quinta-feira, 30 de maio de 2019




ABELHAS CARNIVORAS (31/12/2010)
Duodecaneto de William Lagos

ABELHAS CARNÍVORAS I  (31-12-2010)

O Sol me molha lentamente a pele,
com dedos de criança, no começo:
é tão gentil que mais carinho eu peço,
numa carícia que minhas costas vele;

mas, aos poucos, a pressão dos dedos dele
se torna mais premente e logo penso
que são dedos de mulher e então me aqueço
de uma forma sensual que os rins me sele;

mas se perdura por mais tempo a exposição,
viram dedos de homem, com massagem,
tornam-se logo de torturas os esboços

e busco a fuga dessa queimação,
procuro abrigo, sem fingir coragem,
enquanto a luz do Sol me molha os ossos.

ABELHAS CARNÍVORAS II

Pressinto então um sonho, de repente,
não sonho de ouro, como tantos tenho,
não um presságio que me franza o cenho:
um desses sonhos que controla a gente.

Já li em alguma parte, certamente,
que se percebe ser de um sonho o engenho
por não poder recordar, com todo o empenho
como chegamos em tal ponto consequente.

De repente, nos achamos já em ação,
nesse ponto de qual nos recordamos,
por efeito, quiçá, de um mecanismo

de controle mental, em proteção,
sem perceber por que nos entregamos
a esse mundo estranho de idealismo.

ABELHAS CARNÍVORAS III

Bem diferente de um sonho planejado,
quando a gente se entrega ao devaneio,
imaginando a situação ou o meio
de vivenciarmos algum fato desejado.

São assim as fantasias, plano airado
que atende à frustração, acalma o anseio
dos bens não alcançados de permeio,
ação mental masturbatória do isolado.

Não que sejam tão só de inspiração
sexual ou até social, tão só desejo
de qualquer coisa que possuir queremos,

quando não uma feroz satisfação,
quase um castigo, por roubar alheio beijo
de um ser amado a quem não pertencemos.

ABELHAS CARNÍVORAS IV

Estes sonhos são mais calmos, controlados,
nós decidimos quando iremos começar
e interrompemos o seu desenrolar,
se pela vida real somos chamados...

No meio destes também estão contados
os sonhos de ouro, por glória se alcançar,
sempre é possível dentro deles planejar
alguma forma de torná-los realizados.

Mas os sonhos oníricos nos mordem
de maneira ardilosa e subitânea,
são carnívoras abelhas que nos picam

e mal se sabe donde provém a ordem
para vivermos nesta forma sucedânea
dos fragmentos que na memória ficam.

ABELHAS CARNÍVORAS V

Como são vastos os sonhos dos anseios!
Esses que a vida não permite realizar,
justo aqueles que mais queremos alcançar:
só assim os usufruímos em outros meios...

Talvez seja o mais comum dos devaneios:
o que faríamos, no caso de ganhar
na loteria...  (mesmo até sem apostar!)
Coisa igual que descobrir de ouro os veios

aos arrancarmos umas raízes no quintal;
ou então herança a receber de algum parente
que nem ao menos sabíamos existir...

São sonhos inocentes, não têm mal,
sem pretensão de se matar a qualquer gente,
somente o gênio da lâmpada descobrir...

ABELHAS CARNÍVORAS VI

E como está esse ideal bem entranhado
no inconsciente coletivo brasileiro!...
Então, na falta desse gênio lisonjeiro,
busca-se um jeito de aos outros enganar...

Sempre um emprego público alcançado,
qualquer esquema de se juntar dinheiro
de forma desonesta e bem ligeiro,
sem se importar com quem vá prejudicar...

Não sonham ouro, têm sonhos de latão:
“Mas, afinal, por que Deus a loteria
não concedeu a nós, já que apostamos?”

Desde modo, tendo chance, à tentação
cedem fácil; e a consciência nem lhes chia:
“São os otários apenas que enganamos!”

ABELHAS CARNÍVORAS VII

Assim vivemos numa nação de abelhas
voltadas contra os interesses da colmeia;
nem se consegue inserir nessa alcateia
novas abelhas; à exemplo das mais velhas,

umas às outras devoram; são centelhas
que a pretexto de algum fogo que incendeia,
tiram mil gotas de sangue da assembleia,
com um sorriso e um arquear de sobrancelhas.

São carnívoras abelhas, com certeza,
sempre dispostas ao canibalismo
e as canibalizadas até lhes batem palmas!,,,

E assim prossegue a vida, sem nobreza,
na tirania de um presidencialismo,
com seu louvor de corrompidas almas!...

ABELHAS CARNÍVORAS VIII

Quanto a mim, nunca busquei um sonho igual:
meus devaneios (muitos e frequentes!)

nunca planejam enganar as gentes,
só me dão satisfação meio irreal

de quem não busca o brilho artificial
de festas ou política, sequer os aparentes
louvores, promoções, impermanentes
glórias ou fama ou essas fardas de “imortal”. (*)
(*) Alusão à Academia Brasileira de Letras.

Meus devaneios são bem mais comedidos
e na verdade, revelados só pra mim;
de fato, foram sonhos tão secretos

que de mim mesmo uns ficam escondidos,
pois nem sei se me encontra um sonho assim
quando alguém me vem mostrar os seus afetos.

ABELHAS CARNÍVORAS IX

Talvez, de fato, tenha sido apenas sonho,
esse em que encontro carnívoras abelhas,
que a cada vez que se acendem as centelhas
de qualquer esperança em véu bisonho,

logo me roem, com seu ardor medonho,
reencarnações das esperanças velhas.
como se as novas olhassem às esguelhas,
em maus ciúmes do meu viver tristonho.

Pois eis o fato:  essas abelhas me devoram
os resultados, por mais sendo trabalhados
ou após um longo tempo elaborados.

Tal qual se o que ganho com a direita,
com a esquerda entregasse aos que me exploram,
eternamente do meu caminho à espreita!

ABELHAS CARNÍVORAS X

O que se encontra por baixo das calçadas,
sob as camadas da amarelada argila?
Talvez lá habitem assombrações em fila,
que se perderam das ossadas enterradas,

à espreita e de tocaia, almas penadas
que nos invejam a luz e o movimento;
pelos sapatos ascendem, num momento,
para esperanças roerem, esfaimadas!...

Melhor, portanto, não culpar deuses quaisquer
por esta mística e contínua zombaria,
quando a mão dá, para a outra mão tirar;

talvez não seja por rancor nem ironia,
só por sedenta a entidade que nos quer
e o que devamos é mais depressa andar!

ABELHAS CARNÍVORAS XI

Em emboscada estão, por sob as tijoletas
essas abelhas por carne e alma famintas,
de um desespero secular retintas,
a invejar as esperanças mais diletas,

que se revestem das mais escuras tintas
e cada vez que do amor espreitam setas,
nas sanguissedências mais completas,
vêm te roubar sem permitir que o sintas!

Isso acontece, algumas vezes, quando
com os amigos ficamos a prosear,
nessas ruas de pequeno movimento;

mas em geral, é por onde encontram bando
de seres descuidados a passear,
aos quais assaltam no maior atrevimento!



ABELHAS CARNÍVORAS XII

Contudo, não te apresses a sentar
na frente de tua casa, no verão;
sabe-se lá o que brota do teu chão,
para teus planos todos devorar...?

Quando o sol forte ainda está a molhar
as tuas costas, chegando até o pulmão,
em modorra se acalma a multidão
desses calungas que desejam te sugar.

Porém mais tarde, nas noites de luar,
quando se espalham nos pisos as cadeiras,
a chusma inteira já começa a despertar

e a sola de teus pés, meigo o beijar,
invadem em estratégias bem certeiras
para o futuro, naco a naco, te furtar!...


William Lagos
Tradutor e Poeta – lhwltg@alternet.com.br
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com
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