipla fragrância
saboreada
numa cor que se avizinha
e se
respira tão só no coração.
QUANDO
SE POETA IV
porque
essa coisa que se chama inspiração
não
é a consequência de um delírio
e
nem sintoma agudo de um martírio:
é
muito mais um inesperado tropeção,
esse
conjunto de coisas do antemão
que
nesse instante desabrocha como lírio
e
então se queima até o final do círio,
nada
mais que uma inculta sensação,
que
a maioria sente igual, mas não anota
e
a inspiração passa adiante, desprezada,
tentando
entrar em mente receptiva,
onde
então levanta as velas como frota
para
essa tempestade inusitada,
que
a mente escreve se quiser que sobreviva.
QUANDO
SE POETA V
e
sendo assim, sempre é falsa sensação
que
nos chegou só dionyso sabe de onde
e
dentro dalma num rasgão se esconde,
depois
brotando como vasto turbilhão,
que
nos toma de tocaia a própria mão,
a
escorrer na descrição de qualquer donde
em
que nunca se esteve mas nos ronde,
sutil
e sorrateiro em sua ambição
de
ser lançado novamente ao mundo,
mentira
plena de nova inanidade,
feita
de um sonho raso mas profundo,
desencadeado
assim em alacridade,
na
descrição do tristonho ou do jocundo
que
nunca em nós sucedeu na realidade.
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