O REI DA NEVE
E A JOVEM ANÊMONA
Traduzido do alemão, adaptado e versificado por
WILLIAM LAGOS, 6 SET 2018
de um conto de ERNST ZAHN, 24/1/1867,
Zürich – 12/2/1952, Meggen, Luzern, Suiça, publicado em Wien, Áustria, em 1917,
sob o título de DER SCHNEEGREIS UND DIE JUNGE ANEMONE (O Ancião da Neve e a
Jovem Anêmona), na coletânea LEGENDEN UND MÄRCHEN UNSERER ZEIT (Lendas e Contos
de Fadas de Nosso Tempo). Ernst Zahn
escreveu mais de 25 livros, dezenas de contos, foi radialista e cineasta,
dirigindo três filmes.
O rei da neve e a jovem anêmona 1
Lá bem no alto, ali onde as montanhas
acariciam o céu, vivia o Rei da Neve,
já há milênios; e sua vida ainda deve,
por mais outras miríades tamanhas
ainda perdurar, salvo se o Sol, seu inimigo,
com seu exército de raios brilhantes,
sitiasse seu castelo em lancinantes
assaltos de ouro e o tornasse em seu jazigo.
Contudo o Rei da Neve, Firnhart,
sua fortaleza construíra com cuidado,
entre três altos picos montanhosos
e o sol entrava ali somente em parte,
mesmo no auge do verão, atrapalhado
por tais rochedos de cinza portentososos.
O Rei Firnhart erguera
o seu castelo
com imensos blocos de
gelo recortados
e para o prédio
arduamente transportados
pelos seus servos, os
Pingentes de Gelo;
e após o imenso
palácio estar erguido,
bem protegido por três
altos espigões,
seus pingentes
adotaram os padrões
de Soldados, seu
uniforme constituído
também por Gelo, em
placas encantadas,
seus elmos e suas
espadas eram geada
e seus escudos
forjados de granizo;
mesmo nas épocas ao
estio destinadas,
Firnhart tinha Brumas
bem domadas
que evitavam do Calor
qualquer prejuízo.
Contudo, a Luz também
sendo necessária,
o Rei da Neve fizera
abrir as suas janelas
e seu grande portão
feito de estrelas
de Flocos de Neve, (de
feição tão vária,
cintilantes aos
milhões, que se dizia
não haver dois de
formato semelhante,
em geral hexagonais a
seu talante,
mais raramente algum
deles se fazia
de quatro ou cinco
pontas e até sete),
para o lado do
moribundo sol poente;
contudo os raios dessa
luz ele ampliava,
por lentes de Cristal
e num confete,
o brilho alaranjado do
ocidente,
em arcas de Permafrost armazenava. (*)
(*) O solo ártico
eternamente congelado.
Para o nascente apenas
havia seteiras
e uma porta estreita
de uma folha,
também ali para que a
luz recolha,
entrecortada por
proteções certeiras,
dando todas para um
largo parapeito
que sobre um grande
vale se elevava.
Certa noite, o Rei da
Neve ali passeava,
um manto branco da
mais leve maciez
que suas servas de
Névoa haviam tecido,
uma coroa a circundar-lhe
a tez,
menos branca a deixar
sua palidez
sobre o elmo em que um
ourives esmaecido
trinta diamantes
engastados fez.
Em seu rosto a usual severidade,
usando botas que tecera a Cerração
e uma espada a refletir cintilação
do luar, a projetar-se sem maldade
sobre o vale e ao correr do parapeito.
Com os pés o Rei da Neve então bateu
e toda a neve sobre o vale derreteu;
Firnhart esticou-se bem direito,
as duas mãos na cruz de sua espada
e inquietamente todo o vale observou;
a voz de Geada, seu mordomo, o interpelou:
“O que fazeis, Senhor, nesta sacada?”
“Estamos já em Abril e é tempo de calor,
porém o gelo cobre o vale com rigor...”
O rei da neve e a jovem anêmona 2
“Desde Março a Primavera já é esperada.”
“Aqui no alto ela costuma se atrasar,”
disse Geada, só o que sabia a lhe informar.
“Mas este ano ela está mais demorada;
minhas aliadas, as Tempestades hibernais,
vieram consultar-me muitas vezes,
mesmo depois dos costumeiros meses
e conferências até tivemos por demais...
Precisavam de combater os Maremotos
contra os Fiordes antes do Verão; (*)
minhas Borrascas entraram já em formação,
só uma está em portos ignotos;
dizem meus Ventos que em breve chegará
nova Nevasca consigo nos trará...”
(*) Braços de mar formados por geleiras.
Há muito era o Rei da
Neve solitário,
mas nenhuma companhia
desejava,
tinha os soldados e
Geada lhe bastava,
mais as Saraivas, seu
humor contrário...
Boas servas,
contudo. As refeições
lhe preparavam e mesmo
no seu leito
algumas delas apertava
contra o peito,
quando mais fortes
sentia as solidões;
e havia Granizo, que
sua música tocava
nas cordas da harpa e
que tamborilava
às vezes num pandeiro
e elas dançavam,
mas quando as aquecia
o movimento,
água pingavam sobre o
pavimento,
sobre si mesmas assim
escorregavam...
Com terra e neve
fabricavam nutrientes,
amparadas na magia de
seu rei.
“Qual o cardápio que
hoje escolherei?”
indagou Geada. “Estão já impacientes,
para os soldados já
prepararam alimento,
mas estão ansiosas
pelo seu querer...”
“Meu caro Geada, você
pode escolher,
tenho outras coisas em
meu pensamento...”
Mas de repente,
enquanto o vale contemplava,
de que acabara de
derreter a neve,
foi perturbado por
visão inesperada;
por um momento, quase
dela duvidava:
uma jovem quase nua
ali se atreve
sobre uma rocha do prado
a estar sentada!
O seu aspecto era
inteiramente humano,
muito bela de corpo e
de feições,
vestes brancas
brilhantes de ilusões,
o raciocínio a
confundir do soberano;
cabelos louros
desciam-lhe à cintura,
de um platinado quase
feito de brancor,
sua expressão
revestida de pudor,
toda gloriosa em sua
belíssima figura!
Sob a túnica fina
despida essa donzela,
naquele vale ainda
banhado de luar;
Firnhart sacudiu barba
e cabeça,
mas novamente
contemplou a jovem bela;
quem sabe ele a
moldara em seu sonhar,
quando a neve
derretera à toda pressa!...
Do chão decerto brotara essa donzela!
e a portinhola que para o oriente dava
mandou abrir e logo já se encaminhava
em direção à criaturinha bela,
seus passos firmes, porém silenciosos,
embora a relva começasse já a brotar,
como um punhal os espaços a cortar,
diante dele a separar ventos brumosos,
enquanto ia a Cerração atravessando,
antes que a visse no ar se desfazer,
tão bela sendo a que o levara a percorrer,
mas já de perto a estava divisando
e com olhos azuis os seus fitava,
um par de adagas que a mente lhe cortava!
O rei da neve e a jovem anêmona 3
“Quem és tu?” – foi logo lhe indagando.
“Meu nome é Anêmona,” a jovem lhe falou;
com timidez e hesitação acrescentou:
”Estou sentada aqui, ainda pensando
de onde vim e não lhe posso responder;
tenho a impressão de um sonho me acordar,
sem saber como aqui me venho achar
e de onde venho nada posso lhe dizer...”
O Rei da Neve chegou mais perto dela,
com seus passos a estalar-lhe a armadura,
o seu elmo a refletir a luz da Lua,
brihante e clara, apagando cada estrela,
salvo uma ou outra de fulgor mais pura;
“Não sentes frio, sob a veste quase nua?”
A jovem o encarou em
total confiança
e um perfume inusitado
ele aspirava;
medo algum a sua face
revelava,
só timidez, ingenuidade
e esperança.
Falou Firnhart: “Bem
cedo me chegaste,
pequena Anêmona, mas
igualmente tarde,
tuas irmãs já
contemplei em grande alarde,
porém em pleno frio
hoje brotaste...
Na realidade, a
Primavera se atrasou,
mas tua beleza enfim
me revelou
e aqui te encontro,
ante o luar noturno;
mais por acaso a tua
presença me mostrou,
bela e singela neste
Inverno ainda soturno,
sobre este prado de
que a neve se afastou...”
A voz do rei retumbava
como um sino,
a tanger alegremente
em dia de festa;
com seu sorriso,
Anêmona lhe atesta
plena confiança em seu
rosto pequenino;
breve temor a lhe
surgir no coração,
quando o semblante
austero se inclinou;
e novamente a jovem o
contemplou,
sem indagar-lhe o nome
ou a condição.
“Jovem Anêmona,
contempla o horizonte,
bem acima do castelo e
do penedo,
pois já de lá se
aproxima Tempestade;
de fortes ráfagas de
vento sinto a fonte,
muito frio ela trará e
tenho medo
que te alcance com
ciúme e com maldade.”
“Ela é minha aliada,
porém não serva minha;
de fato, só obedece ao
Rei Inverno,
também aliado, mas
competidor eterno;
cinza e feroz de nós
já se avizinha;
se te alcançar,
certamente morrerás!”
A jovem criatura de
medo estremeceu
e algumas pérolas de
pranto então verteu.
”Mas vem comigo, que a
não encontrarás!”
E sobre ela seu manto
colocou,
passando um braço por
seus ombros estreitos
e em direção à
fortaleza a conduziu.
“Vem comigo,” o Rei da
Neve asseverou.
“Em meu castelo não
estamos mais sujeitos
a qualquer dano que a
procela produziu.”
Ambos partiram pela noite silenciosa;
tão fortemente Firnhart a estreitava
que com seus pés desnudos mal tocava
a terra úmida de frialdade tenebrosa;
do lado externo da altíssima muralha,
alguns Pingentes-Soldados se encontravam
e à voz do rei depressa contestavam:
“Sim, Majestade!” – a obedecer sem falha
e assim abriram-lhe a estreita portinhola
e após os dois, no castelo penetraram
e em duas fileiras então se perfilaram;
Anêmona branca igual que pomba-rola,
pleno contraste contra o tom cinza-azulado
dos blocos gélidos com que o castelo era formado.
O rei da neve e a jovem anêmona 4
Foram passando assim de sala em sala,
junto às paredes enfileiradas sentinelas,
brancas, silentes, emproadas como velas,
mas com feições humanas em sua gala;
seguia o rei a orientar-lhe o passo,
nenhuma fonte de luz perceptível
e no entanto claridade inexaurível
que o próprio manto que a cobria sob o abraço
do Rei da Neve parecia projetar;
até chegarem a um vasto salão,
em cuja ponta se abria uma janela,
de onde suave luz vinha brotar,
onde almofadas sobre um leito estão
macias e brancas como as vestes da donzela
Ali o rei convidou-a a
se assentar,
ele mesmo a se
acomodar numa cadeira;
a luz brotava, em
magia feiticeira
dos marcos e caixilhos
a assomar,
mas através dos vidros
de cristal,
na noite escura,
poucas estrelas a brilhar;
do outro lado
permanecera o luar;
cristais de gelo notou
serem, afinal.
“Nesta sala terás
tranquilo abrigo,”
disse-lhe o rei e com
a ponta de sua espada,
bateu no piso e seis
criados já chegaram,
roupas de
cinza-azulada, mas consigo
não viera sequer uma
criada,
somente servos
masculinos se inclinaram.
Os passos dos criados
estalavam
sobre o piso de pedras
cor de gelo
e a serviram com
estudado zelo
das travessas de
alimentos que portavam
e de uma jarra de
prata que continha
líquido claro como
água da fonte
que de um rochedo
límpida desponte,
taça de prata
apresentaram à jovenzinha.
Ela bebeu e depois,
com um suspiro,
do rei fitou a
austeridade das feições:
“Meu rei parece velho,
branco assim,
mas forte é seu braço,
firme seu respiro,
não demonstra cansaço
nem fracas emoções,
seus olhos brilham,
sua voz igual clarim!”
“Você também é branca,
minha querida,”
disse o rei, com uma
leve piscadela,
“mas só traz a palidez
de uma donzela,
a mais formosa que
encontrei na vida!”
Não havia lareira, nem
lume sequer,
mas ali dentro não
sentia o menor frio;
o rei sorriu-lhe e,
com renovado brio,
bateu com a espada num
ritmo qualquer
e prontamente
apresentou-se o seu harpista:
“Melodia gentil, meu
bom Granizo...”
Por um momento, ela se
surpreendeu,
por vez primeira
alguém ali avista,
sem a brancura das
paredes e do piso,
mais como a noite o
seu semblante pareceu.
Ele assentou-se no peitoril sob a janela
e já seus dedos as cordas percorreram,
como lágrimas as suas notas pareceram,
como estrelas deslocadas por procela,
que pingavam sobre o mármore do chão,
sua voz grave a entoar a melodia,
com as cordas da harpa em harmonia,
marrom-escura era a cor de cada mão;
soavam as notas quais vozes gentis
de crianças em seus momentos mais felizes;
a um sinal, o instrumentista se calou
e igual que o gelo suave como giz,
a noite azul e as estrelas em deslizes,
o Rei da Neve gentilmente começou.
O rei da neve e a jovem anêmona 5
Igualmente, havia mistério na sua voz,
com um toque de alto orgulho zombeteiro,
tal amargura a se mesclar ligeiro,
que à gentil menina pareceu atroz
e num impulso, segurou-lhe a mão,
numa espécie de consolo inexperiente;
fitou-a o rei com firmeza surpreendente,
de um modo tal que lhe tremeu o coração.
Mas a seguir, ele se ergueu rapidamente:
“Você deve estar cansada, pequenina.”
E novamente outro servo se aproxima,
trazendo um xale e um cobertor bem quente.
“Durma agora, Anêmona, minha menina,
que a manhã chega e a todos nos anima...”
Em passos largos,
caminhou até a porta,
onde o criado lhe
entregou o manto,
ficara o harpista
silencioso no seu canto.
Braços cruzados, sua
visão comporta
certa ternura a
desmentir a sua frieza;
a seu sinal, recomeçou
o harpista
uma canção de berço
que lhe insista
a despertar sua
memória de incerteza;
mas o rei se calou,
sem dizer nada
e as pálpebras de
Anêmona pesaram,
a melodia a ficar
sempre mais distante
e assim dormiu, ali
acalentada;
do rei os olhos nunca
dela se afastaram,
numa carícia toda
pálida e incessante.
Por muitos dias
Anêmona habitou
no castelo imenso
desse Rei da Neve;
a tempestade aparecera
em breve
e a neve sobre os
montes agitou;
Anêmona a contemplar
pela janela
como giravam as Aves
do Nevoeiro,
com ágeis bicos a
cobrir ligeiro
qualquer verdor que o
prado já revela;
mas ali dentro, não
sentia qualquer medo
e a cada vez que o rei
lhe aparecia
era como se o vento se
calasse,
cada floco de neve a
deixar quedo,
enquanto a Tempestade
estremecia,
mas só de leve sobre o
chão tombasse.
Pois Firnhart cada vez
mais lhe parecia
igual penhasco forte e
poderoso
e quando o som da
noite, tenebroso
a amedrontava e a
menina estremecia,
vinha o rei
assentar-se do seu lado,
com a expressão mais
bondosa no seu rosto:
“Percebe, Anêmona,
qual seria o seu desgosto,
se estivesse lá fora,
sem cuidado?
Como o suflar da fera
Tempestade,
em poucas horas, a
destruiria?”
E para a distrair,
então contava
histórias cheias de
veracidade,
sobre as geleiras e as
brumas que ali havia,
mas que firme a
humanidade ainda enfrentava.
Então os caminhos das nuvens revelava
e numerava das montanhas os tesouros,
como os Homens caçavam por seus couros
os Animais que o Rei Inverno ali gerava
e que buscava destruir os caçadores
e sua ajuda para isso requeria,
mas que ele, às escondidas, protegia,
lançando a neve em brancos cobertores
e o próprio gelo fornecia a cada iglu,
em que pudessem proteger o corpo nu,
dentro do círculo dessas habitações,
em que jamais se acenderia uma fogueira,
combustível a escassear sobremaneira,
só aquecidos por seus próprios corações...
O rei da neve e a jovem anêmona 6
Também falava de mil gemas preciosas
a deslizar pelo leito dos ribeiros,
que outros homens cobiçavam, sobranceiros,
porém que valem muito menos do que as rosas;
e muitas outras lendas, em que fadas,
seus gênios, mais os elfos e os anões
se escondiam já das vastas multidões
das gerações humanas apressadas,
enquanto Anêmona nunca se cansava
de ouvir as suas histórias variegadas;
quando a donzela o escutava, se esquecia
da alva vastidão que ali a cercava
e as palavras bebia, consagradas,
como criança que carícias mais queria.
Certas histórias
falavam de alegria
ou da tristeza na
solidão achada,
a donzela tudo a
ouvir, maravilhada
e o tempo todo mais e
mais pedia;
às vezes, o rei a
olhava, pensativo,
pois muito em breve
chegaria a Primavera,
quando nenhuma
tempestade mais se espera;
de devolvê-la a seu
prado um tanto esquivo,
até que um dia, uma
pedra ele lhe trouxe,
por fora grande,
rugosa e ovalada
e com um gesto fácil,
a partiu,
a revelar-se a maneira
como fosse
a ametista no interior
achada,
que da intempérie
protegida ali surgiu.
“Como num lar, esta
jóia aqui cresceu,
escondida do fragor da
tempestade,
mas só nos pode ser
útil, na verdade,
depois que desse seu
abrigo se perdeu;
com as pedras te
poderei fazer colar,
para de teu níveo
pescoço a esbeltez
ou pulseiras para a
idêntica alva tez
de teus braços... Ou em ouro as engastar
formando assim um roxo
diadema
para enfeitar teus
cabelos platinados...
Mas em seus olhos,
Anêmona achou pena,
deixou os braços em
sua cintura pendurados
e então suspeita
sorrateira a envenena:
teriam em breve de
serem separados?
Sobre seus ombros o
rei passava os braços,
numa atitude protetora
e carinhosa,
mas Anêmona era
mulher... e assim, vaidosa,
bem satisfeita no
calor de seus abraços,
seu calor a palpitar
de gratidão,
inexperiente para
avaliar um sentimento
e tomada pelo impulso
de um momento,
em palavras doces
traduziu a sua emoção:
“Meu rei,” pediu-lhe
sedutoramente,
“deixai que fique
permanente do seu lado!”
Mas Firnhart
demonstrou sua confusão:
“Desejas mesmo estar
comigo permanente?”
E o braço forte nos
seus ombros enlaçado
deixou cair numa
fraqueza sem paixão.
Mas ela apenas percebia o movimento
que perpassava por seu próprio coração
e por vaidade conquistada na ocasião,
mais insistiu em delicioso sentimento:
“Eu me sinto tão feliz aqui a seu lado!
Por que motivo iria querer partir?
Porque deseja para o prado me banir?”
Seu coração num bater descompassado.
Firnhart a escarou, cheio de espanto:
Ela sabia qual seria o seu destino?
Era uma flor, embora em forma humana!
E percebendo no próprio olhar o pranto,
ergueu-se bem depressa, em desatino,
deixando a sala, sem ouvir quanto ela o chama!
O rei da neve e a jovem anêmona 7
Ficou Anêmona extremamente perturbada
e em lugar dele só retornou Granizo,
mil canções executando em som de guizo
e a suas questões não respondia nada!
Com o harpista ela insistiu: “Eu sou feliz!”
Granizo então falou: “Não é o suficiente...”
Pela primeira vez ali se achava descontente:
Mas só falei o que de fato eu quis!
No outro dia, Firnhart retornou,
porém dela nem sequer se aproximou,
muito ereto, a segurar sua espada,
a sua barba muito branca ali pendia,
mas para Anêmona ainda mais jovem parecia,
em sua postura assim robusta e aprumada.
“Querida Anêmona, é
por amor de ti
que em meu castelo não
poderás ficar,
a Primavera custou
muito a nos chegar,
mas as aves de
arribação já percebi.”
“Se tens amor por mim,
por que não posso?
Só o que desejo é
contigo continuar...”
“Mas eu não devo à
Natureza contrariar,
por mais que este
dever me seja insosso!”
“Mas o que posso fazer
para ficar...?”
“Só de uma forma posso
atender a teu pedido,
porquanto a Primavera
se avizinha;
se tens amor, deverás
me desposar;
somente assim poderá
ser atendido
e de meu reino te tornarás
Rainha!...”
Sem mais outra
palavra, deu a volta
e se afastou em
caminhar ruidoso,
que o seu dever
cumpriria prestimoso:
sobre seu prado
deveria ela ser solta!
A pobre Anêmona ficou
até meio assustada
porém meio satisfeita
com a proposta,
que a ideia dessa boda
não a desgosta,
até, de fato, se
sentia muito honrada!
E ao mesmo tempo,
tristeza experimentava,
porém no engodo de sua
perturbação,
o harpista retornou a
seu lugar
e as melodias que ele
agora executava
falavam muito de
gentil separação...
Mas eu não quero ao
prado retornar!
Seus sentimentos, aos
poucos, se aclaravam:
sem qualquer dúvida,
ela amava o Rei da Neve!
Mas tal certeza
desvaneceu-se em breve:
Como pai e como filha
os dois se amavam!
Era isso que precisava
lhe dizer!...
E já tomara integral
resolução,
quando o harpista
empreendeu nova canção,
que descrevia o
casamento com prazer,
alto e mais alto suas
notas a soar,
do grande júbilo e
vigor matrimonial
e com a música já
mudou de pensamento...
Então Anêmona viu
Firnhart retornar:
como um guerreiro
armara-se, afinal,
já contrariando seu
novo julgamento!...
Queria agora era lançar-se nos seus braços,
severamente, porém, ele a impediu,
mas o próprio afastamento a seduziu,
forte rubor já lhe cobria os traços;
“Tenho uma coisa para dizer, meu grande rei.”
“Então a dize,” o Rei da Neve respondeu.
Engoliu em seco e se fortaleceu:
“Majestade, com franqueza eu vos direi:
vós afirmastes que ficar aqui só posso
caso me ache disposta a me tornar
vossa Rainha, depois de o desposar.
Amor de filha no coração apenas ouço,
mas se me honrais ainda com a proposta,
a ser a esposa vossa estou disposta!”
O rei da neve e a jovem anêmona 8
“Pense bem no que me está dizendo,”
falou o rei, com tanta seriedade,
que encolheu seu coração. “Pois é temeridade
se a meu pedido desse modo está atendendo.
Caso venha a se tornar a minha rainha,
nunca mais me poderá abandonar,
na longa vida que terás de desfrutar;
sempre fiel terás de ser, minha pequeninha,
não é somente minha honra que está em jogo,
porém a honra da Neve e do Castelo;
pensa então nas consequências, eu te rogo.”
Anêmona lançou as vistas sobre o assoalho:
sua alegria em por marido tê-lo
era manchada por sentimento falho.
Por um momento, o
harpista interrompeu
o toque de seus dedos
sobre as cordas;
seu coração já estava
cheio até as bordas
e para a barba branca
o olhar ergueu.
Os seus olhos
transbordavam de confiança
e percebeu, para a
própria maravilha,
que embora ainda o
amasse como filha,
de amor mais vasto
havia uma esperança.
“Majestade, eu bem
sei, perfeitamente,
ser impossível
encontrar mãos mais queridas
a quem pudesse um dia
me entregar...”
Firnhart respirou o
ar, fremente,
suas próprias
hesitações todas perdidas
e abriu os braços para
a aconchegar...
A meiga e esbelta
Anêmona abraçou
e ela aninhou-se,
feliz, no seu amplexo;
por vez primeira a
trocar beijo de sexo,
que entre os dois o
juramento completou.
Em poucos dias
celebrou-se o casamento,
mas o rei aos servos
não mais permitiu
que a atendessem, porém
lhe introduziu,
mesmo na véspera do
dia desse evento,
três jovens belas para
a acompanharem,
todas vestidas de
roupas transparentes,
uma touca a salientar
as suas feições,
cores diversas então a
apresentarem,
uma em azul, outra em
rosas permanentes
e a terceira em
brancas vestes de ilusões.
“Serão estas as suas
acompanhantes;
de três aias precisa
uma rainha
Genciana é esta que de
azul vinha,
a qual suas refeições
trará constantes;
a de encarnado é a
Rosa da Montanha,
encarregada de seu
guardarroupa;
e a que brancos traz
vestido e touca
é a Lírio das Neves,
que a acompanha
no mesmo tom de roupa
que escolheu,
que penteará seus
cabelos platinados
e assentará seu
diadema trabalhado
em ouro e prata com
topázios engastados;
no orvalho da manhã
cada um foi encontrado,
que meu ourives, com
cuidado, concebeu.
O casamento foi sem pompa e circunstância,
mas como Anêmona jamais outro assistira,
pareceu maravilhoso o quanto vira:
um eremita de roupão sem elegância
a bênção deu para o novel casal;
o Rei do Inverno foi padrinho e a Tempestade
foi a madrinha, como prova de amizade,
embora ambos percebessem nele um mal.
O Rei do Inverno falou: “Eu os abençoarei,
mas acredito que vai cometer um erro.”
E disse a Tempestade: “Se houver algum desterro,
com minhas frieiras eu o consolarei...”
Nada dizendo da jovem aos ouvidos,
de seu amor não estando convencidos.
O rei da neve e a jovem anêmona 9
Uma canção de himeneu cantou o harpista:
“Quando Amor em Amor se frutifica,
a Primavera sempre junto deles fica,
mas se Amor do outro Amor não segue a pista,
falecerá o primeiro em amargura;
quando Amor a outro Amor abraça,
o Deus do Céu concede plena graça,
mas se de Amor o Amor não mais perdura,
só predomina sobre a Terra a Morte.”
E o Rei da Neve pousou as mãos na espada,
a entoar um verso de igual sorte:
“Quando Amor ao outro Amor não dura,
a Terra inteira pela morte é assolada
e o Deus do Céu contempla sua amargura.”
Tão poderosa sua voz
então soou
que o coração da noiva
estremeceu,
mas o rei a mão forte
lhe estendeu
e muito alto seu
coração voou;
então se ouviu um som
como morteiro!
“São as Avalanches,”
explicou o rei,
“cantando em seu
louvor, bem sei:
os picos lançam seu
branco travesseiro
para sua honra e para
seu louvor...”
Entâo Anêmona riu de
felicidade,
no coração, porém, um
toque de tristeza...
Os padrinhos brindaram
a seu favor,
o harpista e as damas
sorriram com bondade,
mas os soldados
mantiveram sua frieza.
Porém quando Firnhart
retirou a armadura,
depois que os dois se
encaminharam para o leito,
a contragosto, viu
nele algum defeito,
orgulho e poderio a
assentar mais que ternura,
pois ao dizer-lhe suas
palavras de amor,
parecia reduzir-se em
seu tamanho,
mas ao sua boca ter
novo beijo ganho,
logo afastou de si
todo o temor...
Mais na ternura do
marido ela cresceu
e bem depressa
aumentou a sua certeza
de que fizera
realmente a escolha certa;
seu amor de filha
noutro amor desenvolveu
e nela mais floresceu
a sua beleza,
de Firnhart no carinho
sempre alerta.
Algumas vezes,
contudo, se afastava:
o seu reino era vasto
e a Cordilheira,
Vento Norte e
Nevoeiro, a Nuvem altaneira,
a seu comando, tudo se
dobrava
e impedia das
montanhas a erosão;
o Rei Inverno em
lufadas se afastara,
a frialdade para o sul
já carregara
e a Tempestade não
soprava mais Trovão.
O Vento Sul por
enquanto não silvara
e nesses dias de
intensa calmaria,
cada avalanche
totalmente se calara.
Certo dia, Firnhart
aproximou-se:
“Quero mostrar-lhe a
rude penedia,
que sob o sol inteira
transformou-se...”
Realmente, verde relva ali crescera,
mas ao longo da tranquila pradaria,
que um regato murmurante percorria,
estranhas formas subitamente percebera...
“O que são essas?” – Anêmona indagou.
O rei sorriu: “Pois não as reconheces?”
Genciana murmurou-lhe, como em preces:
“São irmãs suas e nossas...” – informou.
Disse-lhe Rosa: “Não percebes com dançam
e os cabelos ondulam sob a brisa?”
Falou Lírio, das três a mais calada:
“Elas piscam um convite e não se cansam!”
A seu marido volveu a fronte lisa:
“Posso ir com elas até a esplanada?”
O rei da neve e a jovem
anêmona 10
“Naturalmente, são suas acompanhantes,
contudo eu devo me quedar no parapeito;
sou o Rei da Neve e não tenho direito
de percorrer os prados verdejantes...”
Anêmona ficou um tanto perturbada:
estavam juntos desde o casamento,
salvo quando ele partia em julgamento;
alguma coisa a deixava amedrontada...
“Não se perturbe, Anêmona querida,
podes ficar por ali algumas horas,
sei bem que voltarás sem mais demoras...”
Saíram as quatro pela porta aberta,
sendo acolhidas por alegria desabrida,
que emoção desusada lhe desperta...
Porém Anêmona e suas
três amigas
correram alegres pelo
caminho estreito
e no planalto, em seu
pleno direito,
dançaram todas, a
entoar canções antigas.
A jovem esposa alegre
se sentia
e assim as horas foram
passando sob o sol,
mas sobre a torre já
brilhava qual farol
e ela lembrou-se de
que a Firnhart pertencia.
As suas centenas de
amigas, já cansadas,
começavam as corolas a
inclinar,
até as pétalas algumas
a enrolar;
voltou ao castelo com
as aias encantadas,
o Rei da Neve a acolheu,
alegremente,
contou-lhe tudo o que
fizera, bem contente!
“Não incorri em um mau
procedimento?”
Indagou ela, inquieta,
a seu marido.
“Em absoluto. Vá dançar o mais seguido
que lhe possa agradar
o sentimento.
Só deve retornar em
igual momento
que o de hoje por você
foi escolhido,
quando o Sol estiver
quase escondido,
por trás do teto do
mais alto pavimento...”
E seu dançar repetiu
ela muitos dias,
por suas três belas
aias protegida,
sabendo que o marido
se alegrava,
participando de suas
puras alegrias;
do parapeito a sua
visão contida,
hora após hora feliz a
contemplava.
Firnhart sentia imensa
gratidão
pelo prazer que
Anêmona lhe dava;
somente às vezes, sem
querer cantava,
sua voz ribombando no
bordão,
que recordava de Deus
a plena graça
quando Amor fiel a
Amor permanecia
e a tristeza que no
final surgia,
quando a Morte do Amor
fazia pirraça.
Na verdade, nem sentia
algum receio,
só lamentava ver seu
desaponto
quando as florzinhas
começassem a murchar;
não que o frio
interviesse de permeio,
mas de Julho logo
iniciava-se o reponte
e o calor não cessaria
de aumentar.
De um certo teste tinha vaga lembrança:
seria na segunda quinzena do verão,
mas não quis assustá-la de antemão,
que em seu amor fiel tinha confiança;
não obstante, do parapeito ele vigiava
e um dia viu um brilho desusado:
sobre um rochedo surgiu vulto dourado,
nova estranha criatura ali sentava;
mas no regato Anêmona se banhava
com suas aias, suas ricas vestimentas
depositadas com cuidado sobre a margem;
mas logo o brilho sua atenção chamou:
“O que é aquilo?” – disse às aias desatentas.
“Algo real ou somente uma miragem?”
O rei da neve e ajovem anêmona 11
As aias voltaram o olhar na direção
para a qual a bela Anêmona apontava:
“Mas é um homem! Desde
quando ali se achava?”
“Eu o vi antes, mas pareceu-me uma ilusão...”
“Estamos nuas!” – assustou-se Genciana
e bem velozes as roupas colocaram;
para o castelo, às pressas, se afastaram;
Anêmona, rubra como rubra chama,
não mencionou a visão para o marido,
que a estivera todo o tempo a contemplar,
mas absteve-se de igualmente a mencionar,
igual que nada tivesse percebido
e a tratou com a mesma gentileza,
enquanto as aias se calavam de incerteza.
Mas no outro dia,
Anêmona não quis ir:
“Caro marido, quero
ficar junto a seu lado...”
Granizo, o harpista,
depressa foi chamado,
as notas doces do
instrumento a refulgir;
após três dias,
disse-lhe Firnhart:
“Não quer mais
usufruir do belo sol?
São só três meses
dessa época de escol,
Já por Setembro
depressa o Verão parte...”
Então ela desceu de novo
com as amigas
e depois de dançarem e
cantarem,
sem das roupas se
despir para banharem,
muitas florzinhas
cochichavam já intrigas
e lá se achava de novo
o viandante,
poeira dourada cobria
o viajante...
Contrastava com seus
cabelos encarnados,
mas era um jovem de
beleza singular,
que se mantinha
somente a observar,
sem um só passo
atentar para seus lados;
deixando-se tomar pela
curiosidade,
acompanhadas pelas
aias timoratas,
por suas vidas a
sentir-se ingratas:
O que diria o rei, na
realidade?
Mas Anêmona, em plena
ingenuidade,
só ali queria
entabolar uma conversa...
“Graças te dou por
chegares, jovem bela”
Anêmona gracejou, em
meia vaidade:
“Como sabe se minha
razão não é diversa?
Passeio apenas...” –
disse-lhe a donzela.
O belo jovem tão
somente lhe sorriu,
certa malícia cintilando em seu
olhar.
“Quem é você?” – quis
Anêmona indagar.
“Sou um peregrino que
o mundo já seguiu
de Algum-Lugar para
Nem-Sei-Onde,
todos os anos o globo
inteiro a perlustrar,
com meus onze irmãos a
me alternar,
meu nome é Junius e
aqui chego de outro Donde...
Todos os anos ocupo
este lugar...
Por que não senta,
para me acompanhar?”
Mas à distância, sobre
o parapeito,
seu marido a
contemplava com direito...
Deu meia-volta e
voltou para o castelo,
em seus olhos a
guardar o rosto belo...
Lá estava o rei, austero no entretanto,
mas em seu semblante nada havia de mesquinho,
tratou-a mesmo com idêntico carinho,
mais uma vez a elogiar o seu encanto
e nada lhe indagou do que fizera,
somente o harpista tocar veio novamente;
no coração sentiu uma dor plangente,
pois o rei pedras preciosas lhe trouxera,
que nas cavernas colhiam as Estalactites,
mas de seus passos nada lhe indagou;
só no outro dia, como não saísse,
deu-lhe cristais tomados a Estalagmites
e sem rancor, novamente perguntou:
“Por que não vais ao prado, igual te disse...?”
O rei da neve e a jovem
anêmona 12
Os seus olhos rebrilhavam de confiança
e nessa tarde, suas três acompanhantes,
lhe trouxeram cogumelos deslumbrantes
e os musgos que cresciam em abundância
e assim, saiu com elas novamente,
no dia seguinte, a tornar-se mais ousada,
e ao mesmo tempo, a sentir-se mais cansada,
de tais conversas a sentir-se inconfidente
e por dez dias com o jovem conversava
sobre as distantes terras lá do Sul,
seus prados verdes, mesmo no rigor do Inverno,
quando a Neve em tempo algum tombava
onde o Mar se balouçava, sempre azul,
onde ele mesmo era um Verão eterno...
No undécimo dia, ela
se retardava,
o sol raiando sobre o
prado em calor forte,
sem compreender por
que estranha sorte
esse calor sua energia
lhe roubava.
Perguntou Junius: “Por
que tanto demorou?
Hoje é meu último dia
neste prado;
por muitas horas temos
conversado,,
mas amanhã nosso tempo
se acabou!
Parte comigo para a
terra mais florida,
o mês de Junho por lá
é sempre terno,
trinta dias te darei
de amor eterno!”
Ela falou, lastimando
a despedida:
“Meu caro Junius, eu
tenho meu marido,
sou sua Rainha e é ele
o meu querido!”
Junius apenas
assentiu, sem insistir,
mas seu olhar a seguiu
até a distância;
de Firnhart a vista em
prima instância
a atraía e a seu
refúgio ela fugiu.
Nuvens gris ela notou
sobre suas torres;
ela hesitou e
chamaram-na suas aias;
“Anêmona!” – gritavam
flores como em vaias:
“Feio é o
castelo! Se retornares, morres!”
Porém seus caules não
impediram sua passagem
e para os braços de
Firnhart ela correu;
sem a menor
reprovação, ele a acolheu,
fortaleceu-a dos
calores em voragem...
“Conta-me histórias!”
– ela pediu, em meigo tom.
Ele assentiu e ela
entendeu quanto era bom.
Passou a chuva. Chegou o dia seguinte.
Genciana, Rosa e Lírio
a convidaram:
“Vamos ao prado. As flores renovaram,
com as novas cores que
a água nelas pinte!”
Olhou para o marido e
este assentiu.
Com roupas novas as
quatro caminharam;
vago o rochedo rápido
encontraram:
“Ele se foi...” – disse
Genciana e lhe sorriu.
Mas antes que passasse
uma semana
em que cantava e
bailava com as flores,
da tentação já
esquecidos os temores,
nova presença com a
anterior se irmana:
era outro jovem,
alburno seus cabelos, (*)
curto bigode sobre os
lábios belos...
(*) Louro-avermelhado.
como gema de ovo.
Durante um dia, eles só se contemplaram;
Lírio das Neves deu o primeiro passo;
ele a acolheu, gentil em seu abraço,
logo depois Rosa e Genciana se achegaram;
“Quem eu desejo mesmo é sua Rainha,”
disse o rapaz, com sua voz brejeira,
sua insistência a se tornar mais altaneira
e enfim Anêmona também com elas vinha.
“Quem é você?” – indagou, igual que antes.
“Meu nome é Julius e sou um navegante
nos amplos mares das terras do Verão;
nada mais sei sobre onde estava dantes,
contudo aqui sou anualmente viandante,
de sentinela no lugar de meu irmão...”
O rei da neve e a jovem
anêmona 13
E novamente, quis Anêmona fugir,
mas as três damas tinham cumplicidade
com este Julius e insistiram, sem maldade,
que ela ficasse, constantes a pedir;
já não temiam que Firnhart se zangasse,
de Julius tendo a maior curiosidade,
porém Anêmona se foi, tal sua velocidade,
que seu correr mal e mal se acompanhasse.
O Rei da Neve as recebeu, sem dizer nada;
em seu abraço, sentia-se Anêmona abençoada
e as três damas quase exaustas pareciam,
a sua seiva parcialmente já esgotada,
enquanto sob o sol elas corriam,
porém Anêmona inteiramente descansada.
Nessa noite, os dois
dormiram abraçados,
mas de manhã Firnhart
lhe informou:
“Preciso viajar. Um maremoto já chegou
e meus Fiordes estão
sendo ameaçados.”
“Mas vai de novo
deixar-me aqui sozinha?”
“Você tem Granizo e
suas companheiras;
pode manter
conversações ligeiras
com o novo jovem que
do prado se avizinha.”
“Senhor meu rei, não
sente algum ciúme?”
“Pequena Anêmona,
sempre dei-lhe liberdade
e lhe demonstro toda a
minha confiança.”
Falou Anêmona, com uma
pontinha de azedume:
“Quase excessiva é sua
liberalidade,
que não seja demasiada
é minha esperança!”
Mas Firnhart por uns
dias se afastou,
sem temer que ela
caísse em tentação;
o Rei da Neve não
mandava no Verão,
por maior angústia que
então experimentou.
Mas Anêmona por sua
honra tinha zelo
e nao importa o quanto
conversasse
e por mais que este
Julius a elogiasse,
era leal ao Rei da
Neve e Gelo!...
Passou-se um mês e
então Julius lhe falou:
“Parte comigo. A Primavera e o Inverno
juntos não podem
jamais permanecer.”
E ainda acrescentou:
“Julho é atento,
trinta e um dias de
eterno sentimento
eu te darei, sem que
jamais possa morrer!”
Mais uma vez, Anêmona
se despediu.
“Eu a amo,” disse o
jovem ternamente.
“Parte comigo e
viverás contente
nessa terra em que o
frio jamais surgiu!”
“Não, caro Julius,
leve uma de minhas damas.”
“Eu não as quero,
somente a vós desejo;
serás rainha também
lá. Dá-me um só beijo
e sentirás o ardor
desta minha chama...”
“Não,” disse
Anêmona. “É tempo de partires.”
E a passos rápidos
voltou para o castelo,
as três damas a
segui-la em contragosto.
“Fizeste mal desses
dois jovens desistires,”
segredou-lhe
Genciana. “Bem pior será o zelo
quando chegar o quente
mês de Agosto!”
Firnhart retornara e já a esperava
e nos seus braços a acolheu com emoção,
sem um murmúrio de reprovação;
contudo, inquietação experimentava,
mas não podia conter a Primavera,
não enquanto perdurasse esse Verão;
sofrer teria mais uma tentação,
enquanto o Inverno ficaria à espera,
mas Setembro traria em breve o Outono,
todas as flores a dormir profundo sono
e se Anêmona vez terceira retornasse,
em seu castelo vida eterna teria certa,
sem que em anos seguintes precisasse
sua velha alma manter assim alerta.
O rei da neve e a jovem
anêmona 14
Contudo Agosto era o mês de sua fraqueza,
na conservação do castelo gastaria
uma vasta porção de sua magia,
mesmo que o Sol pouco tocasse a fortaleza;
porém Anêmona, já cheia de confiança,
pediu a seu amado permissão
para voltar ao prado em procissão
com suas três damas, gozando sua bonança.
“Eles se foram, meu rei e meu marido,
só permanecem as florzinhas a dançar
e o regato ainda alegre a suspirar...”
“Pequena Anêmona, podes ir, naturalmente,
sou teu marido e rei, mas não teu dono:
do parapeito a minha canção ressono...”
Mas neste mês, o Sol
não mais acalentava
e ela sentia
verdadeira lassidão,
suas companheiras
dançavam sem paixão,
sob a canícula que
agora as desgastava;
muitas das flores já
nao dançavam mais,
algumas murchas,
outras já tombadas
sobre o solo, suas
sementes dispersadas:
outras viriam, porem
estas jamais...
E de repente, lá no
alto do penedo,
surgiu terceiro jovem,
todo louro,
de armadura
resplendente como ouro,
a contemplá-la com
olhar feroz e quedo;
Anêmona não se atreveu
a visitá-lo,
Mesmo as três damas a
sentir igual abalo.
Mas como ele ali
ficasse imóvel
e ela sentia que
embora ainda quente
já havia sinais de em
breve estar ausente
esse Verão, já de
calor tão ignóbil;
assim voltou com as
damas no outro dia;
a maior parte das
flores já murchava,
enfraquecidas pelo sol
que as maltratava:
“Somos flores do
frio,” Lírio dizia.
Mesmo que o jovem as
olhasse simplesmente,
dardejando de seus
olhos mil convites,
Anêmona não mais
queria retornar,
Mas Firnhart lhe
disse, tristemente:
“Para que sempre aqui
comigo habites,
até o final este Verão
tens de enfrentar...”
E assim, no abafamento
do Verão,
Anêmona retornou à
pradaria,
mas do jovem chegar
perto não queria,
mais temor a sentir
que sedução.
E quando o mês de
Agosto terminava,
o rapaz levantou-se do
rochedo,
vindo até ela. “Por que de mim tem medo?
Eu sou Augustus,” a
seguir se apresentava.
“Meus dois irmãos você
antes recusou,
mas comigo terá de vir
agora!...”
“Mas eu não quero!” –
Anêmona gritou.
“Eu não te peço. Porém seu corpo é meu,
venha comigo, logo
tenho de ir embora
que só ao Verão a
Primavera pertenceu!”
Ao compreender que haveria violência,
deixou Firnhart, às pressas, seu castelo.
Nunca Anêmona o vira assim tão belo,
nem percebera o amplo vigor de sua potência.
“Devolva minha Rainha!” – ele clamou,
nuvens surgindo sobre sua cabeça,
já um Vento a assoprar com certa pressa,
mas a sua voz à Tempestade superou!...
“Anêmona é minha!” – proclamou o guerreiro,
“Retorne, velho, para a neve e o gelo,
ela conservará dentro de mim a energia,
na asa do vento partiremos bem ligeiro,
pois não percebe, em seu seu ciúme e zelo,
que o Verão está no fim e no Outono murcharia?”
O rei da neve e a jovem
anêmona 15
A voz de Augustus era como uma cachoeira,
a voz de Firnhart como avalanche da montanha,
espadas desembanhadas em sua sanha:
“Somos iguais! Não temos
vida inteira!”
Bradou Augustus. “Ela tem
uma estação
e eu só tenho de um mês a permanência;
se vier comigo, conservará plena consciência,
sem precisar dormir até que chegue outro verão!”
“Mas eu a amo e a energia lhe darei,
comigo a permanecer o ano todo!”
Golpes de espada estalavam já a rodo.
“Que a arrebate nunca permitirei!”
Anêmona e suas damas companheiras
temiam das vidas estar nas horas derradeiras!
Mas Augustus, ao
perceber-se superado,
deu um assobio e de um
desfiladeiro,
surgiram cavalos a
galopar ligeiro
e embora se afastassem
para um lado,
foram as damas pela cavalhada
atropeladas,
somente Anêmona ilesa
ainda a ficar:
“Eu trouxe o Foehm para me acompanhar, (*)
com suas quentes
lufadas atreladas!”
Mas Firnhart convocou
os seus soldados,
em suas armaduras
cinza aparelhados
e embora o calor os
perturbasse,
eram Pingentes e
atravessaram os cavalos,
somente alguns a
sofrer quaisquer abalos,
até que Augustus quase
sozinho se encontrasse!
(*) Vento quente que
sopra no verão através dos Alpes.
Então o guerreiro
tirou um chifre da cintura
e de seus lábios um
vasto som brotou
e lá do alto, o Sol se
requeimou,
lançando raios
portentosos de loucura,
já transformados em
guerreiros de armadura
e diante deles se
derreteram os Pingentes,
por mais que então
lutassem bem valentes,
desse calor sem
superar a agrura!...
Não obstante mais
soldados a estar descendo
da fortaleza,
ingressando no combate,
o Rei da Neve apelou,
a contragosto,
ao Rei Inverno; com
ele a Tempestade já crescendo,
enquanto outra
Borrasca de Verão se abate,
em defesa do calor do
mês de Agosto!
Nesse momento se
travou uma batalha
que fez os picos da
montanha estremecer,
Tempestade em Borrasca
a se esbater,
as Nuvens apagando a
Luz sem falha!
O calor do Vento Sul
ataca a Geada,
mil Ráfagas a Saraiva
a digladiar,
o Granizo contra o
Tufão a pelejar,
a pradaria sendo assim
toda assolada!
Buscou Augustus
contruir uma muralha
em proteção a Anêmona
e a si mesmo,
poucos Raios de Sol
descendo a esmo
e na Escuridão de
parte a parte,
firme a avançar na
mais bélica arte,
o exército da Neve
igual metralha!
O Rei da Neve estendeu seu braço forte
e seu manto oscilava qual geleira;
Augustus fez tentaiva derradeira:
brilhante chama projetando como um corte,
lançando-a firme contra o elmo do rei!
Alguns diamantes então se derreteram,
mas frios Coriscos então o acometeram,
tombando Augustus com sua quente grei;
e segurando um dos Ventos por cabresto,
montou de um salto, a cavalgar bem lesto,
abandonando o vasto prélio finalmente!
Porém Anêmona no solo igual jazia
e enquanto o Rei Firnhart combatia,
as três damas a abraçavam tristemente...
O rei da neve e a jovem
anêmona 16
Desse modo, quando o combate terminou,
agradecendo ao Inverno e à Tempestade,
Firnhart recobrou a sobriedade
e sua esposa foi ansioso procurar...
Lá estava Anêmona, partida e alquebrada,
suas feições e seu corpo emurchecidos,
pétalas secas em lugar de seus vestidos,
cada dama a lastimar, desesperada!
“Em vão eu quis protegê-la desse Inverno...”
Porém a Rosa das Neves lhe falou:
“Não foi o Inverno, o Calor é que a matou!
Até o ribeiro secou no vasto inferno,
já não há relva a verdejar na pradaria,
ferida eu estava, sem poder dar-lhe energia!”
E em vão o Rei da Neve
a segurou,
entre seus braços foi
depressa consumida,
logo em poeira, pelos
dedos escorrida,
até que dela só a
lembrança lhe restou...
Em desespero, Firnhart
então bradou,
as três damas a se
encolher perante o ardor:
“Ela viveu muito mais
do que uma flor!”
Entre soluços,
Genciana lhe explicou.
“Mas pouco importa!
Não a verei jamais!”
E com passos pesados
se afastou,
ao seu castelo
destroçado contemplou...
Mas a tristeza
fortaleceu-o ainda mais,
seu coração a
transbordar de frio
e o castelo
soergueu-se em pleno brio!
Foi recolher-se na
câmara nupcial,
em que Anêmona tivera,
em amor ardente...
Só a memória que agora
me sustente,
nestes mil séculos
gelados do hibernal!
Ouviu os passos do
mordomo, como outrora.
“Geada, me deixe,
quero ficar sozinho...”
“Senhor meu rei,
conceda só um minutinho,
as Damas da Rainha
estão lá fora...”
“E que me
importa? Não mais quero vê-las!
Também você que se retire
agora!”
“Senhor meu rei,” o
mordomo se atreveu,
“Elas insistem que
possais recebê-las,
que têm recado a lhe
dar de sua senhora...”
“Como assim? Pois não sabes que morreu?”
“Triste verdade,
senhor, porém falou
antes da morte,
segundo me disseram
e destarte seu recado
lhe trouxeram:
pedem urgência, pouco
tempo lhes restou...”
“Por mim, que todas em
poeira se transformem!”
Mas num aceno de vã
curiosidade
ou por um autoimpulso
de maldade,
Firnhart concedeu:
“Então, que entrem!”
Em sua câmara só
entraram três velhinhas,
roupas em pétalas
totalmente ressequidas,
os passos trôpegos,
perdido seu vigor.
“Que me quereis? Nenhumas graças minhas
haveis de
receber! Nem acolhidas,
nem energias que lhes
dêem qualquer calor!”
“Não, meu senhor, pedir nada viemos,
ao contrário, aqui estamos para dar,”
falou Genciana, sua voz a tremular.
“Somente algo da Rainha lhe trouxemos.”
“E porque nada me dissestes lá no prado?”
“Senhor, tememos, ao ver a angústia sua,
a dor e a cólera que em seu olhar estua,
como tocar em seu peito atribulado?”
“Pois bem. Estais
aqui. Que me quereis?”
“Majestade,” falou Rosa, por sua vez,
“Antes que Anêmona junto de nós morresse,
ela falou: ‘Todas três me jurareis,
mesmo que seja a última coisa se que fez,
que a meu bom rei a mensagem se trouxesse...’”
O rei da neve e a jovem
anêmona 17
“Bem, que mensagem, então, vocês me trazem?”
Lírio avançou, já no piso tropeçando,
uma espécie de canudo lhe alcançando:
“Nem sua cólera, nem dor, nada nos fazem,
pois em breve morreremos, todas três,”
disse Genciana, “mas a Rainha nos pediu
que lhe falasse do amor que lhe surgiu,
amor de esposa, não mais de filha, assim se fez.”
“Mas senhor, seu próprio caule ela rasgou,
para entregar-lhe agora este presente...”
Insistiu Lírio. O canudo
era rugoso...
“Abra, senhor,” Rosa lhe suplicou,
“mas o conteúdo sustenha firmemente,
tocar não deve seu piso prestimoso...”
Firnhart as encarou,
com desconfiança...
Abriu o estojo e meia
dúzia de sementes
viu na palma de sua
mão já estar presentes.
“Essas sementes são
frutos da bonança
desses três meses que
de seu leito partilhou,
quando Vossa Majestade
a fecundou...”
“Senhor meu rei,
Anêmona engravidou:
são filhas suas que em
sua palma segurou!”
“Pode guardá-las, se
quiser, ou jogar fora,
se as for plantar, que
seja uma por ano,
pois outra Anêmona
surgirá, sem desengano!”
“E se sua filha amar,
qual a amou outrora,
embora morra, ao fim
de outro verão,
novas sementes talvez
deixem na sua mão...”
“Mas Anêmona nunca irá
ressuscitar!”
“Não, Majestade,
seca-se a erva e cai a flor,
porém jamais se
perderá o seu amor,
caso as sementes
decida-se a plantar...”
“E agora”, disse
Genciana, “partiremos,
mas estamos fracas
demais. Mande um soldado
amparar-nos na
estradinha até o prado,
em que as cinzas todas
as três derramaremos.”
Ficou o Rei da Neve
comovido,
ao ver como já
emagreciam e murchavam:
“O seu pedido será
pronto conecedido.”
E deu a Geada as
ordens necessárias
e as três velhinhas,
em curvaturas várias,
lhe agradeceram pelo
tempo decorrido.
“Como Anêmona, nós
vivemos por demais,
mas se tombarmos no
prado como poeira,
nossa morte não será a
derradeira,
mas as sementes
deixaremos naturais
e ao chegar de mais
uma Primavera,
brotarão lírios, rosas
e gencianas,
da mesma terra em que
formos humanas...”
“Cada uma delas será,
porém, uma flor vera...”
“Outras anêmonas
também ali irão brotar,
mas nenhuma delas como
humana criatura,
salvo, meu rei, se
demonstrar a sua ternura
e com cuidado as
sementinhas vá plantar...”
Ficou o rei entre
feliz e desolado,
Pondo as sementes em
seu estojo bem fechado.
E num impulso, marchou até o parapeito:
três Pingentes as velhinhas auxiliaram,
até o prado, em que depois se desmancharam.
seu gelo em água sobre o chão desfeito,
sobre a poeira das três acompanhantes,
Geada e Granizo postados do seu lado,
o terreno a contemplar, ainda encharcado,
pelos Pingentes de Gelo, servos constantes,
que na defesa de seu Rei tinham morrido,
sob o calor tantos se haviam derretido!...
“Logo a Neve chegará, rei e senhor,”
Disse Geada, “e todo o solo cobrirá,
a sua brancura os acalentará
e ao solo fértil darão todo o seu vigor.”
Epílogo
Logo chegou a neve silenciosa
e Granizo a tocar recomeçou.
Não mais de Amor e Morte ele falou,
porém da Neve branca e majestosa,
que recobria Genciana e Rosa,
Lírio das Neves e sua Anêmona querida,
a quem o Fado, por seu Amor, trouxera à vida,
nunca outra Flor a ser igual viçosa...
Mas quem sabe? Talvez no Outono ele plantasse
apenas uma dessas seis sementes...
Seria sua Filha igualmente bela?
Mandou então que o harpista se calasse
e que esquecesse as canções de amor ardentes,
e só cantasse as da Neve e da Procela.
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